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Até 1994, quando foi criado o Programa Saúde da Família (PSF) no Brasil, hoje conhecido como Estratégia Saúde da Família (ESF), o atendimento à população brasileira era prestado por uma ampla e descoordenada estrutura ambulatorial e hospitalar pública e privada e por uma rede formada por postos e centros de saúde já muito precarizados, relata o historiador Carlos Henrique Assunção Paiva, coordenador do Observatório História e Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).  

Ao longo de seus 30 anos de existência, a Estratégia Saúde da Família, atualmente constituída por cerca de 37 mil Unidades Básicas de Saúde espalhadas em todo o Brasil, tem sido central na organização de um sistema que busca garantir a saúde como um direito social e uma obrigação do Estado. Mas, desde a sua criação, a atenção primária à saúde (APS) tem sido marcada por concepções e projetos em disputa que resultaram em dois modelos: um abrangente, promotor do atendimento universal; e outro seletivo, voltado para problemas mais prevalentes de saúde entre as populações de maior vulnerabilidade. 

“Embora a nossa atenção primária à saúde, tal como definida na Política Nacional de Atenção Básica (Pnab), esteja formalmente vinculada àquilo que identificamos com abrangente, na prática, em diferentes contextos urbanos, ela enfrenta muitas dificuldades institucionais para cumprir o que se encontra formalmente formulado”, pontua Carlos, referência em pesquisas sobre a história da APS no Brasil. Segundo ele, que reconhece os “esforços heroicos das equipes multiprofissionais”, há problemas de inadequação no financiamento e na infraestrutura e ausência de uma política de formação e de regulação e gestão do trabalho que permita a fixação de trabalhadores na APS, sobretudo médicos.  

Em entrevista, Carlos detalha o surgimento do conceito de atenção básica e a consolidação da ESF, discorre sobre a “situação dramática” dos órgãos de representação da classe médica e analisa as dificuldades de fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) em um cenário marcado pelo liberalismo, “que dissemina na sociedade uma ideia da saúde que não é compatível com a de um bem público, mas do consumo de serviços, e que estão disponíveis para quem tem condições de pagar”.  

Professor do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da COC/Fiocruz, ele destaca que a análise histórica pode se apresentar como uma importante ferramenta para a compreensão dos desafios no campo da saúde. E lança, ele mesmo, uma pergunta: “Qual é o projeto de país que nós, no campo progressista, temos? Havendo um projeto, temos comunicado adequadamente nosso projeto e as ideias que lhe dão suporte para as populações deste imenso país?”

É por meio da atenção básica ou atenção primária à saúde (APS) que a população tem o primeiro contato com o sistema de saúde. Quando e em que contexto surgiu esse conceito? 

A APS, conforme conhecemos hoje em nosso país, detém atributos que se institucionalizaram em uma política nacional, sendo alguns deles a integralidade, a coordenação, a abordagem familiar e o enfoque comunitário. Esses atributos são, por sua vez, decorrentes de diversas posições críticas às práticas médicas e à própria organização da saúde pública ao longo de décadas por parte de sanitaristas e pensadores da saúde. Há, assim, raízes históricas muito profundas no desenvolvimento dessas ideias relativas à APS bem como às suas respectivas práticas. Por exemplo, a partir dos anos 1910 e em diversos momentos da história da saúde pública brasileira, testemunhamos a existência de trabalhadores de saúde realizando a tarefa de visitar indivíduos e famílias em situação de vulnerabilidade para tratar questões de saúde, como foi o caso das visitadoras sanitárias, uma prática que já valorizava ações de educação junto a famílias, e que guarda semelhanças com a do agente comunitário de saúde (ACS) em nossos dias. No entanto, será realmente a partir dos anos 1960, pelo menos se considerarmos uma tradição norte-americana de debates, que veremos pela primeira vez a expressão atenção primária. Um estudo publicado no início daquela década por professores de clínica médica, medicina preventiva e de epidemiologia de um recém-inaugurado curso de medicina da Universidade da Carolina do Norte, sob forte influência do movimento da medicina social, manifestava uma grande preocupação com a formação de médicos capazes de atender às demandas mais frequentes da população por cuidados de saúde. É neste sentido que se dá, até onde pudemos constatar em nossos estudos, a aparição da expressão atenção primária. A partir daí, em organismos como a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), veremos debates em torno dessa expressão se complexificando, de modo que a atenção primária também vai se aproximando de discussões de caráter mais organizacional, incorporando ou se conectando com debates em torno do estabelecimento de uma porta de entrada ou de hierarquização do sistema de saúde. Ou seja, a atenção primária vai se aproximando da concepção que manifestamos formalmente em nossa política nacional. Já adianto, não se trata de um movimento linear e desprovido de contradições. Pelo contrário. Há muitas disputas em torno do projeto da APS, considerando seus objetivos e alcance.

Antes da APS no país e de seu modelo assistencial, que é a Estratégia Saúde da Família, como se organizava o atendimento à saúde do brasileiro?

Responder corretamente a esta pergunta nos exige pensar sobre quando podemos dizer que há uma APS no país. E isso não é uma questão simples. Como sabemos, uma política nacional, a Pnab, só viria a partir de 2006. Antes disso não tinha APS? Tinha. O Programa Saúde da Família (PSF) havia iniciado a sua trajetória desde o início dos anos 1990. E antes dele, diversas experiências locais também conversavam, vamos dizer assim, com a APS. Ou, se preferir, desde os anos 1970, instituíram-se experiências locais, em diferentes formatos, que correspondiam a iniciativas de cuidados primários de saúde/atenção primária. Um exemplo é o chamado projeto Montes Claros, desenvolvido no Norte de Minas Gerais, a partir da década de 1970. Outro exemplo é o Programa de Médicos de Família, que surgiu na década seguinte, implementado na cidade de Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro. Essas diferentes iniciativas, pré-Pnab, muitas das quais correspondendo a projetos de medicina comunitária, com maior ou menor fôlego e êxito, implementaram modalidades de cuidado cujo centro era a família e, em alguns casos, procuraram melhor organizar os fluxos da rede local de saúde. Mas a sua pergunta é: mas antes de todas essas experiências, o que havia? O que havia, grosso modo, era uma ampla e descoordenada estrutura de instituições de saúde, que abarcava uma rede hospitalar e ambulatorial pública e privada, incluindo unidades filantrópicas, como as Santas Casas; e centros e postos de saúde. 

E quais as características dessa estrutura anterior ao SUS e à ESF?

No seu conjunto, essa estrutura era uma herança dos anos 1950 e 1960, quando vemos surgir com força uma rede hospitalar no país. Parte dessa estrutura envolvia grandes hospitais públicos, provenientes dos Institutos de Aposentadoria e Pensão, instituídos durante o período Vargas. Além dessa estrutura ambulatorial e hospitalar, havia também uma rede antiga de postos e centros de saúde, esses especialmente decorrentes da chamada Reforma Capanema, a partir de 1937. Eram postos e centros que, ao contrário dos hospitais previdenciários, atendiam de portas abertas à população, mas na segunda metade do século passado estavam já muito precarizados, praticamente funcionavam como ambulatórios. Na prática, portanto, havia uma baixa coordenação — para não dizer nenhuma — de todo esse aparato de saúde no país. Mesmo quando se criou o Sistema Nacional de Saúde, em 1975, não se conseguiu avançar muito no sentido de se estabelecer alguma racionalidade no acesso e oferta de serviços de saúde no país. Essa será uma questão que caberá ao SUS enfrentar, e a APS será uma estratégia central nesse processo. Afinal, como organizar o sistema de modo a garantir o direito à saúde? Uma questão central para a qual há muitas respostas. E a atenção primária se apresentará como uma forte estratégia. 

Como foi o debate que resultou na implementação da APS? Quais interesses estavam em jogo e de que forma o contexto da época contribuiu para que esse modelo de organização saísse do papel?

Quantas perguntas difíceis, vamos lá. Como já conversamos, a expressão “atenção primária” começa a comparecer nos documentos internacionais por volta de meados dos anos 1960. Nesse período, alguns documentos da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Opas passam a vocalizar uma importante crítica à forma como estava então organizada a saúde pública dos países. A ideia de ampliação da cobertura dos serviços sanitários, combinada com formas de cuidado mais sensíveis à prevenção e à educação, não pareciam compatíveis com serviços hospitalares, segundo perspectivas críticas daquela época. Esses eram tidos como muito dispendiosos e essencialmente focados em doenças. Essa é, por assim dizer, uma das raízes da APS. Um segundo processo é de natureza mais política e doutrinária, uma vez que se passou também a defender em determinados círculos mais progressistas a saúde como um direito humano. Ou, se preferir, como um direito social e uma obrigação do Estado. Encurtando muitíssimo a conversa, podemos dizer que a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, aquela famosa que se realizou na cidade de Alma-Ata, então República Soviética, em setembro de 1978, é herdeira direta desses processos. 

E que concepções estavam em disputa?

Nesse sentido, ainda que muito frequentemente parte da literatura da saúde pública e coletiva pense Alma-Ata como uma espécie de genitora da APS, precisamos também entendê-la como o ponto de chegada de ideias e concepções que, ali por volta do final dos anos 1970, estavam longe de se configurarem como um consenso em âmbito internacional. Não é coincidência que cerca de três meses depois da Conferência de Alma-Ata, na cidade italiana de Bellagio, a Fundação Rockefeller tenha financiado outra conferência para defender que a proposta contida em Alma-Ata não era suficientemente realista. Era preciso, segundo essa segunda concepção crítica, pensar em ações voltadas para problemas específicos e lidando com populações socialmente mais vulneráveis. Assim nascia formalmente a concepção de uma atenção primária seletiva. Falando claramente, aqui não é uma APS como direito social, promotora de uma concepção universal de saúde; aqui é uma APS que lida com uma cesta básica de serviços, essencialmente voltada para alguns problemas mais prevalentes de saúde entre as populações mais vulneráveis. 

Embora a nossa APS, tal como definida na Pnab, esteja formalmente vinculada àquilo que identificamos com uma APS abrangente, na prática, em diferentes contextos urbanos, ela enfrenta muitas dificuldades institucionais para cumprir o que se encontra formulado.

E que visão de APS predominou nesta disputa?

Uma pergunta que podemos fazer agora é: afinal, qual APS vai sair do papel? Eu diria que as duas. As duas constituem, vamos dizer assim, diferentes concepções e projetos em disputa. E talvez possamos dizer mais que isso: embora a nossa APS, tal como definida na Pnab, esteja formalmente vinculada àquilo que identificamos com uma APS abrangente, na prática, em diferentes contextos urbanos, ela enfrenta muitas dificuldades institucionais para cumprir o que se encontra formalmente formulado. Problemas que vão de financiamento e infraestrutura inadequados até a ausência de uma política de formação e de regulação e gestão do trabalho que permita a fixação de trabalhadores na APS, sobretudo médicos, constituem importantes obstáculos para que a APS seja, de fato, abrangente, apesar, muitas vezes, dos esforços heroicos das equipes multiprofissionais e, sem dúvida, dos bons resultados que a APS já nos apresenta.  

Problemas que vão de financiamento e infraestrutura inadequados até a ausência de uma política de formação e de regulação e gestão do trabalho que permita a fixação de trabalhadores na APS, sobretudo médicos, constituem importantes obstáculos para que a APS seja, de fato, abrangente.

A pandemia de covid-19 deixou ainda mais evidente a importância do SUS. Ainda assim, passado tão pouco tempo dessa experiência dramática, o SUS vive às voltas com dificuldades históricas, como o subfinanciamento. Fala-se muito nas longas filas para atendimento médico em níveis mais especializados, por outro lado, falta reconhecimento ao trabalho gigantesco e diversificado realizado na atenção primária. Enquanto isso, surgem cada vez mais planos de saúde privados a preços populares formulados para seguir a lógica do lucro. Por que parece tão difícil fortalecer o SUS?

Uma resposta rápida é que há muitos interesses envolvidos. A ideia de “sistema de saúde” talvez transmita uma visão equivocada ou mesmo idealizada das relações entre os seus componentes ou integrantes no interior do sistema. Numa leitura assim mais funcionalista, parece que todos estão fadados a se articular e trabalhar na mesma direção. Nada poderia ser mais falso em se tratando de um sistema de saúde. Os interesses das diferentes corporações, dos prestadores de serviços, das distintas empresas que produzem materiais e insumos, das instituições que formam profissionais e assim por diante costumam operar em direções distintas. Ou seja, os atores estão no interior do sistema não para necessariamente fortalecê-lo, mas para maximizar ganhos, ou seja, para atender seus próprios interesses. E, diga-se de passagem, muitos dos quais podem ser legítimos. Nesse quadro de disputa estrutural de interesses, o papel do Estado e de organismos de participação social e concertação política torna-se muito, muito importante, não é? Agora, isso tudo sob o ponto de vista de uma necessária gestão do sistema de saúde. Mas não estamos aqui falando estritamente de fluxos administrativos, pelo contrário. É lógico que esses interesses, ou parte expressiva deles, estão informados por ideologias e crenças políticas, como é o caso do liberalismo. E aqui eu entendo que cabe pensar o liberalismo como parte de uma economia moral, como algo que vai construindo os sujeitos, formatando escolhas e desejos. E assim vai se disseminando na sociedade uma ideia da saúde que não é compatível com a de um bem público, mas do consumo de serviços, e que estão disponíveis para quem tem condições de pagar. Há, assim, não de hoje, uma disputa ideológica central para o destino do SUS, para uma perspectiva de estado de bem-estar social e eu diria até mais, para a própria Constituição de 1988, que vem sendo desde sua promulgação tão mutilada. Termino minha resposta com outras perguntas: qual é o projeto de país que nós, no campo progressista, temos? Havendo um projeto, temos comunicado adequadamente nosso projeto e as ideias que lhe dão suporte para as populações deste imenso país? Estas me parecem perguntas fundamentais para o destino do SUS, tal como o pensamos no contexto da reforma sanitária. 

Os atores estão no interior do sistema não para necessariamente fortalecê-lo, mas para maximizar ganhos, ou seja, para atender seus próprios interesses

Como surgiu o Observatório História e Saúde?

O Observatório História e Saúde é parte da rede ObservaRH, que nasce no final dos anos 1990, como uma iniciativa da Opas para a região das Américas. A ideia era articular diferentes núcleos de especialistas para produzir dados e, em termos gerais, respostas para problemas colocados no âmbito dos recursos humanos em saúde. No Brasil, essa iniciativa foi especialmente promissora na criação de núcleos em universidades, mas também, por vezes, no interior de secretarias de saúde. A partir de 2003, no início do governo Lula, essa política se intensificou em nosso país, contando com apoio direto do governo federal. É nesse momento que é criada a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), no interior do Ministério da Saúde, o que permitiu financiamento e apoio a diversas estações de trabalho pelo país. É justo nesse contexto que foi criado, na COC/Fiocruz, o Observatório História e Saúde. Somos então parte desse processo de expansão e fortalecimento da rede ObservaRH. 

De que forma o Observatório pode contribuir para a melhoria das políticas públicas em saúde do país?

Ao longo desse tempo — em 2024, fizemos 20 anos de existência — penso que temos contribuído em pelo menos dois eixos de atividades. De um lado, somos um lugar que reúne especialistas capazes de pensar e tratar a memória dos trabalhadores e dos processos institucionais da saúde, compreendendo, assim, que essa memória é ingrediente fundamental para produzirmos identidade, pertencimento e inscrição política dos atores no sistema de saúde que queremos. De outro lado, uma segunda contribuição diz respeito à forma como a análise histórica, ao lidar com tradições, crenças e práticas instituídas, pode se apresentar como uma ferramenta relevante para compreendermos os desafios colocados para diferentes problemas no campo da saúde. Ou seja, os problemas que compõem a agenda dos formuladores e gestores não são, a rigor, estritamente de ordem técnica, são no mínimo técnico-políticos. Isto sem falar das dimensões culturais e ideológicas que também atravessam as práticas em saúde. Nesse sentido, a perspectiva histórica pode oferecer uma visão mais contextualizada das ações, práticas e políticas do setor, bem como permite uma compreensão mais adequada acerca das soluções que estão em pauta para o enfrentamento de desafios institucionais do SUS, muitos dos quais históricos.

Especialmente a partir da pandemia, posturas que contrapõem estudos científicos têm sido defendidas por órgãos como o Conselho Federal de Medicina. Há também dificuldade na fixação de médicos em locais mais distantes, que precisam muito de assistência à saúde, mas quando o governo implementou o Mais Médicos, houve uma grita corporativista. Vocês desenvolvem algum trabalho sobre a formação dos profissionais médicos em geral, e, em particular, na atenção básica?

Desde o início das atividades do OHS, nós desenvolvemos ações de ensino e divulgação. Essas atividades, ao longo do tempo, só se adensaram e se tornaram mais importantes para nós. Há dez anos, por exemplo, somos presença constante na oferta de minicursos nos congressos da Abrasco [Associação Brasileira de Saúde Coletiva], uma oportunidade ímpar para ter contato com trabalhadores da saúde, gente do movimento social, pesquisadores etc. Desenvolvemos também, nos últimos anos, em parceria com o Campus Virtual da Fiocruz, um curso de História da Saúde no Brasil. Este curso já alcançou mais de 17 mil pessoas, em todos os estados federativos do Brasil e em diversos países do nosso continente, Europa e África, um exemplo do forte interesse e demanda das pessoas por conhecimentos que contextualizem as práticas, ações e políticas de saúde. Além disso, todo semestre, como um curso transversal, oferecemos uma disciplina sobre história da saúde para alunos de mestrado e doutorado da Fiocruz, momento em que nos deparamos com muitos médicos, mas não só médicos, é claro. Enfim, ao longo do tempo, temos mantido um certo diálogo multiprofissional, contando com médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde. Como a atenção primária é um dos eixos de pesquisa e de atividades do OHS, procuramos sempre atribuir algum destaque para as discussões que envolvem ações e políticas para a área. Aliás, além de constar na programação de nossos cursos, a APS também se faz presente na exposição itinerante que elaboramos e que já esteve montada em diversos espaços do Rio de Janeiro, inclusive em faculdades de medicina.

Quão fundamental é a formação médica para o fortalecimento do SUS?

Seja como for, você tem toda razão, considerando o papel e o poder acumulado pela medicina, é crucial que médicos e médicas sejam pensados como figuras estratégicas para um necessário processo de fortalecimento do SUS. Sobre isso, é bom lembrarmos que, lá no contexto da reforma sanitária, a partir de meados dos anos 1970, o conselho e o sindicato médicos foram atores importantes no sentido de se produzir uma crítica à privatização da saúde e suas consequências para a precarização do trabalho médico. Ao final da década seguinte, parece que esses mesmos organismos começaram a dar uma guinada política, grosso modo, afastando-se dos ideais de construção de um sistema público de saúde ao qual até então pareciam se conectar. Hoje podemos dizer que a situação é simplesmente dramática, pois os órgãos de representação da classe médica estão completamente colonizados pelo bolsonarismo. Como se pode pensar o fortalecimento do SUS considerando esse cenário? Uma pergunta que requer respostas em diversas direções, mas certamente uma delas envolve a necessidade de um desejado alinhamento mínimo dos órgãos de representação de classe médica e de outras profissões de saúde ao projeto institucional do SUS. É preciso, igualmente, avançar em políticas que aproximem a formação profissional do SUS, como é o caso do VER-SUS e outras iniciativas. 

Precisamos oferecer melhores condições objetivas de trabalho e de carreira no SUS.

E nesse sentido, qual a importância em se contrapor a uma perspectiva liberal, fortalecendo o SUS e a saúde como um direito?

Como já nos sinalizava Juan Cesar Garcia, desde os anos 1970 em seus estudos sobre educação médica na América Latina, a formação médica historicamente responde às necessidades colocadas pelo mercado liberal de saúde. Ou seja, na prática, um estudante de medicina tenderá a fazer escolhas profissionais, como a residência médica, por exemplo, levando em conta estritamente as vantagens econômicas decorrentes da escolha. O interesse público, eventualmente, poderá estar completamente fora de escopo. Como se enfrenta isso? Não há dúvida de que precisamos oferecer melhores condições objetivas de trabalho e de carreira no SUS. Aqui temos, portanto, uma discussão bastante antiga, o SUS precisa ser atraente para os trabalhadores da saúde. Podemos também considerar questões que estão no terreno da regulação profissional por parte do Estado, e não só por parte das próprias corporações, como é o que ocorre na tradição brasileira. Questões como a formação de especialistas não são de interesse público? Claro que sim. Mas nada disso é simples e fácil, uma vez que envolve conflitos e interesses corporativos e privados já muito bem-organizados. Precisamos de estratégias, ações e políticas em curso que sejam capazes de construir soluções para esses problemas históricos do nosso sistema de saúde. Há avanços, mas eu os compreendo como ainda parciais.

Precisamos de estratégias, ações e políticas em curso que sejam capazes de construir soluções para esses problemas históricos do nosso sistema de saúde.

■ Jornalista da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), em colaboração especial para Radis

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