A visão geral do profissional de medicina no Brasil é que ele não tem nenhuma responsabilidade com o SUS depois de formado, mesmo que a sua formação tenha sido em uma universidade pública, atesta a médica de família e comunidade Magda Moura Almeida. Professora do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará (UFC) e diretora de Medicina Rural da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, ela avaliou, em entrevista concedida à Radis durante a Conferência Mundial Wonca de Médicos de Família, a importância do programa Mais Médicos no provimento de profissionais nas áreas rurais do país, quando declarou temer sua descontinuidade. “É um momento de incerteza”, ponderou.
Em sua apresentação durante o Congresso, você falou da dificuldade em fixar o médico nas regiões rurais. O que leva o profissional a não conseguir ficar?
Para fixar o médico, um dos principais fatores é a residência médica. A formação, que oferece uma exposição positiva em cenários rurais, faz com que o profissional certo seja atraído para o lugar certo, e sejam vencidas as dificuldades de adaptação. Nas regiões Norte e Nordeste, onde a proporção da população que vive no interior é maior, existem poucas universidades fora das capitais, então essa distribuição tem que ser mais equânime. No estado do Maranhão, por exemplo, 35% da população vivem em áreas rurais. No Sul e no Sudeste, os médicos se fixam mais no interior por já existir infraestrutura fora da capital, além de serem regiões com menos áreas consideradas rurais. O país é muito grande e muito diverso. Não dá para aplicar uma política de fixação no Sul e no Sudeste e achar que as mesmas condições vão funcionar no Norte e no Nordeste. Essa é uma das fragilidades do programa Mais Médicos, o de só ter um formato.
Quais os impactos da grande rotatividade de profissionais nas zonas rurais?
Se eu troco muito o profissional, ele sempre vai ter que começar de novo a relação entre o serviço e o paciente. O vínculo se quebra. E um dos atributos da Medicina de Família é a longitudinalidade, que é acompanhar o paciente, ou a família, ao longo do tempo. Pelo que eu observo na região do interior do Ceará, onde tenho médicos sob minha supervisão, ficar três anos já é muita coisa. Antes, a rotatividade na região era muito maior. O Mais Médicos veio com a proposta de permanência de três anos, diferente do Programa de Valorização do Profissional de Atenção Básica (Provab), que é de um ano, então já melhorou um pouco; ele provém, mas não fixa o médico.
Como você avalia os incentivos criados com o Mais Médicos?
Quando o formando vai trabalhar na atenção básica pelo Provab ou pelo Mais Médicos, ao fim do primeiro ano de trabalho ele tem 10% de bônus nos pontos para uma prova de residência para qualquer especialidade médica que ele desejar. Isso é um incentivo para o formando. Mas o ideal é que houvesse vaga de residência para todos os formandos de medicina, como acontece em outros países. No Canadá, por exemplo, o governo regula quais vagas de residência vão existir, de quais especialidades, de acordo com as demandas do sistema de saúde. Por exemplo, cerca de 40% das vagas lá são para residência em Medicina da Família. Essa era uma das propostas da lei do Mais Médicos, a universalização da residência. Mas desde a mudança do governo, em abril, todo dia há uma mudança. É um momento de incerteza. Outra determinação do programa Mais Médicos é que o primeiro ano de todas as residências seria em Medicina de Família e Comunidade. O que se discute agora na Comissão Nacional de Residência é justamente tirar a obrigatoriedade do primeiro ano de toda residência passar por essa especialidade.
A descontinuidade do Mais Médicos pode prejudicar o provimento de médicos para as áreas rurais?
Não tenho dúvida. Não consideramos que a proposta do primeiro ano de Medicina de Família é o ideal. O ideal é ter vaga de residência para todo mundo, com cerca de 40% delas para Medicina de Família. Mas se a lei for modificada na questão da universalização das vagas, a gente não vai conseguir fazer o que está fazendo hoje em dia. Fora que, com a saída dos cubanos, dos intercambistas, são previsíveis outras reduções.
Como os estudantes de medicina vêem as mudanças na formação?
A gente no Brasil tem uma visão um pouco diferente da formação médica em relação a de outros países. Aqui, o profissional médico se vê mais como autônomo. Acabamos de ouvir aqui no Congresso como é na Colômbia, que existe um serviço civil obrigatório, e todo mundo acha normal. A visão do estudante de medicina é que ele se forma para depois atuar onde quiser. Mesmo que ele tenha feito uma faculdade pública, ele não se vê, em geral, com nenhuma responsabilidade com o SUS depois que ele se forma. Ele pode trabalhar para um convênio médico para o resto da vida. Ele não devolve com serviço público para a população o investimento feito na sua formação. Essa é uma visão da categoria médica em geral. Existe uma resistência muito grande a qualquer regulamentação. Em outros países o serviço civil ou a obrigatoriedade da residência não são vistos como excesso de controle estatal. (E.B.)
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