Lá estão elas: balconistas de farmácia e vendedoras de lojas, em pé, a maior parte do tempo, seis dias por semana. Exemplos típicos de atividades que se organizam com base na escala 6×1, essas trabalhadoras e trabalhadores vivenciam os impactos de uma jornada exaustiva de trabalho na saúde mental e no surgimento de doenças crônicas.
Como explica Monica Olivar, assistente social do Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh), da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), essas pessoas estão mais sujeitas às doenças cardiovasculares e aos transtornos mentais relacionados ao trabalho, como fadiga, irritabilidade e estresse. “Isso tudo é resultado dessa jornada de trabalho extenuante em que o trabalhador só tem direito a um dia para descansar e cuidar da sua saúde”, ressalta ela, que também é especialista nos temas precarização do trabalho e terceirização, com doutorado em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Em entrevista à Radis, Monica destaca que geralmente os mais impactados por essa jornada de trabalho são pessoas negras, que sofrem com a herança de uma sociedade escravocrata. Também reforça o papel do movimento Vida Além do Trabalho (VAT), que convocou mobilizações para apoiar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC), de autoria da deputada Erika Hilton (PSOL-SP), sobre o fim da escala 6×1. Segundo a pesquisadora, esses trabalhadores lutam pelo direito à saúde. “O conceito ampliado de saúde, que historicamente foi a luta do movimento da Reforma Sanitária, é ter direito ao lazer, à habitação, à educação, ao trabalho, mas não é qualquer trabalho, um trabalho que tenha relações e condições dignas para o trabalhador”, explica. Leia a entrevista completa a seguir.
Como surge a luta pela redução das jornadas de trabalho?
O que é importante colocar é que, se olharmos historicamente, a luta pela redução da jornada de trabalho não começou agora. Essa é uma luta histórica, desde a Primeira Revolução Industrial, na Inglaterra, em que não havia uma jornada fixa. Passavam de 14 ou 16 horas de trabalho. A partir daí começou o estopim das greves e, posteriormente, com a luta da classe trabalhadora, surgiram as primeiras leis. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) publicou uma normatização mundial, colocando o limite de 8 horas diárias, em 1919. No Brasil, a gente teve uma jornada de 48 horas semanais na Constituição de 1934 e, depois, o debate na Constituinte que buscava reduzir de 48 para 40 horas. Com o acordo que houve, ficou em 44 horas semanais. Isso significa que a classe trabalhadora está há 36 anos nessa jornada de trabalho extenuante, em que se tem somente um dia para o seu autocuidado, para cuidar da saúde, para a educação, o lazer. Mas, na verdade, [o trabalhador] tem esse único dia, no qual está se preparando para os seis dias de trabalho.
“O corpo vai sentir em algum momento.”
Como as jornadas exaustivas impactam a saúde dos trabalhadores e trabalhadoras?
Podemos buscar as primeiras evidências, em termos quantitativos, no Observatório de Saúde e Segurança do Trabalho (SmartLab). Lá tem dados sobre número de acidentes de trabalho, uma série histórica desde 2007, e os afastamentos pelo INSS, além de dados de notificação do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação). O corpo vai sentir em algum momento. Pensando em quem são esses trabalhadores, a grande parte são balconistas de farmácia, de lojas, que ficam a maior parte do tempo em pé. Basta observar em uma farmácia: está lá o balconista em pé. No shopping, a vendedora, a mesma coisa. 8 horas diárias. 6 dias por semana. O corpo vai sentir. Vai sentir por meio de dores físicas. Se ele trabalha com telemarketing, vem a lesão por esforço repetitivo (LER-Dort). Doenças cardiovasculares; doenças do aparelho circulatório; transtornos mentais relacionados ao trabalho, como fadiga, irritabilidade, estresse, depressão e burnout. Isso tudo é resultado dessa jornada de trabalho extenuante em que o trabalhador só tem o direito a um dia para descansar e cuidar da sua saúde.
“São trabalhadores negros e negras que vem de uma herança escravocrata do Brasil.”
Quem são as pessoas que mais sofrem com essa realidade? Como elas vivem e como isso impacta em seu cotidiano, reproduzindo relações de exploração, de baixos salários e poucas perspectivas de futuro?
Eu sou moradora da Baixada Fluminense, de Duque de Caxias (RJ). Sempre peguei trem. A Baixada virou “cidade dormitório”. Grande parte da população vem para o Rio de Janeiro trabalhar e, no transporte público precário, gasta duas ou três horas, a depender das condições de trânsito ou do trem. Grande parte dessa população são trabalhadores negros, mulheres e homens negros. Inclusive no último censo do IBGE, 69 ou 70% dos moradores da Baixada [RJ] se autodeclararam negros e negras. São trabalhadores negros e negras que vêm de uma herança escravocrata do Brasil, um país que tem uma industrialização tardia, que jogou grande parte dessa população em trabalhos precários, “trabalhos de ganho”, como se fala. Trabalha-se para sobreviver. Tirando esses trabalhadores formais, estão os entregadores por aplicativo que acabam pegando uma jornada de 7×0. Nem sonham com uma jornada como essa [de 6×1]. Aliás, sonham, mas para sobreviver entram nesses trabalhos precários.
Como os dados mostram que jornadas exaustivas estão relacionadas a mais acidentes de trabalho?
Segundo o Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, disponibilizado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), em 2022, o Brasil registrou 612,9 mil notificações de acidentes relacionados à jornada profissional. Isso resultou em 148,8 mil benefícios concedidos para trabalhadores com carteira assinada, pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Já o número de óbitos por acidente de trabalho no país atingiu 2.538 em 2022. Isso já dá uma pista para entender a situação da classe trabalhadora hoje no Brasil. Tem dados também sobre afastamento por transtorno mental. Só em 2022, segundo o INSS, mais de 209 mil pessoas foram afastadas do trabalho por transtornos mentais em nosso país. Essa jornada tem relação direta com sofrimento psíquico, com adoecimento físico. Como eu falei, o corpo vai sentir em algum momento. Na própria síndrome de burnout, o nome já diz: vem do inglês, significa apagar, ou esgotamento. O trabalhador está esgotado. É bom citar que esses transtornos, como ansiedade, burnout, estão incluídos na nova lista de doenças relacionadas ao trabalho, publicada pelo Ministério da Saúde, em 2024.
Como essa realidade reproduz um modelo de exploração em que as pessoas pretas ocupavam os postos de trabalho com pior remuneração, ou funções socialmente menos valorizadas (na escravidão, os chamados “escravizados de ganho”)?
Se traçarmos o perfil de grande parte dessa classe trabalhadora, a maioria jovens, são homens e mulheres negros e negras, que muitas vezes têm como história familiar em que o pai e a mãe estão inseridos nesses processos de trabalho considerados de “ganho”, como camelôs, agora entregadores por aplicativo, trabalhador uberizado, cuidadoras de idosos e de crianças, empregadas domésticas. Isso é uma herança do Estado escravocrata.
Muitos relatos de trabalhadores e trabalhadoras que têm uma jornada de 44 horas semanais (portanto, seis dias da semana) falam em exaustão e cansaço no dia livre: não tem ânimo para nada, só querem dormir, estão exaustos. Como se vive para além do trabalho em uma realidade como essa? Que tempo sobra para a família e o lazer? Que vida é essa que se pode ter para além de uma jornada exaustiva?
O conceito ampliado de saúde, que historicamente foi a luta do movimento da Reforma Sanitária e está na 8ª Conferência Nacional de Saúde, é ter direito ao lazer, à habitação, à educação, ao trabalho, mas não é qualquer trabalho, um trabalho que tenha relações e condições dignas para o trabalhador. Esse trabalhador hoje luta pelo que é o conceito ampliado de saúde: é ter o direito ao descanso, ao lazer e à educação. Na maioria das vezes, o trabalhador não vai ter tempo para se qualificar e vai ficar nesse sistema capitalista perverso. Ele não vai sair dessa roda. Não vai conseguir se capacitar, estudar, para sair desse trabalho adoecedor em que está inserido. Nas manifestações do VAT, lembro de dois cartazes que me marcaram: “Eu vejo mais o meu patrão do que a minha família”; e outro, segurado por uma trabalhadora: “Eu quero ver os meus filhos crescer”. É uma trabalhadora que não tem o direito nem ao aleitamento materno, conforme a orientação do Ministério da Saúde, da criança de até os dois anos ter o direito à amamentação. A trabalhadora celetista tem o direito a 120 dias de licença maternidade, mas é muito pouco pensando no aleitamento materno. Na maioria das vezes, estão nesse ciclo vicioso do mundo do trabalho, que é trabalhar, trabalhar, para gerar lucro ao sistema capitalista.

Que experiências existem em outros países de redução de jornadas de trabalho?
Apesar de ser uma luta histórica, esse movimento é recente se comparado a outros países. Existe um movimento forte anti trabalho nos Estados Unidos, porque lá também tem uma jornada bem pesada, é um movimento espontâneo da juventude. Alguns países da Europa já vem fazendo isso, Portugal, Finlândia, Inglaterra e França, já vem adotando a jornada 4×3. Aqui no Brasil tem uma experiência com cerca de 20 empresas para implantação dessa jornada, seguindo o exemplo de alguns países da Europa.
O argumento utilizado por aqueles que são contra a redução da jornada de trabalho é: a economia vai quebrar, não vai ter quem trabalhe. O que há de falácia nesse argumento?
Se você perceber, durante a pandemia, as farmácias fecharam? Não fecharam. Os supermercados fecharam? Não fecharam. Esses setores tiveram um lucro muito grande durante a pandemia. [Esse argumento] É uma falácia. De certa forma, vai ter economia sim, na medida em que vai diminuir o absenteísmo, o afastamento desse trabalhador. Reduzir a jornada de trabalho vai diminuir o número de afastamentos e as estatísticas de acidentes de trabalho. Grande parte das pessoas que estudam os acidentes de trabalho dão ênfase à questão dos equipamentos de proteção individual (EPI), mas esquecem que a maioria dos acidentes de trabalho advém da fadiga, do sono, do cansaço, dessa jornada exaustiva. O que vai acontecer é reduzir o número de acidentes de trabalho.
Como a reforma trabalhista impactou esses tipos de relações de trabalho, na medida em que diminuiu o poder de organização coletiva e facilitou os acordos entre patrões e empregados?
Essa é uma pergunta muito boa, porque a classe trabalhadora está há 36 com essa jornada de trabalho, desde a regulamentação da Constituição, só que a gente vem passando por transformações no mundo do trabalho, não somente no Brasil, com a indústria 4.0, com o trabalho mediado por tecnologia de informação e comunicação (TIC), com a uberização do trabalho (e quando falamos em uberização, não se trata apenas dos trabalhadores da Uber, mas dos entregadores por aplicativo, e podem ser até trabalhadores com nível superior que se inserem nesses aplicativos). O mundo vem passando por transformações nos processos produtivos, mas a legislação não evoluiu, ao contrário regrediu com a reforma trabalhista, que flexibilizou ainda mais a jornada de trabalho. A Constituição diz 44 horas, 8 horas diárias, mas a reforma trabalhista diz que essa jornada pode ser flexibilizada, você pode trabalhar 12, 14 horas no dia, aumentando mais a sobrecarga de trabalho. Colocou também o trabalho intermitente, que é aquele trabalhador que assina um contrato com a empresa, não recebe salário, 13º, férias. Ele recebe por aquilo que produz. Ele assina um contrato com a empresa. Eu sou formada em Serviço Social. Já vi muitos profissionais da minha formação assinarem contrato intermitente. O profissional é chamado para fazer um parecer social, por exemplo, e recebe por aquilo que produz. Fora as outras mudanças absurdas que a reforma trabalhista trouxe.
Nesse cenário de flexibilização do mundo do trabalho, como fica a organização dos trabalhadores e trabalhadoras?
As centrais sindicais fizeram uma mobilização de certa forma tímida, ao meu ver. A nossa expectativa com o governo Lula era de que todas essas reformas que aconteceram fossem abolidas. Não foram. Mas eu vejo as centrais sindicais pouco mobilizadas. O que vejo é a mobilização desses movimentos espontâneos da juventude, como a Vida Além do Trabalho (VAT). A última grande manifestação que teve foi em 15 de novembro de 2024, eu fui, as centrais sindicais estavam lá, mas foi muito puxado por essa juventude que foi às ruas. É importante enfatizar que em 2025 acontece a 5ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora e certamente esse debate vai estar inserido. Estão acontecendo as conferências locais. Essa discussão vai surgir, até porque o tema deste ano é a saúde do trabalhador e da trabalhadora como direito humano.
A escala 6 x 1 se refere a trabalhadores com carteira assinada, mas tem um grande universo de trabalhadores informais que não estão cobertos por esses direitos. Como eles ficam?
Segundo a Pnad de 2022, nós temos hoje no Brasil 39% da classe trabalhadora na informalidade. Então esse é um desafio enorme. São trabalhadores que não têm nenhum direito trabalhista e previdenciário. Estão aí nessa jornada 7×0, caso se acidentem não tem direito a afastamento pelo INSS e a maioria deles não entram na estatística, em termos de dados epidemiológicos, em relação a acidentes de trabalho. Um camelô, por exemplo. Aqui no município do Rio temos um movimento muito importante: o Movimento Unido dos Camelôs (Muca). Eles lutam para serem reconhecidos como trabalhadores e trabalhadoras. Tanto que eles têm como mote: “Camelô também é trabalhador”. Se eles sofrem violência, em especial a repressão da Guarda Municipal, e dão entrada num hospital de emergência, se for olhar no boletim de atendimento, não entram na estatística como trabalhadores. A luta em especial desses trabalhadores informais, como entregadores por aplicativo, motofretistas que quando sofrem acidentes de trânsito não entram na estatística como acidente de trabalho, é serem reconhecidos. A gente tem um desafio muito grande na saúde, que é melhorar esses dados. Sem dados, como vamos trabalhar com políticas de atenção e prevenção?
Sem comentários