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No Morro dos Macacos, favela da Zona Norte do Rio de Janeiro, Alisson Sampaio Lisboa se deparou com o sonho e as dificuldades em ser médico de família e comunidade. Formado em Medicina pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), em 2016, ele passou a maior parte da graduação ouvindo dos professores que era preciso ter uma boa formação técnica para “fugir do SUS” e ocupar os melhores postos de trabalho na iniciativa privada. Um estigma presente na formação médica brasileira, segundo Alisson, que decidiu desconstruir na prática, ao se especializar em Medicina de Família e Comunidade. “O SUS precisa não só de médicos de família e comunidade, ele precisa de todas as especialidades. Mas talvez o que tenha me afetado mais foi compreender que a atenção primária à saúde é que vai conseguir universalizar o acesso e coordenar os níveis de atenção”, explica.

Dois anos de trabalho na atenção básica da segunda maior cidade brasileira, o Rio de Janeiro, em um momento em que o prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) anunciava o fechamento de Clínicas da Família e o atraso nos salários de profissionais da saúde, fizeram com que o médico entendesse o tamanho dos desafios colocados ao SUS. Por outro lado, deram a ele um olhar mais humano e empático sobre o cuidado. “A gente compreende que as doenças não existem, o que existem são pessoas concretas doentes, que têm histórias de vida, formas de encarar o adoecimento e expectativas, com toda a sua subjetividade”, avalia Alisson, que também é integrante da Rede de Médicos e Médicas Populares (RMMP) e mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Como médico do SUS, ele aprendeu a ouvir. “Na atenção primária, quando fui para o chão de fábrica, eu vi que as pessoas gostavam da minha forma de atender, diziam que eu sabia escutar mais do que julgar”, relata. Ao ouvir e se colocar no lugar do outro, é possível entender melhor o processo de adoecimento e gerar vínculos que ajudarão no plano terapêutico. A expansão da cobertura da Saúde da Família para cerca de 70% da população é considerada uma das principais conquistas do SUS em 30 anos. Contudo, Alisson aponta problemas como a falta de um plano de carreira para os profissionais do SUS, que garanta boa remuneração e estabilidade no emprego, e evite atrasos salariais e vínculos frágeis mediados por organizações sociais (OS). “No Rio de Janeiro, trabalhei de 2018 a 2019 e cheguei a passar dois meses ininterruptos sem receber salário. Como você fixa um médico de família no SUS dessa forma?”, questiona. 

Para o médico de família e comunidade, os desafios colocados ao futuro do SUS “são essencialmente políticos e econômicos”, mas ainda é possível reverter esse placar desfavorável. “Vai ser muito importante que a academia continue produzindo ciência, mas que esteja na luta junto com os movimentos sociais, em diálogo com a população, para que o projeto histórico da Reforma Sanitária possa voltar a ter protagonismo na sociedade”, defende.

Leia a entrevista completa do médico de família e comunidade, que é parte da reportagem de Radis para a edição de dezembro sobre o papel do SUS na vida da população brasileira.

Gostaria de começar pela sua própria experiência com o SUS. Por que você escolheu trabalhar no SUS? 

Sou de uma família de classe média, sempre tive plano de saúde, e antes de entrar no curso de Medicina não sabia muito bem o que era o SUS. Se alguém me perguntasse o que era o SUS, viriam na minha cabeça palavras como desespero, precariedade, fila, falta de medicamento. Quando entrei no curso de Medicina, os próprios professores sempre reforçaram uma visão negativa do SUS. E pior ainda: a necessidade de a gente ter uma boa formação técnica, um bom currículo, para que ocupasse os melhores postos de trabalho e não precisasse depender do SUS para nosso sustento. Não houve um estímulo para trabalhar no SUS. Com a medicina de família e comunidade, só tive contato três ou quatro meses durante o internato, de maneira bastante pontual. Tive mais contato por meio do movimento estudantil, quando comecei a compreender o que se passava para além da minha bolha de classe média, a necessidade de se pensar um sistema universal de saúde para todos, de forma não segmentada. 

Como a atuação com medicina de família e comunidade e na saúde pública marcou sua trajetória? 

O SUS precisa não só de médicos de família e comunidade, ele precisa de todas as especialidades. Mas talvez o que tenha me afetado mais foi compreender que a atenção primária à saúde é que vai conseguir universalizar o acesso e coordenar os níveis de atenção. É a medicina de família e comunidade que consegue analisar outros aspectos do adoecimento e da saúde, e da vida das pessoas. Durante o curso de Medicina, eu me senti muito um peixe fora dágua, porque achava um curso muito tecnicista, centrado no hospital, e a medicina de família traz uma perspectiva mais humanizada do atendimento e mais compreensiva. A gente compreende que as doenças não existem, o que existem são abstrações que a medicina criou. O que existem são pessoas concretas doentes, que têm histórias de vida e formas de encarar o seu adoecimento, e têm também expectativas, com toda a sua subjetividade. Na atenção primária, quando fui para o chão de fábrica, eu vi que as pessoas gostavam da minha forma de atender, diziam que eu sabia escutar mais do que julgar. A habilidade de comunicação e alguns princípios da medicina de família deveriam ser mais ensinadas no curso de graduação. Para mim, foi muito importante fazer residência.

Que visões, afetos, angústias e expectativas você construiu sobre o SUS e que experiências foram ou são marcantes para você?

Você não nasce com empatia, você aprende a ser empático. Isso é uma coisa muito importante que eu aprendi na medicina de família: aprender a ouvir as pessoas e a me colocar no lugar delas, a partir daí você consegue entender melhor o processo de adoecimento e isso gera vínculos, com um melhor plano terapêutico. A gente tem um retorno muito importante dos pacientes. Ao mesmo tempo que vejo como algo muito importante, tenho duas angústias: a primeira é essa característica de que o médico de família faz tudo, tem que saber de tudo um pouco e às vezes de tudo muito, e isso sobrecarrega a gente e é um desafio, de ser bom em todas as grandes áreas da medicina; em segundo lugar, muitas vezes o não reconhecimento por parte dos gestores da importância do médico de família e da atenção primária. No Rio de Janeiro mesmo, eu trabalhei de 2018 a 2019 e cheguei a passar dois meses ininterruptos sem receber salário. Como você fixa um médico de família no SUS dessa forma? Eles precisam pagar suas contas. Sem ter seu salário caindo na conta, é impossível fazer um planejamento. Apesar dos avanços, pois hoje temos uma cobertura de quase 70% de atenção primária, ainda temos grandes dificuldades relacionadas à precarização dos nossos vínculos de trabalho, à terceirização, à questão das metas que devemos cumprir, e nos pequenos municípios tem a questão do assédio dos prefeitos e vereadores que acabam loteando as áreas para conseguir facilidades para seu eleitorado.

Na sua visão, entre aquilo que se almejou no marco da Constituição e aquilo que se implantou de fato nos 30 anos seguintes, quais foram as principais conquistas e as maiores limitações do SUS?

A expansão da Estratégia Saúde da Família foi muito importante: uma atenção primária à saúde (APS) com orientação territorial e comunitária, com competência cultural, com os agentes comunitários de saúde, com o Núcleo Ampliado de Saúde da Família (Nasf) e uma perspectiva de trabalho multiprofissional. Isso é uma diferença muito grande da APS brasileira em relação a outros sistemas universais de saúde do mundo. Inclusive na área de saúde mental, tem psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, isso foi fundamental para o processo da luta antimanicomial, para a gente pensar no cuidado dos pacientes, tanto de transtornos leves quanto graves. A adoção dessa lógica territorial, mais próxima dos serviços, mostra que diminuíram as internações em hospitais psiquiátricos e idas ao serviço de urgência psiquiátrica. Outra conquista importante foi o programa de HIV/aids, cujo tratamento é feito todo no sistema público de saúde. Pacientes do setor privado, quem tem plano de saúde ou não tem, vai se tratar no SUS. O tratamento da tuberculose, os transplantes, a Política Nacional de Medicamentos são outros pontos importantes. O SUS, apesar de todos os desafios, não possui copagamento. Existem sistemas universais de saúde na Europa em que nem tudo é 100% público, em que você tem que pagar por alguns tipos de medicamentos ou procedimentos. No SUS não, é tudo 100% gratuito para os pacientes. A atenção à saúde bucal também foi um avanço muito importante no SUS, tanto nos centros de especialidades odontológicas (CEO) quanto na atenção primária. 

E como um cenário de desfinanciamento e cortes prejudica a saúde pública?

Talvez a principal limitação do SUS seja a questão do financiamento. Hoje nós temos 3,5% do PIB investido na saúde pública e 4,5% são gastos privados. Aí entra desde plano de saúde, desembolso direto de uma consulta, compra de medicamento ou fazer um exame na esquina. Isso é uma contradição muito grande, pois nos sistemas universais de saúde no mundo a proporção entre gasto público e privado é muito diferente. 80% dos gastos em saúde na Inglaterra são públicos, já no Brasil a maior parte dos gastos são privados. Se pegarmos tudo que é gasto com saúde, público e privado, dá um pouco mais de 9% — é um valor alto. Mas o que a gente investe no público é muito aquém do que a gente necessitaria para ter um sistema universal de saúde. Isso gera precarização dos serviços e insuficiências. O principal avanço talvez tenha sido a expansão da atenção primária, mas e depois? O que fazer quando a atenção primária não consegue resolver, quando precisa fazer uma cirurgia, uma consulta especializada ou um exame mais caro? Esse é um gargalo: as especialidades e os exames de mais alto custo. Outro gargalo importante é a articulação com o setor privado. 

Em que sentido o setor privado representa uma ameaça ao SUS?

Está previsto na Constituição, no artigo 199, que a saúde é livre à iniciativa privada e o privado deve atuar de forma complementar ao público. Mas o que aconteceu na prática, ao longo desses 30 anos, foi uma complementaridade invertida: o público complementa o privado. Um exemplo: o cara estava jogando futebol, ferrou o joelho e procura um ortopedista numa clínica popular da esquina. O ortopedista examina, pede uma ressonância, mas o cara não tem plano de saúde ou o plano não cobre, então ele tem que procurar o SUS. Nós, como médicos de família, recebemos muito exame do setor privado, para que a gente transcreva e a pessoa possa entrar na fila do SUS. Que resolutividade é essa que o setor privado está tendo? Hoje se fala que 24% da população é coberta por planos de saúde. E os empresários do setor saúde dizem que, se expandir os planos de saúde, seria bom para o SUS, porque desafogaria. Mas que desafogamento é esse que não estou vendo na atenção primária? Não existe uma relação harmônica entre o público e o privado. Há uma relação muito forte no país com o privado, não são só por meio das organizações sociais (OS). As linhas de crédito e de empréstimo que o governo federal fez às instituições filantrópicas, às Santas Casas, aos planos de saúde: só esse ano foram feitas duas linhas de crédito, da Caixa e do BNDES, uma de 5 bilhões e outra de 2 bilhões. Fora as desonerações fiscais: de 2003 a 2018, a desoneração fiscal, ou seja, a dívida das empresas de planos de saúde com o SUS foi de cerca de 440 bilhões de reais. Se formos ver por ano, equivale a um terço do orçamento do Ministério da Saúde anualmente. Vultosos recursos públicos estão sendo transferidos para o setor privado pela complementaridade invertida, seja direta ou indiretamente, por meio das desonerações, e isso enfraquece o SUS, pois é uma forma de privatização.

Em que medida as políticas de contingenciamento, que acompanham a EC 95, têm resultado em precarização para os trabalhadores do SUS e em prejuízos para a atenção à saúde da população?

Em 2016, quando estava sendo votada a EC 95, os parlamentares no Congresso Nacional falavam que não seria retirado nenhum recurso da saúde. O que era uma grande mentira. Se formos ver o projeto de orçamento para a saúde, para 2021, há uma perda de 35 bilhões de reais. Por que é importante que, a cada ano, a gente cresça os recursos para a saúde acima da inflação e acima das necessidades de saúde da população? Porque a população brasileira está crescendo e demanda mais serviços de saúde, demanda mais médicos, enfermeiros, profissionais de saúde, mais medicamentos, hospitais. E a população está envelhecendo. Estamos num processo de transição epidemiológica nos últimos 40 anos, com cada vez mais prevalência de doenças crônicas não transmissíveis, câncer, hipertensão, diabetes, infartos. Fora as causas externas, como vítimas de violência urbana, acidentes de trânsito, e as próprias epidemias de doenças transmissíveis e agora a pandemia de coronavírus sobrecarregando o sistema de saúde. A gente precisa de mais recursos, não podemos congelar. O SUS passou por um subfinanciamento desde o seu surgimento. O orçamento nunca foi suficiente. Hoje se estima que, para as necessidades do SUS, teriam que ser investidos 10% das receitas correntes brutas da União e hoje estamos muito aquém disso. A partir de 2016, com a EC 95, entramos numa nova fase: o desfinanciamento. A população cresce e envelhece, a demanda por serviços de saúde aumenta, mas se diminuem os recursos para a saúde. Isso precariza, porque na medida que a população aumenta e a pressão assistencial cresce, não estão sendo construídos mais postos de saúde, não estão sendo expandidas as equipes de Saúde da Família, os médicos cubanos foram embora e não estão fixando profissionais em áreas de difícil provimento, como distritos sanitários indígenas e periferia das grandes cidades e interiores do Brasil. Afeta diretamente na qualidade dos serviços que nós, trabalhadores da saúde, oferecemos à população, porque sobrecarrega. Além disso, ao não expandir os recursos para a saúde, como vai ser a manutenção do ambiente físico? A tendência é que as unidades de saúde fiquem cada vez mais sucateadas, falte medicação e as filas para uma consulta, tanto na atenção primária quanto especializada, aumentem.

Uma das principais conquistas do SUS é a Saúde da Família. Porém, a atenção básica tem sofrido um progressivo desmonte desse modelo, desde a PNAB de 2017, o novo modelo de financiamento e o Programa Previne Brasil — e recentemente, o Decreto 10.530 previa parcerias privadas nas UBS. Que desafios estão colocados para a atenção básica e a Saúde da Família?

Nós temos um desafio muito grande na formação de recursos humanos para a atenção primária. Com a lei do Mais Médicos (lei 12.871 de 2013), surgem as novas diretrizes curriculares nacionais para os cursos de Medicina, que colocam a importância da integração ensino e serviço e as habilidades e competências que os médicos devem ter ao sair do curso de Medicina. De forma geral, a formação na área da saúde ainda é muito centrada no hospital e nas especialidades, principalmente os cursos de Medicina. O imaginário do estudante de Medicina é fazer aquela especialidade que faz procedimento, em que se é remunerado por procedimento, porque você consegue ganhar mais, independente se essa remuneração é melhor para o sistema ou não. O serviço de atenção primária tem a remuneração salarial, para evitar distorções — como acontecia no Inamps [Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social, anterior ao SUS], em que ocorria parto em homem, cirurgia em morto, todo tipo de corrupção possível. Quanto à formação de recursos humanos, precisamos avançar nas reformas curriculares nos cursos da área da saúde para ter uma integração e participação no currículo cada vez maior da atenção primária. Mas isso é insuficiente se não há um plano de carreira para os profissionais de saúde, se não tiver uma boa remuneração e estabilidade no emprego. Ter que ser funcionário de OS, com salários atrasados, é uma dificuldade muito grande. 

Como a precarização é sentida na atenção primária?

Na atenção primária do Brasil, temos centros de excelência. Mas temos lugares em que não se faz Saúde da família, o que se faz é pronto socorro, de queixa-conduta, mas não é uma UPA, é um posto de saúde sem qualquer retaguarda. Como pensar a atenção primária como porta de entrada, se não há uma casa, somente a porta? E o depois? O que a gente da atenção primária não conseguir resolver, para onde vai? A resolutividade tem um certo teto. De fato, a mudança da PNAB em 2017 e o Previne Brasil são um problema, porque reforçam um modelo centrado no médico, diminuem recursos para o Nasf, porque na realidade não coloca obrigatoriedade do gestor em botar um bloco de financiamento para o Nasf. Coloca um bloco de financiamento para a Saúde da Família e deixa a cargo do gestor decidir onde ele vai gastar os recursos. O gestor vai escolher o médico, porque é ele quem dá atestado, quem receita, quem encaminha. Para ganhos eleitorais mais imediatistas junto à população, é muito mais interessante para o gestor organizar dessa forma. Fora a forma de captação que não é mais pela população adscrita no território, mas pela população cadastrada. Isso é um desastre enorme que vai gerar efeitos de desfinanciamento por causa desse novo modelo de APS.

Que melhorias são necessárias na formação dos profissionais para o SUS?

A gente precisa formar bons técnicos, não é somente na questão humanista. A gente precisa formar profissionais de saúde resolutivos. Precisa qualificar a integralidade do sistema de saúde. Temos que fazer pequenas cirurgias no serviço de atenção primária, implantar DIU, inserir práticas integrativas e complementares. Não pode ser somente a consulta médica, tem que ser muito além disso. Falando da Medicina, que é a minha área, acho que a formação profissional foi duramente afetada a partir do impeachment da presidente Dilma e com o fim do Mais Médicos, porque havia uma previsão de universalização da residência médica no Brasil, com 40% das vagas destinada à Medicina de Família e Comunidade. No primeiro ano do governo Temer, isso já foi bloqueado. Do total de vagas de medicina de família, apenas 30% são ocupadas. Por mais que existam ilhas de residências médicas em que há uma complementação de bolsas pela prefeitura, como é no Rio de Janeiro, Florianópolis, João Pessoa, Natal e Porto Alegre. Mesmo o residente de Medicina de Família e Comunidade ganhando 10 mil reais, muitos ainda não querem fazer medicina de família. Não é uma questão somente salarial. É um plano a longo prazo na vida do médico de que ele vai ser empresário, vai ser milionário e que vai ser o House ou Grey’s Anathomy da vida. 

Entre as ameaças e a defesa do direito à saúde, o que esperar do futuro do SUS?

Os desafios do SUS são essencialmente políticos e, claro, econômicos. Veja o que foi o golpe de 2016. De lá para cá, tivemos só retrocessos. Com a EC 95, deixou-se de expandir os serviços de saúde e se precariza ainda mais. Muitas vezes se demite equipe, como se demitiu no Rio de Janeiro. Há medidas de fortalecimento do setor privado, como foi a proposta do Ricardo Barros em 2016 de planos acessíveis e populares de saúde, subsidiados pelo Estado. De certa forma esse decreto 10.530, que está vinculado ao programa de privatizações do governo federal, junto com a Adaps [Agência Para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde], tem essa perspectiva de fazer uma aproximação entre o público e o privado, para que o Estado cumpra apenas o papel de regulador e não necessariamente de provedor dos serviços, de contratar serviços de atenção primária e de telemedicina. As empresas têm um papel muito importante na política porque elas financiam campanha. Veja o Eduardo Cunha que recebeu 17 milhões de reais na campanha em 2014. Foram mais de 400 milhões de reais investidos — porque a palavra é essa — nas campanhas dos deputados. A gente não tem dados da última eleição, mas isso continua, seja através de caixa dois. E os parlamentares acabam aderindo à agenda dessas empresas. 

E em relação ao cenário político e social, por que a defesa do SUS se faz tão necessária?

Para além da questão econômica, tem questões importantes que dizem respeito aos direitos humanos e ao modelo assistencial. Desde Temer, já havia um apontamento de mudança na Política Nacional de Saúde Mental, como um retrocesso. Com Bolsonaro isso se aprofundou: o repasse de mais recursos para as comunidades terapêuticas. Do ano passado pra cá, aumentou 95% o destino de recursos públicos para as comunidades terapêuticas, que não são serviços do SUS e não têm necessariamente profissionais de saúde, que têm baixa regulação do Estado e geralmente são entregues a grupos religiosos vinculados ideologicamente ao governo federal. Bolsonaro tem uma perspectiva neofascista. Não é somente um governo neoliberal com o Paulo Guedes no Ministério da Economia. O fascismo é um movimento conservador de massas em que o objetivo estratégico desse movimento é tomar o poder de Estado. Isso ainda não aconteceu, o que existe no Brasil é uma democracia em crise. E o Bolsonaro atingiu um índice de aprovação muito grande, agora já decaiu, fica flutuando, mas é importante entender que os conchavos com a direita mais fisiológica não é uma concessão estratégica do bolsonarismo. O bolsonarismo continua com a perspectiva reacionária, mas há um recuo tático para que daqui pra frente ele possa retomar sua agenda — que é a agenda de desacreditar as vacinas, por exemplo, e isso vindo do presidente da República causa um efeito no imaginário da população, que é de confiança a partir do grande impulso do Programa Nacional de Imunizações (PNI). É um modelo de morte, de encarceramento de pacientes com transtornos psiquiátricos, casado com um projeto empresarial da psiquiatria, casado com a misoginia e com o machismo e o fortalecimento do patriarcado. Até na garantia dos abortos legais está se querendo retroceder. Recentemente, no caso de uma criança que foi estuprada por um familiar, houve uma mobilização bolsonarista dizendo que ela era uma assassina. Essas mudanças são muito graves em nossa sociedade, pois constituem uma afronta aos direitos reprodutivos das mulheres e aos direitos humanos. As mudanças na política econômica e na política de modo geral serão um grande desafio daqui para frente e vai ser muito importante que a academia continue produzindo ciência, mas que esteja na luta junto com os movimentos sociais, em diálogo com a população, para que o projeto histórico da Reforma Sanitária possa voltar a ter protagonismo na sociedade.

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