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  1. Editorial

Sobre dor e boiadas

“Imagino o sofrimento, o ecoar da dor, as lágrimas. O olhar rogando por misericórdia”. Estas frases tiradas de um poema de Sarah Figueiredo traduzem o que o fotógrafo Peter Ilicciev registrou com suas lentes e o sentimento provocado em quem se importa: a dor de ver paisagens da planície inundável substituídas por um cemitério de cinzas, com onças, jacarés, pássaros e uma infinidade de outros animais mortos, resultado de crime ambiental, mudanças climáticas e do descaso que precariza órgãos de fiscalização, com o agravante da falta de equipamentos para pantaneiros e brigadistas florestais combaterem o fogo e de forças-tarefa anti-incêndio. Tanta destruição mostra a urgência de investimento em técnicas preventivas contra queimadas no Pantanal e em outros biomas brasileiros, além da punição de grileiros que desmatam e de grandes pecuaristas que usam o fogo para limpar a pastagem.

A extensão da pecuária e da soja no Brasil Central é desejada também pelo agronegócio que não se importa em incinerar o futuro de gerações, desde que haja o lucro farto. É hora de “passar a boiada”, segundo recomendação da maior autoridade do Ministério do Meio Ambiente, e investir para o Congresso flexibilizar normas ambientais. Não há preocupação com justiça ambiental que preserve a vida de quilombolas, indígenas, pescadores artesanais, enfim, dos povos que vivem da terra e dos rios. 

Não há desconexão entre o meio ambiente e o ser humano. A destruição de um e outro provocará igualmente dor porque todos fazem parte de um todo. 

O Brasil está sendo queimado, e não são só as florestas e o Cerrado. Somos todos nós. 

O ano de 2020 será lembrado por décadas. Há nove meses o país e o mundo vivem uma tragédia diária com a covid-19. A pandemia que alcança sobretudo favelas, quilombolas, aldeias indígenas e outras populações em vulnerabilidade também pode deixar sequelas e adiar o tratamento de pessoas com doenças negligenciadas, como relatado nesta edição de Radis. Mais do que nunca, a saúde pública, gratuita e universal é prioridade e combater a covid-19 é defender o SUS, legado da Constituição de 1988. 

O autoritarismo — que assola o país com preconceito e indiferença pela vida, ignora a importância do SUS, negligencia a necessidade do uso de máscara e de distanciamento social e indica medicamento comprovadamente ineficaz contra o vírus — agora busca liderar campanha de desinformação, usando a vacina como instrumento de disputa política no lugar da orientação da ciência. A vacina precisa ser encarada como conquista civilizatória e não de uma política rasteira. A palavra final deve ser da ciência. Cientistas e população precisarão dialogar; e informação e transparência será fundamental para conquistar todos os corações e mentes, afinal vacinar-se envolve responsabilidade não apenas diante de si, mas de todos. 

O mesmo autoritarismo vigente também delegou ao Ministério da Economia o estudo e a formatação de parcerias privadas para a atenção básica. Felizmente a “boiada sanitária” que abriria a porteira para a privatização da saúde pública foi abortada graças à reação de entidades do controle social e da população como um todo. Infelizmente haverá sempre ameaças de boiadas sanitárias e ambientais enquanto a empatia, o espírito público e as convicções democráticas forem atributos ausentes no comando do Brasil.

Em novembro, a saúde pública do Brasil perdeu um de seus maiores defensores. Morre Hesio Cordeiro, precursor do SUS que, já em 1976, imaginava mudanças na saúde que levassem à universalização de serviços — o que, em 1988, concretizou-se com a Constituição. “Transformem os atos médicos lucrativos em um bem social gratuito à disposição de toda população”, apontava o manifesto “A questão democrática na área da saúde”, de 1976, que chamava a atenção para a privatização dos serviços de saúde promovida pela ditadura.  Muitos foram os cargos que Hesio ocupou, desde a presidência do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) até consultor da Organização Pan Americana de Saúde (Opas). Mas, para os que o conheceram e tiveram a sorte de partilhar de seu entusiasmo e ideais, o maior legado foi a luta pela criação do SUS. Nós, do Programa Radis, que acreditamos e defendemos o SUS, agradecemos pelos ensinamentos e inspiração. Valeu, professor Hesio!

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