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A interseccionalidade, como percepção da incidência de diferentes atravessamentos e marcadores sociais sobre indivíduos e coletividades, que resulta em sua condição de existência diante das realidades, se mostra evidente em nossa reportagem de capa e nas demais matérias desta edição.

A ONU estima que há mais de 50 milhões de mulheres e meninas deslocadas em todo o mundo, o que representa mais da metade da população mundial de refugiados. Elas enfrentam grandes desafios e têm necessidades de saúde amplificadas pela vulnerabilidade, conforme revela o Projeto ReGHID sobre a reparação de desigualdades de gênero das mulheres e adolescentes deslocadas em contextos de crises prolongadas nas Américas Central e do Sul. Um dos processos investigados é o trânsito de venezuelanas em direção à Colômbia e ao Brasil, que tem como desdobramento uma pesquisa coordenada pela Fiocruz e pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), sobre a situação no Brasil. Desde 2016, cerca de 7 milhões de pessoas, metade delas mulheres e meninas, deixaram a Venezuela em função de más condições de vida, intensificadas por questões econômicas e políticas internas e pelo bloqueio econômico imposto pelos EUA ao país desde 2017.

Até janeiro de 2023, o Brasil recebeu 414 mil refugiados e migrantes venezuelanos. Durante Encontro sobre direitos sexuais e reprodutivos de mulheres migrantes realizado em julho, em Manaus, o repórter Adriano De Lavor entrevistou as coordenadoras da pesquisa brasileira, gestores e profissionais de saúde. Ouviu especialmente as migrantes. Em depoimentos contundentes, Rossmari, Yesca, Solange, Eudismary, Ivone e Geisy falam dos dilemas de deixar seu país, riscos da jornada, dificuldades e entraves atuais. Reforçam o que as pesquisas indicam. As venezuelanas migram para o Brasil em busca de alimento (54%) e serviços de saúde (37%), para fugir de insegurança e violências (27%) e com o sonho de oportunidades de trabalho (23%).

Racismo alimentar é o que sintetiza a reportagem de Jesuan Xavier sobre pesquisa realizada no Rio de Janeiro, em 2022. O Mapa da Fome revela que o perfil das pessoas que passam fome na capital carioca corresponde às desigualdades no país. “As famílias que têm insegurança alimentar grave são aquelas com chefia feminina, pessoa preta ou parda, menor escolaridade, desempregada e com menor renda, inferior a um quarto do salário mínimo per capita”, resume Rosana Salles-Costa, pesquisadora da UFRJ.

O aumento exponencial de queimadas em período de seca, agudizado pelas mudanças climáticas, vem destruindo florestas primárias e biomas, ameaçando cidades e tornando irrespirável o ar em vastas regiões. As chamas que consomem o Brasil revelam interesses econômicos e políticos criminosos por trás dos focos coordenados e simultâneos de incêndio. Requerem investigação, detenção e punição exemplar dos ateadores de fogo e seus mandantes.

No cenário internacional, o que ocorre na Palestina indica um novo ciclo histórico de profunda desumanização do outro. Sob os bombardeios das forças israelenses, a população civil palestina em Gaza (2,1 milhões) vagueia por um território devastado, sem casa, comida ou água, impedida de receber ajuda humanitária e sendo repetidamente atacada em escolas, hospitais, igrejas ou tendas em que se abrigam.

Até agosto, segundo a Federação Árabe Palestina do Brasil, cerca de 50 mil palestinos haviam sido assassinados (10 mil deles desaparecidos sob escombros), dos quais mais de 20 mil eram crianças e 12 mil mulheres. Calculava-se mais de 96,8 mil feridos, grande parte mutilados. Hospitais foram destruídos, com 885 profissionais de saúde mortos. Escolas também, com 9, 5 mil estudantes e 496 profissionais de educação mortos. Chega a 203 o número de funcionários da ONU mortos. Quem reporta os horrores do genocídio está sob a mira dos israelenses. Eram 165 os jornalistas assassinados até agosto, segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras.

A pesquisadora e escritora baiana Carla Akotirene (UFBA), ao falar sobre “Reparação histórica, desigualdades e a construção do comum”, tema das comemorações dos 70 anos da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), em setembro, defendeu a apropriação da interseccionalidade como um conceito e uma metodologia essenciais para a compreensão, reparação e superação das desigualdades de raça, classe, gênero, religiosas, etárias, étnicas e territoriais, entre outras presentes em instituições e estruturas sociais.

São desigualdades que saltam aos olhos de quem lê a revista Radis. Na seção Voz do Leitor, Andréa Litote comenta uma reportagem sobre voluntários da Força Nacional do SUS, publicada em junho de 2023 pela Radis: “Vou lendo e relendo aleatoriamente porque penso que essas matérias são atemporais e a qualquer tempo a gente aprende, se emociona e se sente mais viva”. As palavras da leitora Andréa nos animam, porque consciência crítica e mudanças reais não acontecem de um dia para o outro e as desigualdades e injustiças precisam ser enfrentadas e superadas no Brasil e no mundo.

■ Rogério Lannes Rocha, Coordenador e Editor-chefe do Programa Radis

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