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“Passou, matou e nada se fez. O Brasil é complicado”. Todo início de novembro constato com tristeza que essa avaliação continua atual. Ela foi compartilhada comigo em uma tarde nublada por Andrea Krenak, enquanto olhávamos as águas poluídas do Watu — ou simplesmente rio Doce. Seis meses antes, um tsunami de lama tóxica tinha passado por ali e não havia nenhum sinal de reparação à vista. Cinco anos depois do rompimento da barragem de Fundão, a sensação de injustiça é ainda pior.

Cheguei à Mariana (MG) dez dias depois do colapso da estrutura que guardava mais ou menos 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos do minério de ferro explorado pela Samarco — e, de tabela, pelas donas dessa empresa que vinham a ser as duas maiores mineradoras do mundo: Vale e BHP Billiton. Como repórter, minha tarefa era ir ao maior número de locais possível (muitos estavam bloqueados não pelo Estado, mas pela própria Samarco) conversar com pessoas atingidas por um crime socioambiental que ainda se desenrolava: a lama só chegaria à foz do Doce no dia 21 de novembro, e ao arquipélago de Abrolhos em janeiro.

Lembro até hoje de caminhar pelas trilhas abertas por tratores em uma das comunidades devastadas, Paracatu de Baixo, onde das casas só dava para ver o telhado. E da história de dona Carmem que, em um minuto, estava em casa preparando um pudim e, no seguinte, precisou testemunhar a lama engolindo seus vizinhos ao mesmo tempo em que corria para salvar a própria vida.

O cenário era de fim de mundo, mas a percepção era de que a mineração havia chegado a uma espécie de limite no Brasil. Afinal, aquilo era grande demais para ser varrido para debaixo do tapete. Ledo engano.

Seis meses depois, quando fui enviada pela revista Poli para percorrer o caminho inverso, indo da foz do rio, em Regência (ES), até Governador Valadares (MG), já dava para perceber que o poder econômico tinha recalculado a rota de atuação do Executivo, que decidira seguir a via da reacomodação de interesses.

Ao invés de seguirem com a ação civil pública contra as três mineradoras, os governos estaduais e federal concordaram rapidamente com um acordo extrajudicial que criou a Fundação Renova que passaria a gerir e executar todas as medidas de compensação, mitigação e recuperação dos danos — e seria controlada pelas próprias empresas que provocaram esses danos. Os atingidos não foram ouvidos nas negociações e, ao fim, lhes foi relegado o papel de opinar sobre as ações da fundação, nunca decidir.

Por tudo isso, não causa espanto que, cinco anos depois do rompimento da barragem, os prazos de entrega das obras que recriarão os três distritos arrasados pela lama sejam sucessivamente adiados, deixando 342 famílias em uma situação de improviso quase eterno. Não admira que chegue ao conhecimento dos atingidos de maneira casual a informação de que suas casas podem ser entregues só em 2024 — e que esses lotes estejam registrados não no nome deles, mas no da Fundação. Tampouco há sobressaltos quando chegam pela imprensa informações de que populações inteiras seguem sem ter os impactos sobre sua saúde monitorados e que comunidades sigam lutando para serem reconhecidas como atingidas.

Afinal, até hoje nenhum executivo da Samarco nem das suas controladoras foi punido. Pelo contrário: das 22 pessoas denunciadas criminalmente pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2016, apenas cinco ainda estão arroladas no processo das 19 mortes, que foram enquadradas não como homicídios, mas “crimes de inundação qualificada” — o que impede que os acusados vão a júri popular.

A busca de justiça lá fora também foi travada quando, em novembro de 2020, um juiz negou o prosseguimento de uma ação coletiva, que tramitava na Inglaterra, movida em nome de 200 mil vítimas contra a BHP Billiton. Ele caracterizou o processo como um “elefante branco”. Queria dizer que o Brasil que se vire. Não há simbolismo maior sobre o papel que ocupamos no capitalismo. Os crimes ambientais, que de lá para cá se avolumaram numa sequência que não fica devendo a nenhuma distopia, são meras externalidades.

* Editora do Outra Saúde
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