Dentre as muitas revelações sobre a história da loucura, da clínica e da medicina, Foucault nos fez saber que não foi a psiquiatria que criou o hospício; ao contrário, o hospício é que fundou a psiquiatra. O hospício é o “a priori” da psiquiatria!
No contexto da idade clássica, existiam instituições conhecidas como “grande enclausuramento”, um misto de albergue e detenção, na qual eram recolhidos mendigos, “delinquentes”, desabrigados, doentes, loucos, bêbados, enfim, pessoas vulnerabilizadas, de várias ordens. Uma espécie de instituição filantrópica com funções também de ordem social, oficialmente denominada de “hospital geral”. Philippe Pinel (1745-1826), o médico que viria a ser considerado o fundador da psiquiatria, trabalhou no hospital geral com a missão de transformar radicalmente o seu perfil, pois não seria admissível, no cenário da Revolução Francesa, persistirem instituições que perpetuassem o ancien régime.
Após a intervenção de Pinel, o hospital seria destinado apenas a acolher e tratar enfermos e sua natureza seria definitivamente mudada. Atualmente não se fala de hospital como lugar de hospedagem, de ordem pública, de reclusão social, mas apenas como instituição médica. Toda uma fundamentação “científica” será construída para justificar que as pessoas que lá permanecem o estão por razões terapêuticas e não políticas, econômicas ou sociais. Mas a realidade não foi bem assim.
Na virada da década de 1970 para 1980, ocasião na qual teve início o movimento da Reforma Psiquiátrica, existiam mais de 80 mil pessoas internadas em hospitais psiquiátricos no país. Uma pesquisa realizada na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, revelou que o tempo médio de internação era de 21 anos. A expressão “colônia” de alienados, abusivamente adotada no Brasil desde o advento da República, revela esta modalidade de institucionalização inspirada na detenção de pessoas a serem reabilitadas para a sociedade (a exemplo de suas análogas colônias penais). Mais uma vez, a realidade não foi bem assim. A Colônia de Juquery, no estado de São Paulo, tinha mais de 20 mil internos em situação de miséria e penúria.
Franco Basaglia, o psiquiatra italiano que liderou a reforma em seu país, e que serviu de base para o processo brasileiro e de muitos outros países, visitou a Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, e comparou-a aos campos de concentração nazistas.
Quando foi iniciada a desmanicomialização no Brasil, pôde-se perceber que as internações eram justificadas por muitas razões: a existência de um diagnóstico psiquiátrico era apenas uma delas, nem sempre a determinante. Mais do que um trabalho de desospitalização, seria necessário um amplo e consistente processo de desinstitucionalização. Isto é, não se tratava apenas de uma simples mudança de modelo assistencial: fechar manicômios e abrir serviços de cuidado em liberdade.
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), o acompanhamento e o cuidado em saúde mental nas equipes de Saúde da Família, as outras modalidades de cuidado, seriam insuficientes para o tamanho do problema. As pessoas internadas eram herdeiras da tradição do Grande Enclausuramento: em geral, pessoas para as quais o Estado não ofereceu políticas de proteção, promoção e defesa da vida. Pessoas que não tiveram condições dignas de nascimento, alimentação, moradia, educação, formação profissional, direitos. Eduardo Galeano poderia incluí-las na sua definição de “ninguéns”.
Enfim, mais do que a criação de serviços que pudessem oferecer cuidado real, e em liberdade, mostrou-se necessária a invenção de vários dispositivos de produção de vida, de sociabilidade, de ocupação dos espaços e possibilidades urbanas. Desta forma, foi preciso instaurar várias iniciativas de trabalho e economia solidária, de centros de convivência e cultura e de pertencimentos coletivos.
Tomou corpo um potente projeto de arte e cultura, assim como de esportes e participação social que, transcendendo os objetivos terapêuticos e de mero entretenimento, passou a significar a produção de novos sentidos e estratégias de diálogo com a sociedade, de transformação das identidades centradas na ideia de patologias, de construção de outro lugar social. Estratégias de “outramentos”, na provocação de Peter Pál Pelbart, de poder deslocar-se para outra forma de se pensar e de pensar o seu lugar no coletivo.
Também foi necessário criar projetos de residencialidade, mais do que para oferecer lugar de moradia assistida, e muito mais que criar “serviços residenciais terapêuticos”, oferecer a possibilidade de viver na cidade: de habitar e ocupar os espaços urbanos. Cada vez mais, as residências se afastam do significado de “serviços” e de “terapêuticos”, para almejarem ser dispositivos de ocupação do espaço social, do território, da pólis, da cidade, da cidadania. As residências são pontos avançados de construção de um outro lugar social para a loucura, a diversidade e os “inumeráveis estados do ser”, como Artaud se referia à complexidade da experiência humana, que a psiquiatria insiste em reduzir a doenças.
Lima Barreto começou o romance inacabado com o instigante e provocativo título “Cemitério dos Vivos”, que se refere às suas internações no Hospício Nacional de Alienados na Praia Vermelha: um cemitério onde estão enterradas pessoas vivas, porém mortas socialmente. O potente trabalho da Reforma Psiquiátrica brasileiro, com o fechamento de mais de 60 mil vagas em hospícios, a criação de um vigoroso trabalho de atenção ao sofrimento na atenção primária e nos Centros de Atenção Psicossocial, os centros de convivência, as iniciativas de arte e cultura, de geração de renda e de economia solidária, os projetos de residencialidade, nos aventa à analogia: vidas ressuscitadas!
■ Paulo Amarante é pesquisador sênior do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz. É fundador da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e um dos pioneiros do movimento brasileiro de reforma psiquiátrica.
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