Na reunião de articulação dos participantes LGBTQIAPN+ da 17ª Conferência Nacional de Saúde, ela se apresenta com bom humor. “Eu sou Pitty Barbosa, mulher travesti, sou mãe, sou avó, sou filha, sou da terceira idade, tenho 61 anos. Eu me descrevo alta, 1 metro e 83 de altura, negra, cabelos faltando um pouco, mas estamos aqui na luta em defesa do SUS”.
Sem rodeios e falando muito sério, a coordenadora da Associação de Transgêneros de Guaíba (Igualdade Guaíba), no Rio Grande do Sul, diz que está ali para defender a inclusão de travestis e transexuais nas políticas e práticas de saúde. “O SUS não é para todos; o SUS é para as pessoas brancas elitizadas, pessoas hétero”, declara, chamando atenção dos interlocutores sobre algo que diz não ter sido contemplado nas discussões e propostas da 17ª CNS: o envelhecimento de travestis e transexuais vivendo com HIV.
Integrante da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e da Rede Nacional de Mulheres Travestis e Transexuais e Homens Trans Vivendo e Convivendo com HIV/Aids (RNTTHP), a gaúcha conversou com Radis sobre a importância de incluir este e outros temas nas discussões sobre a saúde LGBTQIAPN+, quando reafirmou seu compromisso com o SUS, criticou a falta de acolhimento nos serviços e alertou para a transfobia, mesmo nos espaços de luta. “A sociedade acha que nós não devemos ocupar espaços políticos. Mas nós somos resistentes”.
Qual a importância de discutir a diversidade na 17ª Conferência Nacional de Saúde?
É uma importância grandiosa. Apesar de nós estarmos aqui em poucas mulheres travestis, mulheres transexuais, acho que no máximo 10, é um marco. Ao mesmo tempo, ainda existe muita transfobia velada sobre nós. Talvez por nós estarmos ocupando esses espaços, a sociedade hétero, a sociedade em geral, acha que nós não devemos ocupar os espaços políticos. Mas nós somos resistentes. Ninguém fala por nós, ninguém diz nada por nós. Nós falamos por nós mesmas, e é por isso que nós estamos aqui, na defesa do SUS, sim, porque nós pagamos impostos como qualquer outra pessoa, então temos esse direito.
E como tem sido defender as propostas que vocês trouxeram?
Temos encontrado muita resistência. Muitas propostas LGBT foram suprimidas, muitas não tivemos forças para manter. De todas as propostas LGBT, provavelmente vai ser aprovada uma. E assim mesmo nós estamos sentindo um golpe. Muitas de nós irão embora de manhã e não estarão aqui para a defesa das propostas à tarde. Então é possível que não passe nenhuma proposta LGBT. Em contraponto, eu pergunto: onde foram implementadas as propostas da última conferência de saúde? Cadê as propostas da 16ª? Muitas vezes eu acho que essas conferências existem mais para o governo dizer que fez. O que nós temos feito é tentar aplicar o reverso do preconceito, negociando e avançando para conquistar espaços.
“Não conseguimos implementar uma política pública sobre envelhecimento da população de travestis em lugar nenhum”
O que é possível ficar de fora do relatório final?
Não existe nenhuma proposta sobre o envelhecimento da população de travestis e transexuais vivendo com HIV. Vi pouca coisa sobre o tema, mesmo entre pessoas cisgênero. Também senti falta de temas importantes, como a anemia falciforme ou assistência aos profissionais do sexo. São guetos que permanecem escondidos. O SUS não é para todos; o SUS é para as pessoas brancas elitizadas, pessoas hétero. Nós, população de travestis e transexuais que vivem e convivem com HIV, no envelhecimento não temos chance. E mais: O SUS no interior do Brasil não funciona; O SUS no interior só funciona para quem é amigo do vereador, amigo do prefeito. A população travesti do interior que está envelhecendo e morrendo, não tem chance. Não conseguimos implementar uma política pública sobre envelhecimento da população de travestis em lugar nenhum. E nós estamos morrendo. Estamos morrendo no envelhecimento. Eu estou com 61 anos. Eu não sei se eu tenho mais um ano, dois ou três, mas eu estou aqui, resistindo e lutando para que isso aconteça.
Você se apresentou aqui na conferência como alguém que já superou as estatísticas [Dados da Antra mostram que travestis e transexuais vivem em média 35 anos no Brasil]. Como foi chegar até aqui?
Sou travesti, sou couro de cobra. Apanhei muito da polícia, apanhei muito na rua, fui presa muitas vezes. Fui puta muitos anos, sustentei um filho que um hétero colocou no mundo. Eu o criei me prostituindo, apanhando e lutando contra todas as estatísticas e contra vários atentados de morte. Eu resisti e estou aqui, resistindo e existindo. Eu digo que estou com um saldo devedor com a sociedade. Estou devendo 15 anos de vida para a sociedade, que nos mata antes dos 40.
“A fome mata as travestis. O crack mata muitas travestis”
Que outras questões relacionadas à saúde da população trans e travesti não são levadas em consideração?
O acolhimento. O acolhimento de pessoas trans e travestis é zero. Eu gostaria muito de falar sobre acolhimento, que a mídia nos ajudasse no acolhimento da população de travestis, principalmente aquela em situação de vulnerabilidade. As travestis negras, por exemplo, que são esquecidas por toda a sociedade; as que vivem em situação de rua, também. O índice de meninas vivendo hoje embaixo de pontes e nas ruas, procurando matar a fome através da droga é muito alto. A fome mata as travestis. O crack mata muitas travestis. Como matam qualquer outra pessoa. Não estou aqui vitimizando essa população, mas a sociedade está matando as travestis. Estou falando aqui de direitos. E de deveres. Direitos que nos são negados no SUS e em muitos outros setores que defendem os direitos humanos.
“Em relação à população de travestis e transexuais, falta acolhimento dentro do SUS e direitos nos são negados”
O que é urgente fazer nesse momento depois de quatro anos de um governo que não apoiava a diversidade?
O Brasil ainda não saiu da UTI. Ainda existe muito retrocesso e o que a gente vê é apenas uma maquiagem. Em relação à população de travestis e transexuais, falta acolhimento dentro do SUS e direitos nos são negados. Conseguimos algumas coisas, como uso do nome social, mas ainda temos muito que conquistar. Temos a lei anti-homofobia, mas embutida na lei antirracismo. Queremos uma lei própria, que nos garanta a voz. Não queremos que outros falem por nós.
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