A

Menu

A

Na reunião marcada para organizar uma estratégia comum de participação de delegados que representavam o amplo leque LGBTQIAPN+ na 17ª Conferência Nacional de Saúde, Sophie Nouveau Guerreiro se apresenta como ativista trans, travesti e pesquisadora. Ela chama atenção para a necessidade de os participantes lutarem para que as demandas específicas dos grupos sejam levadas em consideração e que a diversidade e a equidade sejam de fato realidade no SUS.

Prestes a se tornar a primeira enfermeira travesti formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Sophie denuncia a precariedade de atendimento às pessoas trans — e LGBTQIAPN+, em geral — no SUS e defende que o respeito à individualidade de corpos e existências beneficia a todas as pessoas. “A convivência cura”, diz à Radis, na entrevista que concedeu em Brasília, entre uma ação de visibilidade e a defesa de propostas nos grupos. 

Integrante do comitê técnico estadual de Saúde LGBT do Rio Grande do Sul e do comitê gestor do projeto A hora é Agora, da Fiocruz, ela aponta gargalos na prestação de serviços e aponta caminhos para que as demandas do grupo sejam atendidas. Colaboradora do Ambulatório Trans da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, ela explica como a falta de protocolos e diretrizes se reflete na (não) oferta do cuidado no SUS — e demanda um olhar mais inclusivo nos serviços, não somente por empatia, mas sim por garantia de direitos.

Também artista, a contorcionista Sophie avalia ainda como foi driblar com esperança os ataques à expressão e às propostas da população LGBTQIAPN+ na 17ª CNS e conta um pouco das estratégias utilizadas para que garantissem que suas vozes seriam escutadas e suas reivindicações fossem incluídas nas discussões. “A gente precisa se comprometer em fazer com que as pautas da população LGBT e de outras equidades sejam aprovadas. O SUS precisa se comprometer em dar uma resposta para toda essa violência”, avalia.

Qual a importância em discutir a diversidade na 17ª Conferência Nacional de Saúde?

A Conferência Nacional de Saúde é o momento em que uma pluralidade e uma diversidade de pessoas podem reivindicar seus direitos. Isso tem muitos significados, já que hoje a gente tem muitos pontos de adoecimento. A gente é uma população culturalmente adoecida e foi levada a adoecer porque não foi estimulada a pensar, refletir e ampliar a consciência. A gente não é estimulada a se observar de uma maneira positiva, não é influenciada a olhar para o nosso corpo e entender que nem sempre (e muitas vezes) ele não se encaixa dentro de um padrão que é colocado como ideal da sociedade.

Quais os reflexos disso?

A gente é estimulada a atacar o nosso corpo por não se sentir confortável, a não validar ou reconhecer a natureza da diversidade, a pluralidade das nossas existências. O que acontece é que a gente tem uma cultura que emprega um modelo único e normativo de corpo e de existência, um padrão social de raça, de sexualidade e de identidade. Só que a nossa sociedade vai muito além desse padrão, então existem choques. Muita gente acaba excluída, muitas pessoas que não conseguem de forma alguma se enquadrar. Essas pessoas precisam reivindicar para que sejam reconhecidas e vistas. A gente tem um padrão normativo de sociedade que é muito racista, muito patriarcal, muito LGBTQfóbico, muito machista. Em pleno 2023, ainda é preciso falar muito sobre o direito das mulheres, questões como saúde e igualdade salarial, por exemplo. Então a gente ainda está caminhando, mas ainda estamos muito distantes do que queremos. 

Como essas discussões chegam à 17ª CNS?

O cenário de preconceito e de discriminação se reflete na saúde. As pessoas vão ao serviço de saúde e não são tratadas da maneira adequada, não conseguem atendimento. Além disso, os recursos não são distribuídos de maneira igual para todas as regiões. Lá no Rio Grande do Sul, a gente tem 15 serviços para população LGBT, porque a gente lutou muito e conseguiu se organizar, mas outros estados não têm isso. Então a luta por diversidade que a gente vê na conferência nada mais é do que reflexo de pessoas que estão representando muitos grupos, muitas outras pessoas, que não necessariamente são minoria. 

Como assim?

A gente precisa ver com qual olhar a gente considera grupos uma minoria. De onde é que vem esse entendimento? É minoria de fato ou minoria de direito? É minoria ou não está dentro do padrão ideal de pessoa da sociedade? É minoria ou está colocada à margem, está empurrada para a vulnerabilidade e para a marginalidade, para a falta de acesso aos direitos humanos? A gente encontra no espaço da conferência tantas pessoas e tantas reivindicações, povos indígenas, pessoas LGBT, pessoas com deficiência… Isso nada mais é que a resposta de um processo anterior de negação de direitos, que é muito mais antigo do que os últimos quatro anos. Então essa conferência tem um caráter de busca por humanização. A gente quer que o corpo da pessoa trans seja respeitado, um corpo que sempre existiu e sempre esteve presente na natureza, mesmo que com outros nomes. Pessoas LGBTs no Brasil já nascem condenadas. 

De que modo?

Elas geralmente são estimuladas a não estar na família e na escola; são colocadas como problema, apontadas como doença. Elas são expulsas dos ambientes de formação porque não suportam a discriminação e o preconceito. Qual é a média de idade em que as pessoas trans são expulsas de casa? Pelos dados da Antra [Associação Nacional de Travestis e Transexuais], elas são expulsas aos 13 anos de idade. Eu fui expulsa com 11. Então é preciso cobrar por mais saúde. Lá em Porto Alegre a gente fez um mapeamento de todas as unidades básicas de saúde para a gente conseguir construir a política municipal de saúde. O que a gente observou foi que em 40% dessas unidades as pessoas trans não tinham acesso. Em muitas delas, elas eram barradas na porta. A pesquisa confirmou o que a gente já sabia que acontecia.

“A gente não vive em uma sociedade onde as pessoas são tratadas de forma igual; a gente já parte de um local de desigualdade”

O que as pessoas trans trouxeram à conferência?

O que a gente traz à Conferência Nacional de Saúde é o esperançar. Porque a gente precisa que as pessoas, de alguma forma, se comprometam conosco. Os direitos da população LGBT são muito novos e ainda não existe uma segurança, não existe uma legislação que os garanta. A Constituição não coloca o nosso nome. Para a gente ser lembrada, a gente precisa estar descrita. A população negra precisa, os povos indígenas precisam, as pessoas com deficiência precisam, as pessoas LGBT e as pessoas trans também precisam, porque se a gente não se coloca, a gente cai na utopia de achar que todo mundo é igual. Mas a gente não vive em uma sociedade onde as pessoas são tratadas de forma igual; a gente já parte de um local de desigualdade. Desde que a gente nasce é vista como um problema, como uma doença. Por isso a gente não consegue permanecer nos espaços. Essa conferência precisa se comprometer em aprovar as pautas da população LGBT e de outras equidades. O SUS precisa se comprometer em dar uma resposta para toda essa violência que já existe há muito tempo. 

“O SUS precisa se comprometer em dar uma resposta para toda essa violência que já existe há muito tempo”

Como essa violência se reflete em dados de saúde?

Quais são os dados epidemiológicos da população LGBT? Índices elevados de doenças e infecções sexualmente transmissíveis — que têm um porquê, são reflexos de uma conjuntura estrutural que coloca esses corpos para dentro de um local de precarização da vida e de maior índice de prevalência de doenças sociais, onde eu coloco também a tuberculose e o HIV; índices elevados de ideação suicida e de depressão, porque desde a base a gente já foi violentado. Não é mimimi, a gente está cansada, porque é violação e violência desde que somos crianças. A gente tem que começar a pensar que não está tudo bem achar que é uma opção ou que é uma escolha ser LGBT ou ser trans; a gente precisa naturalizar que a gente existe, que a gente sempre existiu, mas que por conta de um processo estrutural, de um processo de construção social, nossos corpos foram transformados em inimigo comum. O ódio mobiliza, mas o amor também. Isso também acontece porque para manter a estrutura de poder é preciso eleger inimigos. Essa estrutura da discriminação se dá em vários países. Em Portugal, pessoas trans não são nem vistas, agora que estão começando a aparecer. Recentemente uma menina trans de lá foi queimada viva e jogada dentro de um poço, então essa não é uma questão restrita daqui. 

“O ódio mobiliza, mas o amor também”

Como delegada, como você avalia a recepção destes temas na 17ª CNS?

A recepção reflete a maneira com que a sociedade nos trata. A gente vê em várias mesas ataques à população LGBT, pessoas tentando suprimir as pautas direcionadas à equidade, seja da população negra, seja dos direitos das mulheres ou das pessoas LGBT. A gente já sabia que seria assim, porque a conferência é uma guerra de interesses, e a gente está lutando para que a nossa existência seja levada em consideração. Também existem outras pessoas que talvez, por sua conjuntura existencial, não consigam enxergar que se a gente beneficiar o outro — no sentido de reconhecê-lo e de promover a sua saúde — se a gente pensar na diversidade e na pluralidade não vamos beneficiar somente o outro, mas sim todos. É sobre corpos e existências. Quando você naturaliza o fato de as pessoas poderem se sentir confortáveis e ser quem elas são, você contribui para quebrar o paradigma de uma cultura que molda pessoas para serem e seguirem um modelo e que prega que tudo que não é daquele modelo é diferente. A gente está aqui para mostrar que saúde LGBT, saúde da população negra e saúde das pessoas com deficiência são sinônimo de pluralidade e de diversidade. Têm que ser levadas em consideração, não são problemas, mas sim solução, já que beneficiam não somente um grupo, mas toda a humanidade.

Que estratégias têm sido usadas na conferência para mudar essa mentalidade?

A gente se organizou em um ato, que reuniu pessoas LGBT do Brasil todo, quem conseguiu estar aqui, representando muitas outras pessoas — inclusive as que a gente já perdeu, porque é preciso resgatar nossa história — para fazer esse movimento. A estratégia é construir visibilidade dentro do escopo da discussão, para que a gente possa ser levada em consideração. Se não, como as pessoas vão saber que o problema existe? Na verdade, como vão ter consciência disso, se foram ensinadas a pensar que isso é uma questão imoral, se é um pecado? O que a gente está fazendo é um processo de conscientização. Esse é o momento, quando temos um bom número de pessoas LGBT, de fazer com que de fato o SUS se comprometa a fazer aquilo que ele já precisa fazer, mas infelizmente ele não faz, que é garantir acesso pleno à saúde. Dizer que a população LGBT consegue acessar de maneira plena o SUS é uma utopia, uma mentira. Mesmo nos contextos em que existem vários serviços, ainda assim, é muito complicado. 

Como isso se reflete nos serviços?

Eu mesma já procurei atendimento com suspeita de apendicite — que depois se descobriu que era um cálculo renal — e me foi dito que uma UPA não era o local adequado para atender pessoas como eu, que eu deveria ser encaminhada à psiquiatria. Lembrando: eu estava com questão renal. Esta é uma situação que mostra que talvez a gente consiga entrar nos lugares, consiga acessar os serviços, mas não existe o compromisso, o reconhecimento e nem a consciência da recusa de nossas existências. O atendimento que se dá a uma pessoa que não é LGBT, pensando aqui nos procedimentos, é muito similar, só que existe um processo que vem antes, que é o acolhimento, para que se consiga vincular e de fato cuidar das pessoas.

Qual a atitude que se espera de um profissional de saúde?

Ele tem que entender que a realidade do outro é diferente e não pensar numa perspectiva de penalização, mas na construção de caminhos. Eu, como profissional de saúde em formação, tenho consciência de que não posso falar por todos. Eu não tenho consciência do que aquela pessoa está passando, mas eu vou tentar entender, não julgar e criar um ambiente para que seja possível o tratamento. A ambientação e a humanização são importantes para que os usuários entendam que está tudo bem eles serem o que são. Eu coordenei por muito tempo os grupos de convivência do ambulatório trans. Eles têm uma potência incrível, porque convivência cura. Numa sociedade onde conviver é algo distante, violento, quando se consegue ter dentro do SUS um espaço onde as pessoas possam se enxergar, até a treta é positiva. Porque a partir dessas tretas é possível ver caminhos, construir juntos processos de cura e de fortalecimento e enfrentar adversidades. Eu falo do ambulatório trans, que já é uma realidade, um modelo que pode ser pensado para que mais pessoas possam acessar a saúde.

Em relação à política pública de saúde, o que ainda falta conquistar?

Existe uma política LGBT há mais de 10 anos, que não tem quase financiamento e que não é consolidada, porque não chega às pessoas. As pessoas esperam entre 10 e 15 anos para conseguir fazer cirurgia, são poucos os serviços distribuídos no Brasil. E o que acontece quando a gente procura atendimento e o médico se recusa a nos atender ou oferecer o nosso cuidado? Quais são as justificativas? Não existe protocolo clínico, diretriz terapêutica, e por conta disso não existe nem cuidado e nem a medicação. Então, nessa conferência, o que a gente está tentando minar essas desculpas para fazer com que as pessoas entendam que o SUS é para todas as pessoas. Se não tem um protocolo clínico, a gente cria um. Já que as pessoas não estão capacitadas, a gente dá instrumentos para que entendam que existem problemas, mas também existem soluções. Para isso é preciso instrumentalizar a política e colocar dinheiro, porque sem financiamento a gente fica só na bondade e na empatia. Vamos garantir que essa discussão seja colocada em prática para que as nossas especialidades sejam levadas em consideração. Por que ainda não existe um método e prevenção para as ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) para mulheres lésbicas e cis, e homens trans? Essas pessoas nem entram nas estratégias. No último evento que houve sobre aids, em agosto de 2022, registrou-se 8% de prevalência de HIV entre homens trans. Isso não é levado em consideração. Então vamos refletir e fazer com que isso seja obrigatório. Não por bondade, mas como algo que precisa ser feito.

Sem comentários
Comentários para: “Pessoas LGBTs no Brasil já nascem condenadas”

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Anexar imagens - Apenas PNG, JPG, JPEG e GIF são suportados.

Leia também

Próximo

Radis Digital

Leia, curta, favorite e compartilhe as matérias de Radis de onde você estiver
Cadastre-se

Revista Impressa

Área de novos cadastros e acesso aos assinantes da Revista Radis Impressa
Assine grátis