A privação da liberdade vivida por adolescentes em conflito com a lei pode reforçar os processos de exclusão e dificultar o acesso a direitos básicos, como a saúde e a educação. Essa é uma das principais conclusões de um estudo apresentado como tese de doutorado no Instituto Fernandes Figueira (IFF), da Fiocruz. Jovens — em sua maioria negros, pobres e com baixa escolaridade — enfrentam, nas chamadas unidades socioeducativas, um cenário de superlotação, negligência e descaso com a saúde, que reforça ainda mais as desigualdades que eles vivenciam no dia a dia.
O autor do estudo, o educador físico Nilo Terra Neto, constata que 60% dos adolescentes privados de liberdade, em cinco unidades socioeducativas pesquisadas no Rio de Janeiro, disseram já ter precisado de atendimento e não ter conseguido acessar os serviços de saúde dentro ou fora das unidades. Dores no pescoço, nas costas e na coluna e doenças de pele e respiratórias foram os problemas de saúde mais citados entre os adolescentes e estão relacionados à infraestrutura e à superlotação das unidades de regime fechado analisadas pelo estudo.
São considerados adolescentes em conflito com a lei pessoas entre 12 e 18 anos que tenham cometido algum ato infracional. Até atingir a maioridade, a pessoa é considerada em condição peculiar de desenvolvimento e, por isso, não pode responder criminalmente. Mas a lei tenta encontrar formas de responsabilizar esses jovens através das medidas de socioeducação, regulamentadas pelo Sistema Nacional de Medidas Socioeducativas (Sinase), conjunto de regras que orienta a socioeducação e tem como base o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
A dificuldade que esses jovens enfrentam para ter o direito à saúde garantido reflete uma realidade de exclusão que eles já conhecem bem. “A gente recebe adolescente que nunca tinha ido ao dentista”, afirma Daiane Oliveira, assistente social do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), órgão responsável pela execução de medidas de semiliberdade e internação no estado do Rio de Janeiro.
“Na prática, a legislação específica, embora avançada no que tange aos direitos, ainda não se consolidou de fato”, afirma Nilo, em seu estudo. A pesquisa, apresentada como tese de doutorado em Ciências da Saúde em 2018, indicou que a oferta de serviços não estava em conformidade nem com o panorama traçado por Daiane nem com a Política de Atenção Básica, amparada pelo Sinase. O estudo foi realizado com adolescentes do sexo masculino, em cinco unidades de internação do Rio de Janeiro.
Dores, problemas respiratórios e pesadelos
Cerca de 50% dos jovens entrevistados na época disseram que notaram uma piora em seu estado geral de saúde após a internação nas unidades socioeducativas. Os resultados foram baseados em cerca de 680 respostas obtidas dos entrevistados, que tiveram um tempo de internação médio de 61 dias.
Entre as principais queixas, estavam dores no pescoço, nas costas e na coluna, sentidas por pouco mais de 300 adolescentes. Doenças de pele também se mostraram presentes em 237 respostas. Os fatores associados apontam para a não obtenção de atendimento médico adequado na unidade, além de outros indícios. Para as dores no corpo, ter sido vítima de agressão física foi identificada como uma das prováveis causas. Inclusive, 12% dos que têm alguma lesão física permanente afirmaram tê-la adquirido após a internação, o que “sugere certa naturalidade deste tipo de violência”, diz o estudo.
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), no Panorama da Semiliberdade e Internação, publicado em 2019, cita o diagnóstico realizado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2012, no qual, “28% [dos jovens em conflito com a lei entrevistados] declararam ter sofrido algum tipo de agressão física por parte dos funcionários, 10%, por parte da Polícia Militar dentro da unidade da internação e 19% declararam ter sofrido algum tipo de castigo físico dentro do estabelecimento de internação.” Os dados são da década passada, mas a violência é bem atual.
Na reportagem especial “A Febem não morreu”, de outubro de 2019, o Brasil de Fato reúne uma série de relatos violentos de ex-internos e trabalhadores, provocados justamente por alguma autoridade dentro da unidade socioeducativa. Inclusive, de acordo com a pesquisa de Nilo, um dos principais impeditivos para que esses adolescentes pudessem acessar o serviço de saúde era ter que passar por um agente socioeducativo, profissional responsável pela proteção física e psicológica dos internos e pela realização de atividades pedagógicas.
Nas doenças de pele, outros dois fatores são citados como facilitadores da transmissão: a superlotação e a insalubridade dos ambientes. Das cinco unidades pesquisadas, todas abrigavam mais que o dobro da capacidade. Doenças respiratórias como asma e bronquite foram identificadas em 20% das respostas e relacionadas à má ventilação. Dores e perda dentária, além de pesadelos, foram outras queixas frequentes dos adolescentes entrevistados.
Um ponto importante ressaltado por Nilo é a dificuldade de precisar tanto o número de adolescentes quanto o percentual das respostas. Apesar do Degase ter previsto 1.500 adolescentes internados, os diretores das unidades informaram ao pesquisador que são 1.303. No entanto, uma quantidade menor de questionários foi respondida: 941. Ainda assim, algumas das perguntas foram deixadas em branco. A falta de uma listagem nominal e a dependência da colaboração dos agentes socioeducativos, que iam até os alojamentos solicitar a participação na pesquisa, foram mencionados como fatores que dificultaram o levantamento.
O Brasil possuía cerca de 45 mil adolescentes no cumprimento de alguma medida socioeducativa em 2019, segundo a mais recente Pesquisa de Avaliação do Sinase. A maioria estava em regime de internação e semiliberdade. Sudeste e Nordeste concentram mais que o dobro das estatísticas das demais regiões. A pesquisa elabora índices por meio das informações colhidas entre gestores estaduais, diretores das unidades, membros das equipes técnicas e socioeducadores.
O que diz a lei
Ainda que o direito à saúde integral deva ser garantido durante a privação de liberdade, o Degase não é responsável por estruturar e fornecer a equipe que integra a assistência médica das unidades. Quem cuida disso são as respectivas secretarias municipais. A questão é que o Sinase especifica pouco como deve ser essa equipe de saúde. Contudo, o sistema prioriza o atendimento das necessidades de Atenção Básica (AB) e cita a Portaria nº 340 de 2004, criada para auxiliar na execução das ações de saúde durante a semiliberdade e a internação.
Tanto a política de AB quanto a Portaria recomendam que as equipes sejam compostas por médico, enfermeiro, auxiliar ou técnico de enfermagem, dentista e auxiliar ou técnico de saúde bucal. A Portaria também acrescenta as seguintes especialidades: psicólogo, assistente social e terapeuta ocupacional. A assistente social do Degase, Daiane Oliveira, afirma à reportagem que, atualmente, todas as 26 unidades do estado do Rio contam com os profissionais básicos. Não há menção aos técnicos e auxiliares.
O que a lei do Sinase, de 2012, padroniza e torna obrigatória é a presença de uma equipe geral, com o único detalhamento de que deva contar com dois psicólogos e dois assistentes sociais. Na tese apresentada por Nilo, quatro das cinco unidades não apresentavam a equipe mínima determinada pelo Sinase.
Superlotação
Identificada como um dos determinantes das más condições de saúde relatadas pelos adolescentes pesquisados, a superlotação dos centros socioeducativos é reconhecida pelo Conselho Nacional do Ministério Público como uma herança do século XX, cujas políticas tratavam “crianças e adolescentes como objetos da intervenção oficial e adultocêntrica”, diz o Panorama de 2019.
As unidades de internação do estado do Rio apresentaram índice de lotação de 160%, ultrapassando a média brasileira, que foi 112%, revela o documento. Mas a assistente social Daiane dá um panorama mais otimista. Segundo ela, a pouca oferta de vagas não é mais um problema nas unidades do Degase.
A Pesquisa de Avaliação do Sinase de 2020 indica um cenário relativamente positivo em nível nacional. “Ao analisar-se as frequências das respostas dos diretores das unidades no país, constata-se que 67,5% deles afirmaram não ter havido superlotação em 2019, 14,3% que a superlotação ocorreu entre um e 150 dias e 16% que a superlotação ocorreu por um período superior a 150 dias”, diz o documento.
Alguma melhoria recente na distribuição das vagas pode ser atribuída à articulação de uma Central de Vagas, incentivada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Conselho Nacional de Justiça. Na prática, a ferramenta dispensa adolescentes que estão há mais de 180 dias aguardando liberação de vaga e cuja sentença não foi reavaliada ou foi revogada, entre outras formas de agilizar o processo.
Importante ressaltar ainda que, embora a socioeducação deva atender a população de 12 a 18 anos, parte desses jovens ultrapassa a maioridade dentro dos centros, podendo chegar até os 21, lembra o psicólogo Diogo Sousa, que atuou por cerca de dois anos no Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas) de Salvador, responsável pelas medidas abertas. Isso acontece quando o adolescente entra com 17 anos e cumpre os três anos da medida, mas a justiça demora a emitir o documento que o libera do programa socioeducativo, detalha Diogo.
Medidas Socioeducativas e democracia
O ECA estabelece seis tipos de medidas que podem ser aplicadas no cometimento de um ato infracional. São elas: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. As medidas de prestação de serviço à comunidade (PSC) e de liberdade assistida (LA) estão inclusas no que se chama de meio aberto e são intermediadas pelas secretarias de reparação locais.
O psicólogo Diogo Sousa explica que a LA consiste no acompanhamento e orientação desses adolescentes, que têm de comparecer à unidade a cada determinado período de tempo. Escola, saúde, profissão e renda costumam ser tópicos desses encontros. Na PSC, o jovem realiza tarefas de interesse geral junto a hospitais, escolas e outras instituições parceiras, com carga horária máxima de oito horas semanais.
Já em regime fechado, como são as medidas de semiliberdade e internação, há um afastamento mais radical do infrator de suas atividades cotidianas. A internação em uma unidade apropriada é aplicada quando o ato é cometido mediante grave ameaça ou violência e por reiteração ou descumprimento de alguma medida socioeducativa anterior.
Deve ser reavaliada a cada seis meses e não pode ultrapassar o período de três anos. Além disso, o adolescente preserva o direito de receber visitas semanalmente e de se comunicar com seus familiares e amigos. Também deve ser alocado de acordo com seu porte físico, idade e gravidade da infração.
A criação do ECA e das medidas socioeducativas foram um marco na transição dos antigos Códigos de Menores, que, entre outras questões, segregavam crianças e adolescentes pobres e majoritariamente negros em instituições do Estado, de forma a prevenir crimes que, segundo as presunções da época, pudessem vir a cometer.
Dessa forma, não havia diferenciação entre os jovens que realmente haviam praticado algum crime e que simplesmente estavam em situação de vulnerabilidade. Com o ECA, a privação de liberdade “passou a ser admitida somente nas hipóteses de flagrante de ato infracional ou ordem judicial prévia, escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”, reforça o Panorama do CNPM.
Desigualdade e (falta de) oportunidade
A grande proposição do ECA foi responsabilizar o adolescente infrator no lugar de puni-lo. O psicólogo Diogo Sousa explica a distinção formal entre uma ideia e outra por meio da identificação dos sujeitos envolvidos na situação e da participação do Estado, que, na lógica punitiva, retira dos ombros sua parcela de autoria.
“São a forma e o conteúdo de uma determinada situação que devem ser analisados para observar a responsabilidade de todos os envolvidos, incluindo o Estado, na implicação dos jovens em processos que possam reparar o ato infracional praticado. Já a punição diz respeito ao modo como se trata o ato infracional, reduzindo o contexto à eleição de um indivíduo ou grupo que deverá responder por ele. Nela, o Estado não é acionado como parte do problema, mas como instância punitiva”, detalha o psicólogo.
No dia a dia da socioeducação, contudo, tem havido pouco espaço para a responsabilização, afirma Diogo. O que ocorre, na opinião do entrevistado, é um “sequestro da liberdade”, como herança de um passado que reforçava as desigualdades de raça e de renda.
A maioria dos adolescentes identificados pela pesquisa de Nilo Terra Neto está na faixa dos 15 a 17 anos de idade e se reconhece como parda ou preta. Cerca de 90% não ultrapassou o ensino fundamental e mais da metade tem a mãe como chefe de família. Quase 40% já havia cumprido mais de uma medida socioeducativa, com um número absoluto de 95 adolescentes que já estavam no cumprimento da terceira ou maior quantidade de medidas.
A taxa de reincidência, definida como o número de vezes que o adolescente retorna ao sistema socioeducativo, da região Sudeste é a maior do país, atingindo 22,8% dos cadastrados, revela a Pesquisa do Sinase de 2020.
Há, inclusive, uma imagem de que esse adolescente no cumprimento da medida é o “principal causador da violência e da periculosidade que aparecem na sociedade”, quando, na verdade, os principais atos infracionais “não são atos contra a vida. São atos contra o patrimônio: roubo e tráfico de drogas”, analisa Daiane, respaldada pelo Levantamento Anual do Sinase de 2017.
“Como se passaram muitos anos, esses meninos não estão mais internados. Os que estão vivos, se estiverem na rua — eu espero que sim —, a gente não acha. E, se não tiver… provavelmente estão no sistema penitenciário. Infelizmente”, diz Nilo à Radis, ao tentar localizar um dos adolescentes com quem conviveu no tempo de dedicação ao estudo.
Dolorosa de se ouvir, a fala do educador físico desnuda a realidade por baixo do papel. Para Nilo, “a gente esquece que a privação de liberdade é um fator de adoecimento mental”, especialmente, em condições de insalubridade e violência. A afirmação sugere que o sofrimento desses adolescentes com um perfil bem delimitado tornou-se comum ao ponto de não incomodar o resto da sociedade.
Na prática, “não conseguimos assimilar totalmente a doutrina da proteção integral, mesmo sabendo que, na grande maioria dos casos, a trajetória infracional é iniciada após um percurso de infância em que foram sonegados vários direitos humanos fundamentais”, analisa o documento do CNMP.
De modo complementar, a assistente social Daiane, em sua pesquisa de mestrado, nota um cenário de contradição, que “marca o Estado como o agente em ‘conflito com a lei’”. Daiane é mestre e doutoranda em Saúde Coletiva, na área de Política, Planejamento e Administração em Saúde. Sua dissertação de mestrado, que analisou os avanços e empecilhos da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Adolescente em Conflito com a Lei (Pnaisari), foi apresentada na 13ª edição do Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (Abrascão), em novembro de 2022.
Casamento e expectativa de futuro
O estudo realizado por Nilo trouxe à tona um dado especialmente curioso e sintomático: a pouca idade dos adolescentes contrasta com o alto número de casamentos. Nos questionários, quase metade dos 844 entrevistados que indicaram o estado civil revelou já ter sido casada. E outros 6% já havia se divorciado.
De acordo com Diogo Sousa, “as experiências [conjugais] de meninas e meninos são bem diferentes.” Ele puxa da memória os dias de atendimento no CREAS de Salvador e explica que, enquanto para elas a maternidade representava a “perda de chefia da própria vida”, para eles, era um lugar de afirmação de autoridade.
“Constituir família era uma meta de vida”, diz. Segundo Diogo, é debaixo do próprio teto que o adolescente tem a sensação de estar no controle dos acontecimentos, em contraposição a uma infância marcada pelo afastamento das políticas públicas e das oportunidades. Atrelada a isso está uma tentativa de “reforçar a própria masculinidade”, baseada na existência de uma esposa e filhos, explica.
“Que experiência normativa é essa que nós estamos impondo a esses garotos?”, indaga Diogo à Radis. A pergunta ultrapassa os muros das unidades socioeducativas e atinge as relações afetivas e sexuais desses adolescentes, que, na análise do psicólogo, seguem um padrão heterossexual e tradicional. “Está na hora de pensar soluções mais criativas”, conclui.
A própria Daiane, assistente social do Degase, reconhece que o órgão “não vai ser responsável por garantir todos os direitos do adolescente.” Mas ele vai “provocar”. “Vai provocar a Saúde para trazer a Clínica da Família, vai provocar a Cultura para trazer os projetos.” Por isso, é importante ter uma sociedade que conheça e defenda o meio socioeducativo, já que, “para uma política pública ser prioridade na destinação de recurso financeiro, tem que ter um movimento social”, encerra.
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