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A porta da Sala da Nutrição se abre e uma criança Yanomami corre até os braços da nutricionista Lucinara Martins da Silva para um acalanto. O colo de Nara, como é conhecida a profissional indígena de 25 anos, é um porto seguro para as crianças Yanomami que lutam para sobreviver à desnutrição, enquanto são acompanhadas na Casa de Saúde Indígena (Casai), em Boa Vista, Roraima.

No início de março, quando Radis vivenciou o cotidiano da Casai durante sete dias [Leia reportagem sobre a visita na Casai aqui], eram 34 crianças com desnutrição aguda grave e outras 34 com risco moderado — onze delas estavam internadas com complicações no Hospital da Criança de Boa Vista. A desnutrição infantil é uma das faces mais preocupantes da crise humanitária vivida pelo Povo Yanomami, que levou o governo federal a decretar Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin), em 20 de janeiro de 2023. 

Evitar a morte de crianças de até 5 anos foi definida como prioridade das ações promovidas pelo Centro de Operações Emergenciais (COE) [Leia aqui entrevista com a pesquisadora Ana Lúcia Pontes, coordenadora do COE]. Entre 2019 e 2022, 570 crianças morreram na Terra Indígena Yanomami (TIY) em decorrência de desnutrição, em um cenário agravado pela invasão da mineração ilegal e pelo descaso governamental. 

Quatro meses após o início das ações emergenciais, a melhora no quadro nutricional das crianças é o principal indicador de uma constatação óbvia: o cuidado salva vidas. Em 19 de maio, o número caiu de 34 para cinco crianças com desnutrição grave em tratamento, e outras oito com quadro moderado. A resposta rápida foi resultado da combinação entre a suplementação alimentar, com uma fórmula adaptada à cultura Yanomami, e o acompanhamento diário das crianças e suas famílias.

“Fazemos o acompanhamento como um todo”, afirma a nutricionista macuxi Nara Martins. — Foto: Eduardo de Oliveira.
“Fazemos o acompanhamento como um todo”, afirma a nutricionista macuxi Nara Martins. — Foto: Eduardo de Oliveira.

Nara é indígena do Povo Macuxi e responsável técnica pelo Centro de Recuperação Nutricional da Casai. A sensibilidade do olhar indígena logo a fez compreender que somente o diálogo com as famílias Yanomami poderia garantir êxito na resposta à desnutrição infantil. “Fazemos o acompanhamento como um todo, não só a entrega da fórmula, mas o cuidado diário. Conversamos com as famílias, conhecendo os pais, as mães e os irmãos, para a gente criar vínculos”, conta.

Para aumentar a aceitação pelo paladar das crianças, a equipe adaptou a fórmula de suplementação alimentar à cultura Yanomami. Passaram a misturá-la com açaí, manga, bacaba e buriti. “A dificuldade foi entender um pouco sobre a cultura e identificar os alimentos que a gente poderia utilizar com mais frequência. Percebemos muita aceitação do buriti, por exemplo, e ele tem alto teor de calorias”, explica Nara. 

As frutas regionais são misturadas aos ingredientes habituais da fórmula, adotada como referência pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em populações com alta incidência de desnutrição. “São fórmulas caseiras produzidas dentro da Casai, com densidade calórica, proteica e energética, para a recuperação dessas crianças menores de 5 anos”, destaca Mariana Ferreira Madruga, nutricionista da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde e que atua como apoio técnico ao COE Yanomami.

Todos os dias as crianças são pesadas para acompanhar o ganho de peso. — Foto: Eduardo de Oliveira.
Todos os dias as crianças são pesadas para acompanhar o ganho de peso. — Foto: Eduardo de Oliveira.

Na maioria das vezes, os sinais saltam aos olhos: baixo peso, diminuição da massa muscular, pele ressecada e cabelos ralos. Casos de desnutrição infantil são conhecidos entre os Yanomami há décadas, mas o cenário se agrava com a expansão do garimpo ilegal — foi o que aconteceu na segunda metade da década de 1980 e se repetiu nos últimos quatro anos, com a desassistência governamental [Leia entrevista com Dário Kopenawa sobre o assunto]. 

A escassez de água potável e de alimentos em algumas regiões da TIY afeta o desenvolvimento das crianças desde o nascimento — ou mesmo antes, ainda no crescimento intrauterino. “A desnutrição é multifatorial. Existem vários fatores que levam a ela, como a ausência de alimentação saudável, a dificuldade de acesso permanente ao alimento e a falta de um alimento culturalmente adequado a essa população, além de outras questões de saúde, como saneamento, água potável e presença de doenças e agravos”, constata Mariana.

Máquinas que reviram a terra em busca de ouro e cassiterita afugentam a caça; os peixes desaparecem com o mercúrio lançado nos rios. A expansão da mineração afeta todo o modo de vida Yanomami, com aumento da violência, alcoolismo e cooptação da mão de obra masculina. Com as roças abandonadas, os impactos são sentidos na produção de alimentos. 

Um estudo da Fiocruz em parceria com o Unicef, publicado em 2019, identificou que oito em cada dez crianças pesquisadas de até 5 anos apresentavam desnutrição crônica. Para a nutricionista da Sesai, esse é um cenário desafiador que exige respostas conjuntas, não apenas de equipes de nutrição — as soluções passam pelo controle da qualidade da água, para evitar a incidência de verminoses e contaminação, até ações na área ambiental, com a retirada do garimpo e a interrupção no desmatamento. “Entre os Yanomami, é algo que já acontece há muito tempo, e nos últimos anos aparece de maneira perversa”, completa.

Em volta da fogueira, famílias Yanomami se reúnem para preparar os alimentos. Durante o longo tempo de espera na Casai, enquanto estão em tratamento de saúde em Boa Vista, as mulheres tentam reproduzir hábitos do cotidiano das aldeias como estratégias de sobrevivência. Cozinham batata doce, mandioca e abóbora; preparam a farinha de biju.

Cozinhar os próprios alimentos é uma maneira de superar as barreiras culturais com a alimentação. — Foto: Eduardo de Oliveira.
Cozinhar os próprios alimentos é uma maneira de superar as barreiras culturais com a alimentação. — Foto: Eduardo de Oliveira.

“Um dos esforços que a gente tem é tentar adequar um pouco mais a alimentação que é servida [no refeitório da Casai] para a população indígena ”, conta Mariana. A oferta de alimentos in natura para que os próprios Yanomami possam preparar sua comida durante a estadia no local, que pode se estender por meses, também ajuda a superar o estranhamento diante da alimentação não indígena. Uma das alternativas tem sido a entrega de cestas da agricultura familiar, produzidas por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). 

O alimento tem, para o povo Yanomami, um sentido espiritual — por isso é simbólico que as estratégias relacionadas à nutrição tenham tanto impacto na melhora da saúde em geral. “A comida é afeto e vai ajudar na recuperação da saúde dessa população. Eles gostam de fazer o próprio alimento. Constroem seus fogareiros”, descreve Mariana.

A oferta de alimentação adequada, em diálogo com os costumes do povo Yanomami, contribui não só para a recuperação nutricional de crianças e adultos com desnutrição, mas para construir um ambiente um pouco mais familiar com o território — mesmo que a Casai seja um espaço temporário de recuperação de saúde. “Não só o alimento para nutrir células, mas para nutrir alma, para estimular o convívio em família e a produção”, afirma Mariana. “O mínimo que a gente consiga proporcionar de um espaço menos agressivo é válido para diminuir distâncias”.

“Tento respirar, sentar com eles para conversar e aprender”, afirma Mariana Madruga. — Foto: Eduardo de Oliveira.
“Tento respirar, sentar com eles para conversar e aprender”, afirma Mariana Madruga. — Foto: Eduardo de Oliveira.

Mari, como é chamada carinhosamente, conhece os dados de desnutrição das crianças Yanomami e é especialista em Epidemiologia Nutricional; porém, a realidade vivida durante a Emergência mostrou que um gesto é essencial para a promoção da saúde indígena: ouvir. “Chegamos com várias estratégias, querendo fazer as coisas e resolver. Mas percebo que tenho que dar dois passos para trás. Tento respirar, sentar com eles para conversar e aprender”, relata.

Nara conta que a recuperação nutricional de uma criança é a “alta de uma família inteira”. O mesmo abraço que recebe das crianças que entram, à vontade, na Sala da Nutrição, ela também já ganhou de mães quando estão prestes a voltar para a Terra Indígena, depois que os filhos ganharam peso e estão fora de risco. “Uma família estava recebendo alta no horário que cheguei para trabalhar, às 7h. A mãe foi minha primeira paciente. Quando eu cheguei, ela me abraçou”, relembra. Em seu peito, um sentimento de gratidão. “Não foi apenas por meu trabalho de nutricionista, mas por um todo, pois é o trabalho coletivo que leva ao desenvolvimento da criança”, resume.


Confira a cobertura completa de Radis sobre a emergência Yanomami na edição 247 e no site


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