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Nem Presa Nem Morta. A frase estampada nos lenços verdes, ao lado de um ramo de arruda, está nos blocos de Carnaval, na Conferência Nacional de Saúde, nos congressos de saúde coletiva, tremulando em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF). Mulheres de diferentes idades, profissões e regiões do país se reuniram na campanha que leva este nome e defende a descriminalização do aborto no Brasil.

Elas não têm medo de dizer que o aborto é um tema para ser levado a sério — e deve ser encarado não só como questão de saúde pública, mas como um direito das mulheres e pessoas que gestam para decidir sobre seu próprio corpo. Portanto, essa também é uma discussão sobre liberdade e autonomia, o que se torna ainda mais difícil em uma conjuntura de avanço do conservadorismo e do fundamentalismo religioso. É o que ressalta uma das coordenadoras da campanha, Angela Freitas, ao lembrar que o aborto acontece, seja legalizado ou não. “Muitas mulheres irão buscar a interrupção [da gravidez], quer seja legal ou não, quer seja seguro ou não. Isso é um fato”, disse, em entrevista à Radis.

Um fato. Essa talvez seja a definição mais adequada para se referir à realidade do aborto entre as mulheres brasileiras. Um fato presente na vida de uma em cada sete brasileiras de até 40 anos, de acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) 2021, que revelou que essa é a proporção de mulheres no Brasil que já realizou o procedimento alguma vez na vida. Um fato que condena as mulheres a duas sentenças, expressas pelo próprio nome da campanha: ou à morte, com os riscos inerentes a um aborto inseguro; ou à prisão, por interromper uma gravidez indesejada.

Apesar da seriedade do assunto, as mulheres que integram o coletivo Nem Presa Nem Morta decidiram também utilizar estratégias lúdicas e criativas para dar visibilidade à pauta. Durante o Carnaval, elas se juntaram a diversos coletivos e ganharam as ruas para distribuir lenços verdes e adesivos, além de apoiar a campanha “Não é não”, contra o abuso e o feminicídio. 

Em 2018, quando o movimento surgiu, por ocasião da audiência pública no STF sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, elas fizeram uso de telões, para transmitir as audiências no Festival pela Vida das Mulheres, que ocorreu em paralelo, em frente ao Museu da República, em Brasília. Também se mobilizaram quando finalmente, em setembro de 2023, foi apresentado o voto da ministra Rosa Weber, então presidente do Supremo, favorável à descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, conforme pede a ação.

Angela Freitas, coordenadora do Nem Presa Nem Morta, durante a 17ª Conferência Nacional de Saúde em 2023. — Foto: Kati Tortorelli.
Angela Freitas, coordenadora da campanha Nem Presa Nem Morta, durante a 17ª Conferência Nacional de Saúde em 2023. — Foto: Kati Tortorelli.

A atuação do movimento pretende mostrar para a sociedade, pelo viés da comunicação e da educação, que o tema é urgente. Por que uma mulher que interrompe a gravidez pode ser condenada a uma pena maior do que a de estupro, por exemplo? É o que ocorre com a venda ou o fornecimento do misoprostol (medicação utilizada mundialmente para aborto domiciliar). No Brasil, a venda desse medicamento está enquadrada no artigo 237 do Código Penal como crime contra a saúde pública desde 1998, com pena de 10 a 15 anos de prisão — enquanto a punição por estupro é de 6 a 10 anos. Por que morrer em decorrência das complicações de um aborto inseguro, se em muitos casos só há essa alternativa diante de uma gestação que não deveria ter ocorrido?

“Ninguém defende uma política de aborto e ponto”, aponta Angela. Ela lembra que todo o aborto é um evento triste, doloroso para a mulher; mas também, segundo ela, pode trazer alívio, diante de situações incontornáveis. Por isso, a campanha Nem Presa Nem Morta e todo o movimento de mulheres que lutam por esse direito defendem a liberalização do aborto acompanhada de educação sexual, oferta de métodos contraceptivos, garantia de acesso a saúde para todas as pessoas, com atenção ao pré-natal e parto, e oferta de creche. “É preciso que a gente torne o aborto raro com políticas que impeçam uma gravidez indesejada”, completa.

No contexto em que grupos ultraconservadores agem para dificultar o acesso ao procedimento mesmo nos casos em que ele é reconhecido por lei, o movimento também já precisou sair em defesa do direito de meninas e mulheres a algo que já está previsto em lei, mas nem sempre é respeitado. No Brasil, o aborto é legal em três condições: o artigo 128 do Código Penal permite nos casos em que a gravidez traz riscos de vida à gestante ou foi resultado de um estupro; e, em 2012, o STF decidiu também que a gestação pode ser interrompida em situações em que o bebê é anencéfalo [má-formação do feto que inviabiliza a vida fora do útero]. Mesmo nestes casos, há forte pressão de grupos religiosos e políticos para que as mulheres não acessem o procedimento [Leia no Quadro 3].

Seja nas ruas, em conferências, em lançamentos de filmes sobre a temática ou em debates públicos, o movimento está presente fornecendo material e esclarecendo dúvidas. A socióloga e comunicadora social Angela Freitas conta que luta pelo direito ao aborto desde o final da década de 1970. Ao longo dos anos, foi se engajando e ajudando a criar uma rede de parcerias e colaboração em torno do tema e dos direitos das mulheres. Em 2018, seu caminho se juntou ao de Laura Molinari, jovem comunicadora que também atua na questão. Com o festival Pela Vida das Mulheres, nasceu a campanha. Nesta conversa com Radis, Angela aborda por que o tema do aborto ainda é um interdito no Brasil — e as razões pelas quais temos que falar sobre isso, sem medo e sem preconceitos.

Ato da Nem Presa Nem Morta em 2023 — Amanhecer verde na rodoviária de Brasília (DF). — Foto: Juliana Duarte.

“O aborto é encarado como um tema que atrapalha e cria um ambiente desfavorável a outras pautas.”

Como surgiu o Nem Presa Nem Morta e como a sua trajetória está relacionada a essa campanha?

O Nem Presa, Nem Morta nasceu em 2018 por ocasião do Festival pela Vida das Mulheres, em Brasília, quando houve audiências públicas no STF sobre a ADPF 442 [Veja Quadro 1], uma arguição de preceito fundamental sobre a constitucionalidade da criminalização do aborto pelo Código Penal. Estou nesta luta pelo direito ao aborto desde o final da década de 1970. Tenho uma trajetória neste percurso com várias campanhas, materiais educativos e vídeos. Estava engajada nisso desde outras inserções em projetos com diversas parcerias e nisso o meu caminho se cruzou com o de Laura Molinari, uma jovem que naquele ano tinha se dedicado a uma campanha com mensagens contra uma Proposta de Emenda Constitucional [PEC 181/2015], que capiciosamente revertia o texto constitucional para nele inserir o direito à vida desde a concepção. Na verdade, era como um Cavalo de Troia dentro de um projeto de lei sobre amamentação. Lá estava embutida essa proposta de direito à vida desde a concepção. E uma vez que a PEC fosse aprovada, poderia significar que nem os casos previstos poderiam continuar existindo, como a gravidez por estupro, quando há risco de morte para gestante e quando há anencefalia fetal. Havia grande mobilização em torno da defesa da ADPF 442, planejamos o festival em Brasília e criamos o slogan Nem Presa Nem Morta. O festival foi montado em frente ao Museu da República, próximo ao STF, e estivemos ali com várias tendas, um telão enorme que transmitia ao vivo as sessões da audiência pública no STF, já que na sala oficial o acesso do público era limitado. Promovemos uma campanha de comunicação e informação sobre o que estava se passando, para o público em geral.

Com o voto da ministra Rosa Weber pela descriminalização do aborto até a 12ª semana, em setembro de 2023, quais expectativas vocês tinham sobre a continuidade da votação?

Temos clareza de que é muito difícil, pela conjuntura que temos hoje no Brasil, que o STF abrace a questão com facilidade. Quando digo abraçar, me refiro a colocar em pauta mesmo. Há outros temas candentes que, podemos dizer, são inescapáveis. O aborto é encarado como um tema que atrapalha e cria um ambiente desfavorável a outras pautas. A gente tem como exemplo clássico que nas campanhas eleitorais, mesmo as candidaturas mais abertas aos direitos e aos princípios democráticos de liberdade, autonomia e decisão, evitam o tema sob o argumento de que não gera voto e atrapalha a campanha. O STF atravessa uma fase de desafio, em que vem sendo acusado de politização, ou seja, de querer invadir a prerrogativa do Congresso Nacional, que é a de legislar. Não é fácil tornar claro que, no caso da ADPF 442, não se trata de legislar, mas de considerar inconstituconal a lei que criminaliza o aborto. O STF está cumprindo seu papel, mas numa conjuntura como a que estamos, sua situação parece ser delicada, e o novo Presidente da casa, o ministro Luís Roberto Barroso, está preferindo adiar esta pauta, sob a alegação de que o tema não está suficientemente amadurecido na sociedade brasileira. Sabíamos que seria difícil com relação à ADPF 442. Confiávamos que a ministra Rosa Weber daria seu voto favorável, antes de se aposentar, como aconteceu. Foi feito de última hora e de tal forma que o voto ficasse mantido, como de fato aconteceu.

“O perfil de quem aborta não é de mulheres que não tenham religião, que sejam irresponsáveis ou apenas jovens. São católicas, evangélicas ou de outras religiões, são mulheres casadas, que já têm filhos, que têm trabalho e família.”

O que falta para que a sociedade e os governantes entendam que o aborto é uma questão séria de saúde pública?

Diria que este entendimento existe na cabeça de várias pessoas, muitas também estão em lugares de poder. A questão é que a sociedade é múltipla, diversa. Não há um pensamento único. O pensamento contrário ao direito de decidir pelo aborto não só existe, como tem sido muito propagado, e as pessoas têm sido catequizadas, no sentido mesmo da palavra, por igrejas católicas e evangélicas fundamentalistas identificadas com a extrema-direita, ou seja, por segmentos que querem transformar suas crenças em leis para toda a sociedade. O Congresso hoje é claramente desfavorável, e a perspectiva religiosa está muito presente, num cenário cujas alianças são muito fortes com a extrema-direita. A ultradireita, nas temáticas mais candentes, tem o apoio dessa bancada religiosa e vice-versa. Há acordos políticos fortes que desfavorecem o entendimento de que, na vida cotidiana das mulheres, elas abortam independentemente da religião que tenham e da formação política. A Pesquisa Nacional do Aborto (PNA 2021) mostra isso. O perfil de quem aborta não é de mulheres que não tenham religião, que sejam irresponsáveis ou apenas jovens. São católicas, evangélicas ou de outras religiões, são mulheres casadas, que já têm filhos, que têm trabalho e família. E é uma disputa de corações e mentes.

“Dizer que descriminalizar e legalizar o aborto aumenta o número de procedimentos é uma declaração falsa.”

Mesmo sendo uma sociedade tão diversa, o que é possível fazer para mudar este cenário?

A gente faz o que é possível no campo comunicacional. Essa é a missão da campanha Nem Presa Nem Morta. Buscamos transmitir nossas ideias a respeito do direito de decidir pelo aborto não só como questão de saúde pública, mas como de direitos que estão na Constituição mesmo: o direito à liberdade, à autonomia e o direito de não ser torturada. Enfim, existe toda a argumentação que está bem consolidada no voto da ministra Rosa Weber sobre os direitos que a criminalização do aborto viola, da forma como vigora atualmente no Brasil [Leia no Quadro 2]. O trabalho de comunicação também envolve combater as fake news a respeito. Dizer que descriminalizar e legalizar o aborto aumenta o número de procedimentos é uma declaração falsa. A gente tem os exemplos dos países que legalizaram e isso não aconteceu. No início sim, aumentam os registros. Quando é ilegal, acontece na clandestinidade e não há registro. Ninguém defende uma política de aborto e ponto. É uma política de direito ao aborto com educação sexual, com oferta de métodos contraceptivos, condições médicas de qualidade para todas as pessoas, com atenção ao pré-natal e parto, com creche, e, inclusive, o direito à interrupção da gravidez nos casos em que as pessoas que engravidam assim decidam.

“Ninguém defende uma política de aborto e ponto. É uma política de direito ao aborto com educação sexual, com oferta de métodos contraceptivos, condições médicas de qualidade para todas as pessoas, com atenção ao pré-natal e parto, com creche, e, inclusive, o direito à interrupção da gravidez nos casos em que as pessoas que engravidam assim decidam.”

Manifestante pelo direito ao aborto durante o 9º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas da Saúde (CSHS), no Recife, em novembro de 2023. — Foto: Roan Nascimento.
Manifestante pelo direito ao aborto durante o 9º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas da Saúde (CSHS), no Recife, em novembro de 2023. — Foto: Roan Nascimento.

Vemos cada vez mais ações para impedir ou dificultar o acesso ao aborto nos casos em que está previsto o direito à interrupção da gravidez. Como é a atuação de vocês em situações desse tipo?

Assim como há o lobby no Congresso em relação à defesa da vida desde a concepção, existe um lobby forte que ataca os serviços de aborto legal. Tanto que a gente tem hoje em dia, no STF, uma ADPF para garantir o direito ao aborto legal que é a ADPF 989, apresentada em 2022. Também existe a Lei 12.845, de 2013, que obriga os serviços a atenderem nos casos de aborto legal. Se essa ADPF precisa existir é porque o direito não está sendo garantido. Significa que algo está acontecendo na sociedade e houve a necessidade de se apresentar uma ação no Supremo para que um direito seja cumprido. E os casos crescem. Precisamos levar em conta os casos de mulheres que morrem por falta de acesso ao aborto legal, seja porque recorreram a um aborto clandestino perigoso ou porque a gravidez apresentava risco de vida e ela precisava interromper para salvar sua vida e não interrompeu. A gente tem clareza de que são casos subnotificados ou notificados como outra causa de morte. E em relação à dificuldade nas situações em que o aborto é legalizado, tem aparecido casos muito emblemáticos.

Pode citar alguns exemplos em que vocês atuaram?

Vou citar dois casos em que a gente interveio. Um deles foi o caso de Alagoinhas, em Pernambuco, de 2009, em que uma menina de 9 anos, moradora do interior, engravidou de gêmeos, fruto de um estupro cometido pelo padrasto. A menina estava internada e o hospital estava protelando e, aparentemente, negando a interrupção da gravidez. O que fizemos na época foi entrar em contato com a mãe dessa menina, que era a responsável que estava com ela no hospital e entender que tanto ela quanto a menina queriam o aborto. As duas tinham o consenso e a consciência de que era o desejo de ambas. Conseguimos tirá-las daquele hospital e levá-las para outro. A menina conseguiu realizar o aborto, mas pessoas foram excomungadas pelo arcebispo local. Foi um escândalo. Já em 2020, houve um caso no Espírito Santo que ganhou nova proporção. Em uma cidade do litoral, mais afastada da Capital, uma menina também estava com dificuldades de acesso ao aborto legal. Inclusive, na época, a então ministra [da pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos] Damares Alves enviou pessoas do Ministério para influenciar localmente para que a menina não tivesse acesso ao aborto, para oferecer assistência à gravidez e ao parto e depois encaminhar a criança para adoção. Havia toda essa articulação, mas ali houve uma postura mais positiva por parte da Justiça local, do governo do estado e do secretário da Saúde, que ultrapassaram essa barreira e trouxeram a menina para a Capital. Enfrentaram resistência nesse hospital da Capital, cuja equipe se negava a realizar o procedimento, pois àquela altura, a menina já estava com mais de 22 semanas de gravidez. 

Por que isso aconteceu?

Existe uma Norma Técnica do Ministério da Saúde para que o aborto legal seja realizado até 22 semanas de gestação. Mas esta Norma não tem estatura de lei. Na lei brasileira não existe esta limitação. Nesse caso, foi bem nítido que tratou-se de protelar a vontade da família e não havia justificativa para não fazer aquela interrupção. Diante da recusa no hospital, a menina foi levada para Pernambuco, às custas do governo estadual, para realizar o aborto. Já em um caso mais recente, em Tubarão (SC), houve grande disputa judicial. Este caso foi muito bem relatado pelo Portal Catarinas. A menina grávida e sua mãe foram constrangidas por uma entidade de caráter religioso antiaborto, e não sabemos exatamente como tiveram acesso às informações sobre a adolescente, pois a situação tramitava em sigilo na Justiça. O pai da adolescente, que não mantinha contato com a filha, entrou com um processo contra a mãe e a garota a ponto de elas se sentirem ameaçadas porque precisariam pagar uma multa de alto valor caso realizassem o aborto. E até mesmo o homem que teria praticado o estupro, responsável pela gravidez da jovem, foi inserido como parte interessada na não interrupção da gestação. A batalha foi tão longa que chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Então, são sofisticações que esses casos ganham que, para nós que estávamos lá presentes, tentando ajudar, tanto nos casos anteriores como neste, o que fazemos também é facilitar o acesso ao direito, não apenas publicizar. [Leia sobre os casos no Quadro 3]

Coordenadoras da campanha Nem Presa Nem Morta com integrantes da equipe e parceiras, no Festival WOW (Rio de Janeiro/2023). Da esquerda para a direita: Angela Freitas, Helena Bertho, Rebeca Mendes, Laura Molinari, Bibiana Serpa, Nara Menezes. — Foto: Amara Barroso.
Coordenadoras da campanha Nem Presa Nem Morta com integrantes da equipe e parceiras, no Festival WOW (Rio de Janeiro/2023). Da esquerda para a direita: Angela Freitas, Helena Bertho, Rebeca Mendes, Laura Molinari, Bibiana Serpa, Nara Menezes. — Foto: Amara Barroso.

“É preciso que a gente torne o aborto raro com políticas que impeçam uma gravidez indesejada.”

O que pode ser feito para garantir às mulheres o direito de decidir sobre uma gravidez, especialmente àquelas que se encontram em situação de vulnerabilidade?

Já temos o respaldo legal em três casos específicos, como já citado, mas se essa lei não é cumprida e os serviços não funcionam, a gente age para publicizar as agressões ao que está na lei. A imprensa é muito importante, ao informar adequadamente. A gente faz um trabalho para criar consciência a respeito do tema. É o que chamamos de descriminalização social. Fica muito difícil quando nos deparamos com uma parte da imprensa que não colabora e não faz uma cobertura adequada, que minimiza a importância, assim como há parte da imprensa que atua com falta de ética, com fake news, trazendo esta temática para o terreno do crime e do pecado. É importante que a sociedade abrace a causa, temos essa clareza e fazemos esse trabalho de formiguinha. Temos feito ao longo de décadas e a campanha Nem Presa Nem Morta abraça todas as parcerias de trabalho que temos, seja do campo jurídico, da Medicina, da Assistência Social, da Enfermagem, dos movimentos sociais. Tentamos trabalhar o tema junto à sociedade brasileira, de modo que as pessoas entendam que esse procedimento de interrupção de gravidez é um fato na vida das mulheres. E que não é um fato lindo, desejável, maravilhoso, como se fosse uma festa de aniversário. Não é. É triste, dramático, é difícil. É preciso que a gente torne o aborto raro com políticas que impeçam uma gravidez indesejada. A gente sabe que, em 100% dos casos, não vai ser possível evitar e que muitas mulheres irão buscar a interrupção, quer seja legal ou não, quer seja seguro ou não, isso é um fato. Ter a clareza disso é parte fundamental para criar um ambiente favorável à mudança da lei para que ocorra a total descriminalização.

A arruda e os lenços

Lenço da campanha Nem Presa Nem Morta. — Foto: Sandra Alves.
Lenço da campanha Nem Presa Nem Morta. — Foto: Sandra Alves.

Erva muito comum nos quintais brasileiros, a arruda foi escolhida como símbolo da campanha Nem Presa Nem Morta, porque a planta tem ação abortiva e era utilizada no passado como recurso caseiro para interromper gestações indesejadas ou que apresentavam risco. A escolha do símbolo é mais uma evidência de que o aborto é uma prática presente no Brasil, seja legalizado ou não — e, em condições ilegais e inseguras, aumenta o risco para as mulheres.

Como Angela Freitas explica, a adoção dos lenços verdes dialoga com os movimentos pela legalização do aborto na Argentina, na Colômbia e no Uruguai. “Adotamos para nos juntar ao que a gente chama de Maré Verde latino-americana e caribenha para tentar reverter as leis que são muito perversas em relação ao direito à interrupção da gravidez”, pontua.

O que é a ADPF 442 e por que ela é importante para descriminalizar o aborto?

Decisiva para o futuro da questão da descriminalização do aborto no Brasil, a ADPF 442 começou a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em setembro de 2023. A primeira ministra a se manifestar foi a relatora, então presidente do Supremo, Rosa Weber [Leia no BOX 2 o que ela disse]. A arguição pede que a Corte julgue a descriminalização do aborto até a 12ª semana, em qualquer circunstância. A ADPF 442 não altera a lei brasileira atual que permite o aborto em três casos: quando a gravidez apresenta riscos para a gestante, quando houve estupro ou quando o feto é anencéfalo.

Para entender a linguagem jurídica: ADPF é a sigla para Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, uma ação que pode ser acionada por organizações da sociedade civil ou pelo Ministério Público, com o objetivo de questionar, junto ao STF, alguma lei que esteja em desacordo com a Constituição de 1988. 

A ADPF 442 foi protocolada em 2017, por meio da Anis Instituto de Bioética e do Partido Socialismo e Liberdade (Psol), pedindo a descriminalização do aborto voluntário até o terceiro mês de gestação (12 semanas). Cabe ao STF avaliar a compatibilidade entre os artigos 124 e 126 do Código Penal, que criminalizam a prática do aborto, com os princípios da dignidade humana previstos na Constituição Federal. 

O Código Penal brasileiro é de 1940 e os propositores da ação entendem que a criminalização do procedimento viola princípios como a igualdade, a não discriminação, os direitos sexuais e reprodutivos, a saúde e o planejamento familiar das mulheres e pessoas que podem gestar — com esta expressão, incluem-se pessoas que não se definem como mulheres, mas têm útero e podem engravidar, como homens trans —, presentes na Constituição atual, mas que não foram contemplados no momento da edição do Código Penal.

O que disse o voto de Rosa Weber

Em 22 de setembro de 2023, a então ministra e presidente do STF, Rosa Weber, trouxe o tema para votação e, em seu voto justificado em 129 páginas, declarou ser a favor da descriminalização do aborto até a 12ª semana conforme pedido pela ADPF 442. Pouco antes de se aposentar, ela deixou seu voto e agora cabe ao atual presidente do STF, Luís Roberto Barroso, colocar a pauta em destaque novamente. 

Há cinco pontos considerados fundamentais na argumentação apresentada pela ex-ministra. Weber destacou a importância de se respeitar a autonomia da mulher e que a maternidade deve ser uma escolha e não uma imposição, assim como a continuidade ou não de uma gravidez. Outro ponto é o silenciamento histórico ao qual as mulheres foram submetidas. A ex-ministra posicionou que as mulheres não tiveram como participar da deliberação sobre o assunto. 

A terceira chave é o aborto como questão de saúde pública: “A ilegalidade desse procedimento médico provoca a insegurança à qual a mulher é exposta, mais uma vez, frente às falhas estatais. Não por outro motivo, o aborto inseguro consta como uma das principais causas de impacto no delineamento sanitário do quadro da mortalidade materna”, expôs a ministra na ocasião. 

Ela também questionou a criminalização, visto que a coerção penal não desestimula a decisão de interromper uma gravidez e não garante proteção ao nascituro (ou seja, aquele feto concebido, mas que ainda não nasceu) como a lei se propõe. Por fim, Rosa Weber destacou a importância de não se confundir a esfera moral privada com a esfera da moral pública, especialmente em relação a direitos fundamentais. 

O lenço verde da Campanha Nem Presa Nem Morta na ação do Amanhecer pela Legalização do Aborto em Brasília (2023). — Foto: Juliana Duarte.
O lenço verde da Campanha Nem Presa Nem Morta na ação do Amanhecer pela Legalização do Aborto em Brasília (2023). — Foto: Juliana Duarte.

Mesmo nos casos em que o aborto é permitido por lei, as mulheres encontram dificuldades para acessar esse direito — seja pela pressão crescente de grupos religiosos e políticos conservadores, seja por desconhecimento e demora dos serviços de saúde. Meninas e mulheres que sofreram a violência do estupro, por exemplo, ou que têm o risco de morrer, passam então por uma segunda violação: a submissão a um longo processo para ter o direito garantido, além de sua própria vida.

Os casos são diversos — e frequentes, especialmente quando envolvem estupros de menores de idade ou pessoas com deficiência intelectual. Em Tubarão (SC), em 2023, uma adolescente de 14 anos vítima de estupro e sua mãe foram pressionadas a desistirem do procedimento por uma organização antiaborto chamada Rede Nacional em Defesa da Vida e da Família e por religiosos. 

A mesma organização teria sido a responsável por contatar o pai da menina, com o qual ela não mantinha contato, e ele entrou com processo para impedir o aborto. Ao mesmo tempo, o próprio suspeito do estupro que resultou na gestação tentou entrar como parte interessada na não interrupção da gravidez. A situação somente foi resolvida ao chegar ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), quando finalmente a menina conseguiu a autorização para realizar o aborto. 

Se a justiça e o Estado agiram de forma rápida no caso de 2020, no Espírito Santo, em que uma menina de 10 anos precisou ser transferida para Pernambuco para a realização do procedimento, o mesmo não aconteceu em outra situação em Santa Catarina, em 2022. Neste outro episódio, houve atuação oposta da própria Justiça, em que a promotora Mirela Dutra Alberton e a juíza Joana Ribeiro teriam cometido várias irregularidades no caso de uma menina de 11 anos, que descobriu a gravidez com 22 semanas de gestação, e buscava a interrupção pela forma legal. 

A criança não somente teve a autorização negada, como ainda foi colocada em um abrigo e separada de sua mãe. Em uma audiência, a juíza tentou induzi-la a levar a gravidez adiante, sendo que laudos do Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), apontavam para risco de morte da menina ou consequências irreversíveis (como a retirada do útero), caso a gestação não fosse interrompida.

O aborto foi realizado após enorme batalha judicial, mas não encerrou a história. A deputada estadual Ana Caroline Campagnolo, do PL (SC), requereu a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e conseguiu o apoio de 21 dos 40 parlamentares da Assembleia Legislativa de Santa Catarina. O objetivo da CPI não previa questionar as ações da juíza e da promotora envolvidas, mas o trabalho jornalístico dos veículos Intercept e Portal Catarinas, que em reportagem conjunta denunciaram o caso pela primeira vez. 

O relatório final desta CPI, de dezembro de 2022, ignora totalmente o Código Penal, tanto em relação ao aborto legalizado quanto ao artigo 217, sobre o estupro de vulnerável (quando há relação sexual ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos), criminalizando tanto a realização do aborto como a divulgação do caso pelos veículos citados. Na época, entidades brasileiras e estrangeiras levaram a CPI à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Participante do ato pelo direito ao aborto durante o 9º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas da Saúde (CSHS), no Recife (2023). — Foto: Roan Nascimento.
Participante do ato pelo direito ao aborto durante o 9º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas da Saúde (CSHS), no Recife (2023). — Foto: Roan Nascimento.

Após a entrevista com Angela Freitas, ocorreu mais esse episódio. Diante de ataques e desinformação, o Ministério da Saúde (MS) suspendeu, de imediato, uma nota técnica sobre o aborto, que especifica o que está no Código Penal Brasileiro, de 1940. A Nota Técnica no 2/2024, de 28 de fevereiro, retira a orientação, feita pelo governo do ex-presidente Bolsonaro, de que o aborto legal deve ser realizado somente até 21 semanas e 6 dias de gestação. O novo texto defende que, nos casos previstos em lei, não há limite gestacional para a interrupção.

Além disso, a nova nota técnica ressalta que os serviços de saúde devem garantir “esse direito de forma segura, íntegra e digna, oferecendo o devido cuidado às pessoas que buscam o acesso a esses serviços”. O documento, assinado pelo secretário de Atenção Primária à Saúde, Felipe Proenço de Oliveira, e pelo secretário de Atenção Especializada à Saúde, Helvécio Miranda Magalhães Junior, também anula a cartilha lançada pelo Ministério da Saúde durante o governo anterior, intitulada “Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento”. Neste documento, estava escrito que “todo aborto é crime” — o que não é verdade — e deveria passar por investigação policial.

No entanto, a ministra Nísia Trindade decidiu suspender a nota no dia 29/02. Segundo a assessoria do MS, ela tomou conhecimento da publicação enquanto cumpria agenda em Boa Vista (RR), e o documento ainda não teria passado por todas as esferas do ministério, nem pela consultoria jurídica da pasta.

Radis 191 e a audiência pública no STF sobre a ADPF 442

A matéria de capa de Radis 191 (agosto de 2018) destacou a importância da audiência pública no STF sobre a ADPF 442 no debate sobre a descriminalização do aborto. Também trouxe resultados da Pesquisa Nacional do Aborto de 2016. 

Aborto no Brasil
  • 1 em cada 7 mulheres já passou por um aborto no Brasil, aos 40 anos
  • 52% tinham 19 anos ou menos quando fizeram o primeiro aborto; 32% entre 20 e 29 anos; e 7% entre 30 e 39
  • 6% eram meninas entre 12 e 14 anos: praticar sexo ou atos libidinosos com menor de 14 anos é considerado crime de estupro de vulnerável, independentemente se houve consentimento
  • Taxas mais altas foram detectadas entre as entrevistadas com menor escolaridade, negras e indígenas e residentes em regiões mais pobres
  • 43% das mulheres que abortaram precisaram ser hospitalizadas
  • O estudo ouviu 2 mil mulheres em 125 municípios e foi coordenado pela antropóloga e professora da Universidade de Brasília (UnB), Débora Diniz; pelo professor visitante da Columbia University, Marcelo Medeiros; e pelo professor da Universidade Estadual do Piauí, Alberto Madeiro

Fonte: Pesquisa Nacional do Aborto 2021

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