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Redução da jornada de trabalho sem perda salarial, ampliação de direitos para trabalhadores formais e informais, fortalecimento da vigilância em saúde do trabalhador, diminuição dos acidentes e das doenças relacionadas ao trabalho, revogação de reformas trabalhistas, atenção à saúde mental, fortalecimento da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast) no Sistema Único de Saúde (SUS) e muito mais. A lista é extensa e reflete a força das reivindicações levadas à 5ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (5ª CNSTT).

Realizada em Brasília, de 18 a 21 de agosto de 2025, com o tema: “Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora como Direito Humano”, a etapa nacional da Conferência contou com 1.559 delegados, que votaram e aprovaram 134 diretrizes, 520 propostas e 114 moções. Agora o relatório final será encaminhado, pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), ao Ministério da Saúde e deverá subsidiar a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT).

A 5ª CNSTT reuniu cerca de 2,5 mil participantes — entre delegados, conselheiros, convidados e organizadores — no Centro Internacional de Convenções do Brasil. O encontro ocorreu quase 11 anos após a 4ª edição, realizada em 2014.

Confira a linha do tempo das CNSTTs:

Fernanda Magano, presidente do CNS, explicou à Radis que o intervalo irregular é consequência da disputa de agendas entre diferentes áreas temáticas da saúde nos intervalos de cada Conferência Nacional de Saúde, que costuma acontecer a cada quatro anos.

Fernanda Magano, presidente do Conselho Nacional de Saúde, discursa durante ato em prol dos trabalhadores e trabalhadoras, em Brasília:
“Precisamos pautar o Congresso Nacional e o Ministério da Saúde para que avancemos na reforma desse país e na garantia de direitos”.
Foto: CNS

“A saúde indígena quer fazer sua sétima conferência; a de ciência, tecnologia e inovação em saúde, a terceira; a saúde mental realizou a quinta [em 2023, Radis 252], mas entendemos que esse era o momento da saúde dos trabalhadores”, pontuou Fernanda. Para ela, a realização em 2025 atende tanto ao clamor pelo longo intervalo de mais de uma década quanto ao impacto da pandemia e das mudanças nas regras trabalhistas ocorridas nos últimos anos: “Tudo isso afeta a saúde do trabalhador”.

Após a Conferência, Paulo Garrido, presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz (Asfoc-SN) e conselheiro nacional de saúde, avaliou que alguns temas exigem atenção especial, como a saúde de trabalhadores com deficiência — muitas vezes prejudicados pela falta de acessibilidade — e a saúde mental dos profissionais da saúde, agravada pela pandemia e pelo risco do uso abusivo de álcool e outras drogas em função do aumento do estresse.

Ele também alertou sobre a reforma administrativa em tramitação no Congresso, que ameaça a estabilidade e pode impactar a saúde mental dos servidores, e manifestou apoio à criação de um plano de carreiras interfederativo para os trabalhadores do SUS. “A 5ª CNSTT proporcionou um espaço valioso para refletirmos sobre esses desafios e a responsabilidade de levarmos essas pautas adiante”, comentou.

Balanço da 5ª CNSTT

  • Eixo 1 “A Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT)”: 45 diretrizes e 165 propostas debatidas e votadas
  • Eixo 2 “As novas relações de trabalho e a saúde do trabalhador e da trabalhadora”: 43 diretrizes e 205 propostas debatidas e votadas.
  • Eixo 3 “A participação popular na saúde dos trabalhadores e das trabalhadoras para a efetivação do controle social”: 46 diretrizes e 150 propostas debatidas e votadas.
O médico e sanitarista Luiz Carlos Fadel alertou que entre 2012 e 2024 um trabalhador formal morreu a cada 3 horas e 33 minutos no Brasil:
“Estamos tratando aqui da maior tragédia brasileira, a tragédia do mundo do trabalho”.
Foto: CNS

Uma morte no trabalho a cada 3h30

Na tarde de 18 de agosto, a 5ª CNSTT teve sua palestra magna, conduzida por Luiz Carlos Fadel, médico e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e integrante do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). Ovacionado pela plateia, Fadel palestrou por quase uma hora e logo no início apresentou um dado inquietante: entre 2012 e 2024, um trabalhador formal morreu no Brasil a cada 3 horas e 33 minutos, segundo o Observatório Digital do Ministério Público do Trabalho em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (SmartLab – MPT/OIT).

E o cenário é ainda pior se considerados os milhões de trabalhadores sem carteira assinada que sequer aparecem nessa estatística nefasta. “Nós estamos tratando aqui da maior tragédia brasileira, a tragédia do mundo do trabalho. Será vergonhoso sairmos daqui sem um posicionamento firme, sem uma agenda bem elaborada e urgente”, provocou.

Durante a fala, ele defendeu que a saúde dos trabalhadores seja reconhecida constitucionalmente como direito humano — o que, em sua visão, representaria uma expressão simbólica e mudança de paradigma. Afinal, há uma diferença entre cometer uma infração trabalhista e violar direitos humanos, constatou.

Leia a entrevista exclusiva e completa com Luiz Carlos Fadel :

Fadel revelou ainda a expectativa de que a 5ª CNSTT seja tão marcante quanto a 8ª Conferência Nacional de Saúde, de 1986, que abriu caminho para a criação do SUS. E expressou o desejo de que “a 5ª seja uma conferência mochileira”, que vá muito além dos quatro dias de programação oficial e avance para a consolidação de direitos: “Ela começa aqui, mas precisa caminhar”, reforçou. Entre suas propostas, está a alteração do artigo 7º da Constituição Federal para incluir expressamente a saúde do trabalhador como direito humano.

“Esperamos que haja uma concretização em forma de lei que transforme a saúde dos trabalhadores em um direito humano. Que a infração, o acidente, a morte — principalmente nas situações em que haja uma relação de dolo da organização do trabalho — seja uma ocorrência na esfera dos direitos humanos”, defendeu, citando o inciso 28 do mesmo artigo. Apesar do desejo de que essas mudanças se concretizem a partir da Conferência, Fadel demonstrou-se levemente desapontado com as poucas vezes em que a expressão foi empregada no documento da 5ª CNSTT. Foram contabilizadas oito menções nas propostas e nove nas diretrizes.

As principais preocupações de Fadel foram ecoadas pelo coordenador-geral de Vigilância de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora do Ministério da Saúde, Luiz Henrique Leão, que também citou o combate à mortalidade no trabalho como um dos principais desafios a ser encarado pela Conferência: “É um absurdo que a gente viva ainda uma alta mortalidade de trabalhadores. Precisamos pautar o enfrentamento das mortes relacionadas ao trabalho, fazendo um pacto pela vida”, disse.

Para ele, o SUS precisa articular e operacionalizar o direito à saúde dos trabalhadores brasileiros: “Precisamos de um SUS cada vez mais forte, democrático e com maior ação efetiva de vigilância em saúde do trabalhador e da trabalhadora para enfrentar as raízes do mal-estar da classe trabalhadora no Brasil”. 

Além da mortalidade no trabalho, Luiz Henrique acrescentou outros quatro temas que deveriam ser pautados de forma prioritária: a saúde mental dos trabalhadores; as mudanças climáticas — cujos eventos extremos, como ondas de calor, secas e enchentes, afetam principalmente trabalhadores vulnerabilizados; a precarização do trabalho e o trabalho escravo contemporâneo, “uma chaga ainda existente no Brasil e que precisa acabar”.

A 5ª CNSTT aprovou propostas formuladas nas fases anteriores e consolidadas na etapa nacional a partir de três eixos centrais, que guiarão a reportagem daqui em diante: a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora, as novas relações de trabalho e a participação popular para a efetivação do controle social. “Três temas profundamente ligados, desde que a linha que os conduza seja a dos direitos humanos”, observou Fadel.

Luís Henrique Leão. Foto: CNS

Uma Política Nacional para a Saúde do Trabalhador

“A Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora serve para desalienar o SUS em relação à saúde do trabalhador e da trabalhadora”. A afirmação de Luiz Henrique Leão traduz a centralidade da PNSTT na atuação do SUS em ações voltadas à saúde dos trabalhadores. 

Para Karla Baêta, diretora de Vigilância em Saúde do Trabalhador de Pernambuco, que participou da mesma mesa, “um dos propósitos da política é destacar o trabalho como fator determinante e condicionante do processo saúde-doença, provocando mudanças nas práticas dos profissionais e dos serviços de saúde para qualificar as ações de assistência, cuidado e vigilância direcionadas à população trabalhadora”.

Formulada em 2012, a PNSTT enfrenta dois grandes desafios: ser integralmente implementada nos territórios e se atualizar mediante as mudanças ocorridas no mundo do trabalho e na sociedade nos últimos anos, como as reformas trabalhistas e as novas formas de precarização do trabalho. Apesar dessa necessidade de revisão, Fadel acredita que o documento é bem construído e superior à Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho, criada um ano antes pelo Decreto nº 7.602/2011, na gestão Dilma Rousseff.

“A Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora do SUS é muito boa. Faço essa distinção porque tem outra política que disputa um pouco com ela [a do decreto]. E quando há duas políticas, não existe nenhuma”, opinou. Embora elogie a PNSTT, Fadel também reconhece sua desatualização: “Essa política de 2012, a nossa política nacional, é muito importante, mas ela precisa ser atualizada. E a atualização que propomos inclui a saúde do trabalhador como direito humano”, reafirmou.

Para ele, a PNSTT também precisa enfrentar os novos desafios que se apresentam no pós-pandemia. “Ela vai ter que trabalhar essas novas relações: o trabalho precarizado, a plataformização, a pejotização, a uberização, tudo isso tem que ser encarado numa perspectiva de arregimentação das representações desses trabalhadores”, defendeu.

Na mesma direção, Jorge Machado, médico e sanitarista da Fiocruz, relembrou que a política, então recém-criada, também foi debatida na 4ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora, em 2014. Passados mais de dez anos, a discussão precisa incorporar novos elementos, como a individualização das relações de trabalho, que alimenta formas contemporâneas de exploração.

“A Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora precisa ser antiescravagista, em relação à escravidão moderna. E o que é a escravidão moderna? É o tempo de vida roubado ou retirado do trabalhador. Tempo de vida com a família, tempo de vida social, tempo de vida da reprodução social”, refletiu ele. “A retirada de direitos foi naturalizada, de modo que a jornada flexível e até mesmo o home office — que é o extremo da exploração — são tratados quase como um benefício”, completou Fernanda Magano.

Novas relações de trabalho

A precarização das relações de trabalho somada ao enfraquecimento dos sindicatos, a informalidade crescente, o trabalho em plataformas digitais e a intensificação das jornadas resultam em um modelo atual de organização do trabalho que adoece, explora e mata. Esse é um alerta do documento-base da 5ª CNSTT. 

Na mesa do eixo 2, Ronald Ferreira, coordenador do movimento Saúde pela Democracia e ex-presidente do CNS, destacou mudanças recentes na legislação que aprofundaram as assimetrias entre trabalhadores e empregadores. Ele lembrou os reveses sofridos entre 2016 e 2022, durante os governos Temer e Bolsonaro, quando o país passou primeiro pela reforma trabalhista (Lei 13.467/2017), e depois pela chamada Lei da Liberdade Econômica (13.874/2019).

Esse período, segundo Ronald, pode ser simbolizado por uma fala emblemática do então presidente Jair Bolsonaro ao defender as medidas anunciadas por seu ministro da Economia, Paulo Guedes: “É melhor ter menos direitos e emprego do que mais direitos e desemprego”.

“A vida não tem hora extra”

Maria Maeno

Mesa discutiu as novas relações de trabalho e a saúde
do trabalhador e da trabalhadora na manhã do dia 19/8. Palestraram: Diego Souza (na ponta esquerda da foto),
Ronald Ferreira (de camisa vermelha e boné) e Maria Maeno (com roupa amarela e na outra extremidade da imagem). Foto: CNS

Na mesma mesa, Diego Souza, professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e integrante do Cebes, destacou a pejotização e a uberização como dois elementos centrais do “mosaico da precarização”. A pejotização ocorre quando o trabalhador é transformado em pessoa jurídica, perdendo direitos celetistas e reduzindo encargos ao empregador. Já a uberização corresponde ao trabalho autônomo mediado por aplicativos, marcado pela instabilidade e ausência de proteção social.

Diego apresentou dados que revelam o impacto dessa prática no país: entre janeiro de 2022 e outubro de 2024, 4,8 milhões de trabalhadores com carteira assinada foram demitidos e recontratados como pessoa jurídica. Essa manobra resultou na perda de R$ 61,4 bilhões em contribuições ao INSS e de outros R$ 24,2 bilhões ao Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS). Ele denunciou esse mecanismo como fraude trabalhista, já que, em muitos casos, o vínculo empregatício permanece mascarado.

Segundo o professor da Ufal, a Justiça do Trabalho tem reconhecido vínculos em situações de pejotização, mas o tema ganhou nova complexidade após o Supremo Tribunal Federal (STF) suspender todos os processos sobre a questão, até decidir se a prática será legitimada ou não. “Se a pejotização avançar, a luta pelo fim da escala 6×1 e a defesa dos direitos trabalhistas ficará cada vez mais fragilizada, porque esse é um mecanismo jurídico para precarizar ainda mais o trabalho”, alertou.

Para muitos trabalhadores precarizados, o único direito social efetivo é o SUS, ressaltou Maria Maeno, pesquisadora da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro). Ela foi contundente ao afirmar que não há saúde mental possível sem a desprecarização das condições de trabalho: “A vida não tem hora extra”. Maria defendeu a reindustrialização como estratégia contrária à uberização e pejotização e criticou duramente o comportamento das empresas frente aos acidentes e doenças ocupacionais: “Temos observado que a produção de acidentes e doenças causadas pelas empresas, incluindo grandes corporações instaladas no Brasil, deixa um legado catastrófico, que onera social e financeiramente o país”.

Compromisso do SUS com a saúde do trabalhador

Na abertura da 5ª CNSTT, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, ressaltou o papel essencial desempenhado pelos profissionais de saúde durante a pandemia e lembrou a contribuição histórica da classe trabalhadora para a criação do SUS. Segundo ele, os trabalhadores sindicalizados e de carteira assinada foram decisivos para consolidar a compreensão de que a saúde do trabalhador não deve se restringir a planos privados ou ao atendimento médico-hospitalar, mas precisa englobar um amplo conjunto de fatores sociais.

Padilha destacou ainda medidas recentes do governo federal, entre elas a atualização da Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho (LDRT), realizada no fim de 2023 após um hiato de 24 anos. O documento passou de 182 para 347 diagnósticos, incorporando 165 novas doenças. Nos últimos 15 anos, o SUS atendeu cerca de 3 milhões de casos de doenças ocupacionais, o que reforça a relevância da atualização.

Outro ponto enfatizado foi o fortalecimento da rede de atenção à saúde do trabalhador: em julho de 2024, o Ministério da Saúde anunciou o dobro de recursos financeiros destinados aos Cerests, passando de R$ 80 milhões para R$ 160 milhões por ano. Além disso, destacou a habilitação de 17 novos centros, somando-se às 227 unidades já existentes no país. “Teremos a maior rede do mundo de prevenção e cuidado à saúde dos trabalhadores e trabalhadoras”, celebrou.

O “corre” de quem está nas ruas

Os motofretistas Edgar Francisco (o Gringo), de São Paulo, e Rodrigo Lopes, de Pernambuco, participaram da 5ª CNSTT representando o segmento dos entregadores de aplicativo.

Leia o texto “O peso do trabalho nas costas” :

Edgar, presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil (AMA-BR), falou após a mesa dedicada às novas relações de trabalho (eixo 2) e trouxe ao debate o olhar de quem vive na pele — e sobre a moto — os impactos da atividade: “Sempre nos dizem que o comportamento dos entregadores no trânsito precisa mudar, mas muitos não sabem que a gente é pressionado pelos aplicativos”.

Ele lembrou que a profissão de entregador é considerada de alto risco pela Lei nº 12.997/2014. Ainda assim, as plataformas não oferecem capacitação nem exigem qualificação adequada: “Eles não pedem que sejamos capacitados para exercer essa profissão de risco e nos induzem a correr, fazendo com que soframos esses acidentes. E quando nos acidentamos, o registro é feito como acidente de trânsito, não como acidente de trabalho”, declarou à Radis

Rodrigo Lopes percebeu que precisava unir e formar politicamente a categoria em seu estado e em 2021 fundou o Sindicato dos Trabalhadores, Empregados e Autônomos de Moto e Bicicleta por Aplicativo do Estado de Pernambuco (Seambape)
Edgar Franciso, o Gringo, foi eleito delegado junto com outros dois entregadores pela 1ª Conferência Nacional Livre dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil

O entregador destacou que, nesses casos, é o SUS quem assume o socorro e o tratamento, transferindo para a rede pública os custos da precarização. “Os aplicativos ficam com o bônus e deixam o ônus para a sociedade pagar. E o lucro deles nem aqui fica, é mandado para o investidor lá fora”, criticou.

Gringo também apontou a incoerência do discurso empresarial, que ora se apresenta como parceria, ora vendem a ideia do empreendedorismo. Mas na prática, segundo ele, não é uma coisa nem outra: “Os aplicativos tratam a gente como funcionários, mas não dão os direitos trabalhistas. Falam que somos autônomos, mas não nos dão autonomia, porque a autonomia é o poder de negociar o preço do serviço e as condições de trabalho. E não temos isso no aplicativo”.

Rodrigo Lopes, presidente do Sindicato dos Trabalhadores, Empregados e Autônomos de Moto e Bicicleta por Aplicativo do Estado de Pernambuco (Seambape), reforçou o c aráter essencial da categoria ao relembrar a pandemia: “Os entregadores ta parte do enfrentamento à covid-19 junto com os outros heróis e merecem aplausos porque eles mantiveram nosso Brasil em casa”. Ele fez ainda um apelo aos delegados e conselheiros em sua fala na cerimônia de abertura da 5ª CNSTT: “Desejo que essa conferência não seja apenas um evento, mas a mudança na vida dessas pessoas que são muito importantes”.

Entenda como funciona a Rede Nacional de Saúde do Trabalhador

Criada em 2002, a Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast) é um arranjo organizacional que se materializa por meio dos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerests). Cada unidade recebe recursos do Fundo Nacional de Saúde, em valores proporcionais à sua abrangência — estadual, regional ou municipal. 

A missão dos Cerests é implementar e articular a vigilância em saúde do trabalhador nos territórios. No entanto, em muitos casos, esses centros acabam assumindo funções predominantemente assistenciais, o que representa um desvio de sua finalidade original e fragiliza o funcionamento da rede.

Outro componente da Renast são as Comissões Intersetoriais de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (Cistts), instâncias de controle social vinculadas aos conselhos de saúde estaduais ou municipais. Essas comissões deveriam atuar de forma integrada aos Cerests, participando do planejamento e da formulação das políticas locais. Mas, segundo o pesquisador Luiz Fadel, essa integração raramente acontece: “A Cistt, a rigor, tinha que estar lá, fazendo a política, planejando junto com o Cerest. Isso é raro, raríssimo, e está errado.”

Participação popular: dos locais de trabalho às políticas

O eixo 3 do bloco de diretrizes aprovadas na Conferência destacou a ampliação da participação popular como elemento estruturante das políticas de saúde do trabalhador. O tema esteve presente tanto nos debates oficiais quanto nos espaços de convivência, tendo na Tenda Paulo Freire um símbolo desse protagonismo. O espaço, já tradicional em Conferências Nacionais de Saúde e em congressos de saúde coletiva (como os da Abrasco), foi uma das novidades na 5ª CNSTT, homenageando o quilombola, ativista social, escritor e educador popular Antonio Bispo dos Santos, o Nego Bispo.

Durante quatro dias, a tenda sediou atividades de diferentes movimentos sociais. O médico sanitarista Jorge Machado sublinhou o valor da iniciativa, lembrando que a participação não se resume ao aspecto simbólico: “É muito importante, por exemplo, o entregador por aplicativo estar numa mesa de abertura, ter fala, trazer delegados. A população do campo, da floresta e das águas também realizou uma conferência livre. São novas formas de organização.”

Ele destacou ainda que a saúde do trabalhador deve incorporar uma abordagem territorial. Como exemplo, mencionou a atividade realizada na Tenda Paulo Freire com moradores de Maceió, marcada pela denúncia dos impactos da mineradora Braskem, no acidente urbano que afetou uma ampla parcela da população, cerca de 60 mil pessoas — ou 20% dos habitantes da cidade. “É uma empresa mineradora que provoca um desastre com repercussão direta em dezenas de milhares de pessoas e continua explorando o subsolo”, denunciou.

Além dos danos ambientais e estruturais, Jorge apontou o agravante de haver relatos e indícios de suicídios entre idosos após o crime ambiental. Para ele, a tragédia da Braskem ilustra como o trabalho impacta territórios e populações, mas não é um caso isolado: “Temos o desastre do agronegócio, da mineração, do petróleo, das contaminações químicas na Baía de Todos-os-Santos, nos territórios Yanomami, nos rios amazônicos e no Rio Madeira. A morte de rios e peixes compromete a cadeia e a segurança alimentar, compondo uma nova síndrome da saúde do trabalhador”.

Tradicional em outras conferências de saúde, a Tenda Paulo Freire foi novidade na 5ª CNSTT

Também sobre a participação popular, Luiz Fadel ressaltou a necessidade de ampliar o controle social na Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast), fortalecendo a atuação dos Centros de Referência em Saúde dos Trabalhadores (Cerests) e ampliando o número e o alcance das Comissões Intersetoriais de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (Cistts) [saiba mais sobre essas siglas e seus papéis na página XX]. Ele lembrou que ouvir os segmentos impactados é condição para que as políticas respondam efetivamente às necessidades da classe trabalhadora.

Quando soube como participar da 5ª CNSTT, o presidente da AMA-BR, Edgar Gringo, reuniu cerca de 220 entregadores de aplicativo em uma conferência livre da categoria e conseguiu levar três delegados à etapa nacional: “A gente acha importante trazer as pautas da rua que competem à saúde para dentro de eventos como esse, porque se a gente não estiver nesses espaços de decisão, vão acabar decidindo por nós e quase sempre vai ser algo que não nos agrada”, afirmou.

Representando outra categoria profissional, a agente comunitária de saúde (ACS) Patrícia Janaína, diretora da Federação dos Agentes Comunitários de Saúde e Endemias do Piauí (Fedac) e presidente do sindicato da categoria no Vale do Guaribas (PI), também levou suas reivindicações à Conferência, entre elas a regulamentação da aposentadoria especial para ACS. “É um trabalho árduo, no qual muitas vezes não temos descanso. Somos o elo entre a comunidade e os serviços de saúde, previdência e assistência social. Mesmo fora do expediente, continuamos à disposição da população. E enfrentamos dificuldades que vão desde a carga horária extensiva até a falta de equipamentos de proteção individual (EPIs)”.

Medicina do trabalho, saúde ocupacional e saúde do trabalhador: entenda as diferenças

A discussão dos conceitos de medicina do trabalho, saúde ocupacional e saúde do trabalhador é recorrente e está presente desde a 1º Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (1986). A medicina do trabalho surge como pioneira do campo ao identificar doenças ocupacionais e o papel do trabalho na organização dos territórios, por volta do ano de 1700, na Itália. Sua atuação, porém, é reduzida ao acompanhamento da saúde individual do trabalhador, com ênfase em exames clínicos e diagnósticos, como uma especialidade médica. 

Tempos depois, já no âmbito da saúde pública, a saúde ocupacional eleva esse entendimento e associa a clínica médica às avaliações ambientais da higiene industrial e à engenharia de segurança, compondo um modelo disciplinar e preventivo focado no ambiente de trabalho e no controle de riscos. A saúde do trabalhador, por sua vez, amplia ainda mais esse olhar a partir da medicina social, da epidemiologia e das ciências sociais, situando o trabalho como determinante social e histórico da saúde. Na saúde do trabalhador, o foco não se limita ao ambiente laboral nem à prática clínica, mas abrange o território, as condições de vida e a identidade de classe, incorporando a participação dos trabalhadores e movimentos sociais. 

O caso da Braskem, em Maceió, revela como o trabalho e suas consequências ultrapassam a “fábrica”, atingindo comunidades, populações e territórios. “Isso define a diferença da saúde do trabalhador para a saúde ocupacional, que trabalharia mais a discussão disciplinar, o ambiente de trabalho e o trabalhador mais ligado a uma determinada função, numa abordagem relacionada ao tipo de ocupação e não ao contexto em que esse trabalho acontece, onde essas pessoas moram, da vida do trabalhador de forma integral”, explica Jorge.

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