Qual o impacto da escala 6×1 na sua saúde? A partir desta pergunta, Radis relata como é a rotina de três trabalhadores(as) da região metropolitana do Rio de Janeiro que conhecem bem a realidade de ter que sobreviver com apenas um dia de folga na semana. Para Ana Cristina, vendedora de shopping em Niterói (RJ), nem sempre o dia livre é domingo; o tempo que seria de descanso, porém, ela dedica às filhas. Já Daniel (nome fictício), faz-tudo em uma padaria em São Gonçalo (RJ), tem folga sempre às quartas-feiras. Mas ele fica tão cansado que não tem ânimo para nada, a não ser dormir.
Para Aline de Souza, podologista, também de São Gonçalo, os dias de intervalo servem para descansar, resolver questões pessoais e cuidar da saúde. Ela se libertou da exaustiva jornada de seis dias de trabalho por semana e revela que hoje, sim, tem vida. Conhecer um pouco mais a vida de cada uma dessas pessoas ajuda a entender os impactos que uma longa jornada de trabalho traz para suas vidas e como interfere na saúde física e mental.
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Manifestantes se reúnem em protesto pelo fim da jornada de trabalho 6×1, no Rio de Janeiro — Foto: Tânia Rego/Agência Brasil
“Quem trabalha menos, ganha menos”
Ana Cristina Abreu, vendedora de shopping
A vendedora Ana Cristina Abreu é uma das inúmeras brasileiras a enfrentar os desafios de trabalhar sob a escala 6×1. Casada e mãe de duas filhas — uma de 20 anos e outra de 10 — ela atua em um shopping em Niterói (RJ), cidade vizinha a São Gonçalo, onde mora. Vive uma rotina intensa, em que divide seu tempo entre as demandas profissionais e familiares e os cuidados pessoais.
De segunda a sábado, seu dia começa cedo. Para driblar os possíveis engarrafamentos, Ana precisa sair de casa às 8h da manhã, para estar às 10hs, em Niterói. O trajeto é feito de ônibus. Ao chegar no serviço, antes de começar o expediente, ela se arruma e faz questão de estar bem para iniciar as vendas.
A partir daí, são seis horas de trabalho — a maior parte do tempo, em pé — com um intervalo de apenas 15 minutos para o almoço. Apesar de receber vale-refeição, o benefício só é pago nos finais de semana trabalhados, obrigando-a a financiar do próprio bolso a alimentação nos outros dias ou levar sua própria comida. Nem todo domingo ela descansa, já que sua folga é alternada, assim como nos feriados. Se ela trabalha no domingo, recebe uma folga durante a semana, mas quem define o dia é a gerente da loja.
Ana divide o ambiente de trabalho com outras cinco pessoas e, embora mantenha uma relação tranquila, a competitividade é constante, já que as vendas são comissionadas. A necessidade de respeitar a vez de cada colega, aliada à pressão por resultados, acaba gerando desentendimentos. Apesar disso, ela diz que gosta de trabalhar com vendas.
Mudanças recentes no sistema de trabalho, como a possibilidade de dobrar o horário, trouxeram novos desafios para Ana. Diferente de alguns colegas que conseguem estender o turno (das 10h da manhã às 10h da noite) com frequência, ela enfrenta limitações, já que tem uma filha criança. Essa menor disponibilidade tem impacto direto em suas vendas e, consequentemente, em seu salário.
Ana relata que, ao aceitar o emprego com uma carga horária definida, não imaginava que se sentiria na obrigação de trabalhar o dobro para obter resultados justos. “Quem trabalha menos, ganha menos. Sempre vai ter alguém que vai ficar prejudicada; nesse caso, sou eu”, desabafa. Embora o trabalho dobrado não seja obrigatório, vendedores que não atingem as metas correm o risco de perder o emprego, revela.
O impacto na saúde
A rotina intensa também cobra um preço na saúde. Certa vez, Ana torceu o pé, mas optou por permanecer no trabalho para não perder um dia de vendas, mesmo com a recomendação da gerente para se retirar. “Quem trabalha com venda nessa carga horária acaba sacrificando alguma coisa; automaticamente, acaba sendo a saúde”, afirma.
Ela lamenta que a carga horária dificulte a marcação de consultas médicas e reconhece que a rotina cansativa tem impacto direto em sua saúde mental. “Fisicamente eu me considero saudável, mas psicologicamente eu já não posso te garantir”, relata à reportagem. A pressão constante por metas afeta sua qualidade de vida, causando um estresse contínuo e a sensação de que precisa compensar rapidamente qualquer falha.
Nos dias de folga, Ana tenta ficar com a família e cuidar da casa, mas sente que a falta de tempo livre dificulta que todas as suas responsabilidades pessoais sejam cumpridas. Ela avalia que, com mais um dia de folga, conseguiria dividir melhor seus afazeres, priorizar a saúde e até mesmo ter momentos de lazer sem o peso da escolha entre descansar e se divertir. Apesar dos sacrifícios, vê a situação como temporária e busca uma oportunidade de trabalho com horários mais flexíveis. Para ela, a prioridade é encontrar um equilíbrio entre vida pessoal e profissional que preserve sua saúde física e emocional.
“Só falta me amarrarem no tronco!”
Daniel*, funcionário de uma padaria
Ele foi contratado para atuar na cozinha de uma padaria, mas hoje é requisitado para atender clientes no balcão, preparar sanduíches na chapa, fatiar frios, fazer a limpeza do local e ainda organizar estoque. A rotina exaustiva de Daniel (que prefere não se identificar, com medo de represálias do empregador) é resumida em uma frase: “Só falta me amarrarem no tronco!”
Aos 25 anos, o morador de São Gonçalo (RJ) vive sob a escala 6×1 há três anos. Após um período de desemprego e diante de dificuldades familiares, ele aceitou a oferta de trabalho na padaria, sem imaginar a quantidade de tarefas que lhe seriam designadas — e sem prever que mal teria tempo para viver a vida. “Na época, minha mãe estava desempregada e minha avó doente, então o que viesse eu estava aceitando; assim surgiu esse emprego na padaria”, explica.
Daniel trabalha de segunda a segunda, com folga apenas às quartas-feiras. Sua jornada, durante a semana, começa às 2h da tarde e vai até 10h da noite. Nos fins de semana, a rotina inicia-se às 9h da manhã e se estende novamente até a noite. Isso quando o patrão não pede para entrar mais cedo, como aconteceu no dia em que conversava com Radis. Todos os dias, ele conta, tem apenas 30 minutos de intervalo.
O impacto desse ritmo é notório: em seu único dia livre, renuncia a saídas ou a qualquer lazer para descansar. Quando tem tempo, prefere receber os amigos em casa. “Fico tão cansado que não quero fazer nada, só dormir!”, desabafa.
Além da sobrecarga física, Daniel relata um ambiente de trabalho repleto de queixas de colegas que, assim como ele, sentem-se negligenciados. Jornada excessiva, falta de folga aos domingos e intervalos curtos são os principais motivos de insatisfação, levando até mesmo a discussões sobre uma possível paralisação coletiva. “Uma vez até cogitamos que todos faltássemos juntos, porque estávamos muito cansados! É muito excesso de trabalho e o patrão não escuta o nosso lado”, relata.
Em três anos de trabalho, ele já presenciou colegas desenvolvendo problemas no punho devido ao movimento repetitivo de fatiar frios e viu um deles sofrer uma queda de escada durante o expediente [Leia texto sobre a relação entre jornadas exaustivas e acidentes de trabalho]. Entre outras queixas frequentes, destacam-se problemas relacionados à saúde dos funcionários, agravados pela intensa rotina. Quando precisa ir a consultas médicas ou cumprir compromissos de saúde, Daniel justifica com antecedência e negocia trocas de horário, o que adiciona ainda mais desgaste à sua rotina.
Corpo cansado
Os impactos da rotina no corpo são graves. Mesmo jovem e com boa saúde, Daniel sofre com dores na coluna, resultado do esforço repetitivo e do peso das caixas e bandejas que carrega todos os dias. Em episódios mais intensos, chegou a chorar de dor ao deitar-se para dormir; frequentemente, recorre a emplastros analgésicos para aliviar a dor e o desconforto. Ele aguarda resultados médicos para confirmar uma possível hérnia de disco. “Já me aconteceu de chegar em casa e chorar de dor a madrugada inteira”, conta.
Apesar do desgaste, Daniel mantém planos de mudança. Ele busca outra oportunidade profissional, investe no retorno aos estudos se preparando para o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) e sonha em ingressar no ensino superior. “Trabalhar em comércio já não é para mim”, afirma. Caso tivesse mais folgas, gostaria de passar mais tempo com a mãe, visitar familiares distantes que já não vê há anos e adotar uma rotina mais saudável, com exercícios e lazer.
O jovem, que antes da padaria trabalhava com a tia em um salão de beleza, ainda guarda o material do antigo trabalho e conta que tem clientes interessados em seus serviços. No entanto, a falta de tempo o impede de atendê-los, o que ajudaria, inclusive, a aumentar sua renda. Enquanto as mudanças não acontecem, ele aguarda um futuro em que possa equilibrar trabalho, saúde e qualidade de vida.
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Manifestantes pelo fim da escala 6×1 no centro do Rio de Janeiro, em 15 de novembro de 2024. — Foto: Tânia Rego/Agência Brasil
“Hoje eu tenho vida”
Aline de Souza Lima, podologista
Na antiga rotina da podologista Aline de Souza Lima, tempo era palavra valiosa e algo que ela não podia desperdiçar. Empregada em uma clínica de podologia na Zona Sul do Rio de Janeiro na escala de trabalho 6×1, ela vivia praticamente para o trabalho. Além das 44 horas semanais — com intervalo nem sempre cumprido de uma hora para o almoço a cada jornada —, um único dia livre era pouco para descansar e resolver tudo relacionado à vida pessoal.
“Eu não tinha vida”, relembra a profissional, enquanto atende em domicílio um cliente, em janeiro de 2025. Hoje, ela é senhora de sua própria agenda, com mais tempo para si. Chegar até este ponto, no entanto, não foi fácil. Nos primeiros dez anos de carreira, além de trabalhar seis dias na semana, Aline tinha que contabilizar o tempo que levava para se deslocar entre a casa e o trabalho. Moradora de São Gonçalo, cidade da Baixada Fluminense, na região metropolitana do Rio, todos os dias ela enfrentava de 3 a 4 horas em ônibus, barca e metrô para chegar à clínica, na Zona Sul da capital.
Uma rotina exaustiva, que aos poucos foi consumindo sua paciência e sua saúde. Casada, mãe de uma filha — naquele período, adolescente —, ela saía de manhã cedinho e só retornava à casa, na melhor das hipóteses, por volta das 9h da noite. O pouco tempo que dispunha dedicava à filha. Mal dava para comer alguma coisa, logo adormecia. No dia seguinte, não se sentia recuperada. “Não conseguia fazer mais nada, de tão cansada”, recorda.
Os problemas de saúde não demoraram a aparecer. Aline conta que engordou muito neste período, o que se refletiu em sua capacidade respiratória. Diagnosticada com apneia do sono [distúrbio que provoca interrupções na respiração durante o sono], passou a depender de um aparelho que ventila de forma contínua as vias aéreas, chamado CPAP, para dormir.
Além disso, vivia indisposta, sem ânimo para fazer qualquer outra coisa em seu pouco tempo livre que não fosse dormir. Médicos, dentistas e exames eram frequentemente adiados; atividade física se resumia aos deslocamentos casa/trabalho; alimentação não era das melhores; pouco se divertia com os amigos, assistia à televisão quando dava — geralmente no horário de almoço ou entre uma consulta e outra: “Eu vivia desinformada”, resume.
Virada de chave
As coisas começaram a mudar com a pandemia de covid-19. Após um curto período de lockdown — bem menor do que recomendado para a época, conta ela, dada a procura dos clientes e a necessidade de fazer alguma renda — ela e seus colegas retornaram às atividades em um horário reduzido, com menos dias e jornadas mais curtas de trabalho. “Conseguimos provar ao patrão que o modelo dava certo, os clientes logo se adaptaram”, explica.
Mas o empregador ainda resistia às mudanças e impunha mais exigências. Aline começou a perceber que as imposições iam além do considerado aceitável numa relação trabalhista. “Eram muitas horas sob estresse”, relata, destacando que sofria represálias, como aplicação de descontos injustos, cancelamentos de folga de última hora, férias não gozadas, bem como impedimento de atender novos clientes.
Para completar, descobriu que, em muitos dos anos trabalhados, não foram depositados o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e as obrigações com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Em 2022, entrou na Justiça. O acordo proposto, mesmo não sendo satisfatório, em sua opinião, permitiu que ela mudasse sua rotina.
Hoje, aos 43 anos, ela continua atendendo os clientes antigos que conseguiu fidelizar na clínica, recebendo exclusivamente o que produz — e que ainda assim equivale a apenas 36% do valor que é cobrado do cliente. “Ele [o patrão] também foi muito beneficiado com a mudança no esquema”, acredita, lembrando que grande parte do que ela ganha gasta em passagem e alimentação.
Mesmo ainda distante das condições “ideais” de trabalho, Aline se sente aliviada. “Hoje posso correr atrás”, justifica. Além dos dias que vai à antiga clínica, ela pode atender seus clientes em domicílio e se dedicar aos estudos. Depois da mudança, conseguiu concluir a graduação em Podologia na Universidade de Londrina (Unifil) e já colabora com um projeto que visa levar a saúde dos pés às unidades do SUS, em parceria com o Instituto Brasileiro de Podologia (Ibrap). “Com mais tempo para mim, tive a possibilidade de estudar e me desenvolver”, argumenta.
As mudanças também se refletem em sua vida pessoal. Hoje, trabalhando quatro dias na semana, consegue ter tempo para marcar eventuais médicos e dentistas, fazer atividades físicas, resolver coisas de casa, conviver com o marido e a filha e descansar. “A qualidade de vida não se compara. Os dias em casa são essenciais para eu cuidar da minha saúde e ter algum lazer”, relata.
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