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“Nenhum passo atrás, manicômio nunca mais”. Os gritos de ordem, que ecoavam pelo Auditório Ivone Lara, na Tenda Paulo Freire, nos corredores, pátios e demais instalações do Centro Internacional de Convenções do Brasil deram o tom da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental Domingos Sávio (CNSM), realizada entre os dias 11 e 14 de dezembro, em Brasília, após um hiato de 13 anos. O presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Fernando Pigatto, exaltou o evento de participação social: “Realizamos uma grande Conferência. Fortalecer a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e a Política Nacional de Saúde Mental continua sendo nossa prioridade estratégica”, disse à Radis.

Os mais de 2 mil participantes, entre delegados e convidados, deixaram uma mensagem inconfundível: sim para as políticas públicas de acolhimento e cuidado em liberdade e não aos dispositivos dissonantes da Reforma Psiquiátrica, como as comunidades terapêuticas (CTs). A etapa nacional da CNSM aprovou mais de 600 propostas para o fortalecimento da Raps e firmou diretrizes para a Política Nacional de Saúde Mental. Mas até chegar a esse desfecho, que agora abre outras frentes de mobilização, os quatro dias de debates e formulações foram bastante movimentados.

Pode-se dizer que a principal pauta da 5ª CNSM foi a defesa e reafirmação pelo cuidado em liberdade. Temática radicalmente oposta às medidas ainda praticadas em hospitais psiquiátricos com internação compulsória, hospitais de custódia (os chamados manicômios judiciários) e, principalmente, nas já citadas comunidades terapêuticas, contra o que o plenário se voltou diversas vezes, aos brados de “Fora CT”. Outro protesto recorrente foi contra o destino de verbas públicas para financiamento dessas instituições, operadas majoritariamente por igrejas evangélicas.

A liberdade é terapêutica

O cuidado em liberdade na saúde mental foi um dos eixos discutidos durante a Conferência
O cuidado em liberdade na saúde mental foi um dos eixos discutidos durante a Conferência

A diretora do Departamento de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (Desmad) do Ministério da Saúde, Sônia Barros, defendeu na primeira mesa da Conferência um tratamento digno e humano aos usuários e usuárias da Raps. Ela ressaltou que a palavra liberdade aparece 19 vezes na Declaração Universal dos Direitos Humanos, sendo o vocábulo com maior número de inclusões no documento. Não por acaso. 

Com uma fala costurada pelas ideias de pensadores como o psiquiatra italiano Franco Basaglia e o também psiquiatra e pensador martinicano Frantz Fanon, Sônia lembrou que “a descoberta da liberdade é a mais óbvia que a psiquiatria poderia fazer”, numa referência a Basaglia. Ela ressaltou que, mesmo sendo óbvia, tal constatação ainda precisa ser defendida.

“Liberdade e sanidade andam juntas”, acrescentou ainda, citando Fanon e explicitando seus ideais à frente do Desmad. “A perda da liberdade é sempre um fator potencializador do sofrimento”. Com um relato impactante, ela compartilhou a experiência de uma visita feita a um hospital de custódia, no Paraná, em meados do ano, junto com a então ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber.

“A impressão é que naquele espaço o século 18 foi cristalizado. E os mesmos corpos estão lá: pretos, periféricos e pobres”, constatou, sobre o lugar que classificou como “máquinas de moer gente”. “Nessa engrenagem, sabemos que nada se salva”, lamentou. 

Quem também interagiu com a plenária foi o representante do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, do Distrito Federal, Kleidson Alves. Simbolizando o estereótipo que acabara de ser descrito por Sônia, preto e periférico, o também conferencista contou que passou seis anos vivendo pelas ruas, sem moradia, e destacou que não foi a internação compulsória em uma CT que o libertou, mas sim conhecer e passar a frequentar o Centro de Atenção Psicossocial (Caps). Um verdadeiro divisor de águas em sua vida. [Relembre a reportagem CapsAD: Entrada Livre em Radis 202].

“O Caps, além de cuidar da minha saúde mental, me capacitou para me reinserir na sociedade. Ajudou a concluir primeiro e segundo graus, através do Caps, consegui um emprego – do qual muito me orgulho – que foi a abordagem de rua”, disse à reportagem, referindo-se a sua atuação no Caps como facilitador, ajudando outras pessoas em situação de rua ou em uso abusivo de álcool e drogas a buscarem tratamento adequado. 

Antes de chegar ao Caps, Kleidson tentou a reabilitação em uma comunidade terapêutica, onde foi privado da liberdade e tentaram lhe impor trabalhos forçados como um suposto protocolo de tratamento. Conseguiu fugir após 18 dias de internação para nunca mais querer voltar.  

Não às comunidades religiosas e internações compulsórias

Conferencistas se manifestam em favor de uma política de atenção à saúde mental com base nos princípios do SUS, na Tenda Paulo Freire
Conferencistas se manifestam em favor de uma política de atenção à saúde mental com base nos princípios do SUS, na Tenda Paulo Freire

A experiência vivenciada por Kleidson se cruza com a história de milhares de pessoas internadas contra a vontade para tratamento de dependência de álcool e outras substâncias nessas CTs. Nem todas conseguem fugir e por vezes o desfecho é o pior possível, como movimentos sociais e setores da imprensa têm denunciado e noticiado. Um levantamento feito em reportagem do UOL, em 2022, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), estimou que naquele ano cerca de 80 mil pessoas estavam internadas em comunidades terapêuticas no país. Dessas, 11 mil custeadas com recursos públicos.

Instituída como política pública de saúde mental para recuperação de adictos em 2011, por Dilma Rousseff, as CTs foram altamente incentivadas durante os mandatos de Michel Temer e principalmente de Jair Bolsonaro, com quem o orçamento destinado a essas entidades deu um salto de 169%, em 2019. Ainda de acordo com a apuração do UOL, Entre 2017 e 2020, o governo federal investiu quase R$ 300 milhões no funcionamento dessas instituições, reconhecidamente precárias e ineficazes.

Natural de Goiânia, Vanete Resende participou da 5ª CNSM pela Associação de Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Goiás (Aussm-GO) e reivindicou o fortalecimento dos Caps em oposição ao custeio das CTs: “Vim para essa Conferência em busca de melhorias para os Caps, porque hoje as comunidades terapêuticas estão tomando conta e os Caps estão decadentes [financeiramente]”, disse à Radis, protestando contra o aporte financeiro milionário feito pelo governo federal nos últimos anos. 

“Eu sou do Caps, fui moradora de rua por dez anos, hoje graças ao Caps não estou mais na rua e estou lutando contra essas comunidades terapêuticas porque elas não têm o que oferecer, a não ser aleluia e oração”, criticou. Mesmo no governo Lula, o financiamento público das CTs segue como política de Estado – por meio do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) – e foi o principal alvo de protestos durante a Conferência. 

Um grupo de conferencistas chegou a convocar e realizar um Ato Público em frente à sede MDS, na Esplanada dos Ministérios, no dia 13/12, contra o ministro Wellington Dias e o investimento público nas CTs.

Liderança do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), Vanilson Torres foi outro que manifestou preocupação com a posição dúbia do atual governo em relação às CTs, uma vez que apoia a Reforma Psiquiátrica, mas financia essas instituições. “A gente precisa dizer que quando o MDS cria um departamento de apoio às comunidades terapêuticas, isso faz com que os estados sejam legitimados a não criar serviços ou políticas e sim tentar nos internar nesses locais”, advertiu. 

Para ele, na ponta oposta das CTs, a Raps precisa de investimento e de qualificação de pessoal, para que possa atender a demanda de atendimentos sem que precise recorrer a instrumentos conflitantes com os princípios do SUS.  Questionado sobre propostas de internação compulsória da população em situação de rua, Vanilson foi taxativo: “Querem colocar a população de rua como violentos e violentas, mas a violência é do Estado contra essa população, que determina, por ausência de políticas públicas, a permanência das pessoas em situação de rua”.

Ao comentar a força política das CTs, o líder do MNPR deixou um recado: “Nós sabemos o poder econômico, o poder político de quem está por trás disso, e é muito difícil vencer. Mas a gente não vai desistir. Eles buscam nos assassinar, mas nós decidimos viver e resistir”.

A ministra e a Frente parlamentar

A ministra da Saúde, Nísia Trindade, e o presidente do CNS, Fernando Pigatto, foram algumas das autoridades presentes na abertura da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental
A ministra da Saúde, Nísia Trindade, e o presidente do CNS, Fernando Pigatto, foram algumas das autoridades presentes na abertura da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental

“Exatamente quando se destruiu a Rede de Atenção Psicossocial é que se deixou o sofrimento mental, a falta de cuidado e de acolhimento prevalecer. O nosso papel, como Ministério da Saúde, é retomar essa política e fortalecer essa rede [Raps]”, com essas palavras a ministra da Saúde, Nísia Trindade, ressaltou a importância de recuperar as ações voltadas à saúde mental após o desmonte operado pelo ex-governo de Jair Bolsonaro (Leia em Radis 220):

Nísia aproveitou sua fala na abertura da Conferência para elencar algumas das principais ações voltadas para a saúde mental em seu primeiro ano à frente da pasta. Dentre elas: a criação do Departamento de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, a habilitação de 41 novos Caps e a destinação de R$ 414 milhões de reais por ano à área.

No entardecer do dia 11/12, momentos antes da abertura oficial do evento, do lado de fora do auditório Ivone Lara o clima de entusiasmo e esperança tomou conta da Tenda Paulo Freire. O local foi palco de um gesto simbólico e muito significativo: o relançamento da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial. Um ato em reforço ao cuidado em liberdade no tratamento de saúde mental. “Se não é em liberdade não é cuidado, é controle”, destacou a deputada federal Erika Kokay (PT-DF), ladeada por seu colega de Câmara pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), convidado para coordenar a Frente. 

Os deputados federais pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) e Erika Kokay (PT-DF), no centro da foto, participaram do lançamento da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial
Os deputados federais pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) e Erika Kokay (PT-DF), no centro da foto, participaram do lançamento da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial

A deputada também tratou logo de firmar posição contrária às CTs: “As comunidades terapêuticas não são nem comunitárias e nem terapêuticas”, discursou. “Nós não queremos a lógica punitivista, nós não queremos a lógica segregacionista. Porque o Brasil já viveu isso e não queremos que isso retorne e muito menos que isso retorne com recursos públicos”, emendou sob aplausos da plateia.

Para o deputado Henrique Vieira, a luta antimanicomial foi a primeira organização militante de sua vida, ainda quando aluno secundarista, em Niterói (RJ), há 20 anos. “A agenda da saúde mental é pública, laica, gratuita, de qualidade, horizontal, interdisciplinar e pautada nos direitos humanos. Essa vai ser a nossa luta!”, comprometeu-se, para uma nova salva de palmas.

Acompanhe a pauta

Ao término da Conferência, o presidente do CNS citou algumas das principais propostas aprovadas. “Gostaria de destacar a garantia do acesso à saúde mental desde a atenção básica, de forma desburocratizada, a implementação da política de educação permanente e continuada para as trabalhadoras e trabalhadores da Saúde e em Saúde Mental, a ampliação e o fortalecimento das políticas públicas para o cuidado em liberdade e também agregar os saberes populares construídos nos territórios enquanto estratégia de cuidado e liberdade nas políticas públicas de saúde que garantam a interseccionalidade”. “Esta foi uma conquista do povo brasileiro”, concluiu Pigatto.

Saiba mais sobre os encaminhamentos e discussões da 5ª CNSM no hotsite do Conselho Nacional de Saúde: https://conselho.saude.gov.br/5cnsm e acompanhe novos desdobramentos e abordagens da Conferência aqui no site de Radis e nas próximas edições da revista.

Outros temas debatidos na 5ª CNSM

O desfinanciamento de políticas de atenção à saúde mental nos últimos anos, a necessidade de se repensar melhorias, especificidades e ampliações da Raps e dos Caps, além do aprofundamento de reflexões acerca do crescimento de diagnósticos psiquiátricos em crianças e adolescentes e da patologização psíquica do sofrimento, foram temas que também surgiram nas discussões e propostas da Conferência.

Saúde mental da população indígena

“Para nós, saúde mental só existe se falarmos de bem viver indígena. O SUS hoje precisa reconhecer nossas práticas de cuidado, precisa reconhecer os povos indígenas”.

Priscila Góre Emílio, psicóloga e representante do Movimento das Mulheres Indígenas Kaingang, da Terra Indígena Guarita.


Olhem para o Norte

“É preciso ampliar o cuidado com os povos da floresta”.

Paulo Peixoto, psicólogo e coordenador do Caps de Bujaru (PA).

“O Amazonas é o maior estado brasileiro em extensão territorial, mas as estruturas da Raps ainda são bem primárias. Temos munícios com 100 mil habitantes e que têm apenas um Caps. E às vezes esse município é polo de uma região, aumentando ainda mais essa demanda. Temos que repensar isso porque tenho certeza de que outros estados também sofrem com essa estruturação e principalmente no interior”.

Mirela Mendonça, psicóloga do Amazonas, sobre a necessidade de reforçar a Raps nos interiores dos estados.


Diagnósticos psiquiátricos na infância e adolescência

“Está havendo um grande movimento no sentido da identificação precoce do Transtorno de Espectro Autista (TEA). Esse diagnóstico interessa ao tratamento, mas a forma, através de screening de grandes populações [grandes amostragens em uma população] significa também um risco de um sobrediagnóstico, de um aumento exponencial da demanda e criação de uma expectativa de atenção que não será fornecida, pois não é a adequada e nem indicada na escala em que esses levantamentos vão sugerir”. 

Pedro Gabriel Delgado, médico psiquiatra, professor da UFRJ e vice-presidente regional da Associação Mundial de Reabilitação Psicossocial.

Assista às transmissões da 5ª CNSM no canal do CNS no YouTube:

https://www.youtube.com/@comunicacns

— Fotos: Ascom/CNS, Erasmo Salomão, Elias Santos, Astronauta Filmes e Rede Colaborativa da 5ª CNSM
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