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No discurso oficial, uma floresta que tomba e dá lugar a pastagens e plantações de soja recebe o nome de progresso. É a ampliação das fronteiras agrícolas, o Brasil que precisa crescer. Mas, para povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outras populações tradicionais do campo e da floresta, esses são sinais de devastação e morte. Vistas por vezes como entraves ao desenvolvimento econômico, as comunidades tradicionais atuam na busca de alternativas e soluções que reduzam o impacto do desmatamento, da degradação ambiental e de incêndios criminosos e garantam a sobrevivência de seus territórios. Indígenas e quilombolas são guardiões da floresta contra o avanço da soja, do boi, do garimpo e do fogo. Nesta reportagem, trazemos algumas histórias que mostram como esses povos têm se organizado para resistir às políticas de devastação ambiental e preservar a biodiversidade brasileira.

“A Amazônia pede socorro”

Alessandra Korap Munduruku

Alessandra Korap é filha dos igarapés. Como uma mulher-peixe, ela cresceu nas águas que cortam a Reserva Praia do Índio e alimentam o curso médio do Rio Tapajós, na altura do município de Itaituba, no Sudoeste do Pará. Seus filhos e parentes também nasceram ali e se banharam no mesmo rio e nos mesmos igarapés, assim como seus antepassados. São águas que carregam memórias. Indígena do povo Munduruku e mãe de dois filhos, ela narra que viu a chegada de garimpeiros, madeireiros e grandes empreendimentos como portos graneleiros — “as dragas mexem no fundo da água” e arrastam sujeira e lama para dentro das terras indígenas. “Todos esses empreendimentos estão deixando a água suja, matando os nossos peixes, contaminando os rios e trazendo pessoas para invadir cada vez mais as terras com olhar de ambição”, alerta.

“Não é só a gente que
tem que defender.
O mundo todo
tem que saber o que
está acontecendo.”

Os invasores chegam como se aquela fosse “uma terra sem lei”, conta Alessandra — ocupam territórios indígenas ou unidades de conservação para atividades de garimpo ou extração ilegal de madeira. “A Amazônia não é mais aquela floresta toda limpa e bonita”, afirma. As águas que as comunidades utilizam para beber e se banhar, e da qual extraem uma de suas principais fontes de alimento, os peixes, são contaminadas pelo mercúrio usado no garimpo. Em 2020, um estudo da Fiocruz com indígenas do povo Munduruku, no Médio Tapajós, em parceria com a organização WWF-Brasil, indicou que todos os participantes da pesquisa estavam de alguma maneira afetados pelo contaminante — e de cada dez, seis apresentaram níveis de mercúrio acima do seguro. “A Amazônia pede socorro. Não é só a gente que tem que defender. O mundo todo tem que saber o que está acontecendo”, aponta.

Lideranças dos povos tradicionais que resistem ao avanço da mineração e do desmatamento tornam-se alvo de ameaças de morte e intimidações. Foi o que aconteceu com Maria Leusa, conhecida liderança do povo Munduruku no Pará, que foi obrigada a deixar a aldeia com sua família, em Jacareacanga, no extremo Sudoeste do estado, depois que teve a sua casa incendiada em maio de 2021. A origem dos conflitos está na presença de garimpeiros nas terras indígenas. “Quem for contra o garimpo eles tentam matar. A gente tem que andar fugido para continuar vivo? Quem são os interessados que querem tirar o ouro?”, questiona Alessandra. O Brasil é o terceiro país do mundo que mais mata defensores do meio ambiente e da terra, atrás apenas da Colômbia e das Filipinas, segundo o relatório da organização Global Witness publicado em 2020 — foram 24 ativistas ambientais assassinados no país em 2019, dez deles indígenas.

Mesmo com a realidade cada vez mais desfavorável a quem defende o meio ambiente, Alessandra transformou a sua trajetória de vida em um clamor amazônico em defesa da Mãe Terra. Ela foi a primeira mulher a presidir a Associação Indígena Pariri Munduruku, da qual hoje é vice-presidente. Aprendeu a falar alto com políticos em Brasília, como no episódio que viralizou nas redes sociais, em 2019, em que bateu várias vezes na mesa diante do então presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para denunciar o descaso com as demarcações de terras indígenas no governo de Jair Bolsonaro; sentou para conversar e decidir junto com os caciques; e, por fim, decidiu estudar Direito na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), em Santarém, para conhecer os direitos de seu povo. “As pessoas não querem que a gente descubra quais são os nossos direitos. Só que não podemos nos calar”, ressalta.

Ela foi voz ativa nas manifestações indígenas que ocorreram em Brasília, em junho, no Levante pela Terra, contra o Projeto de Lei (PL) 490, que tramita no Congresso desde 2007 e ganhou força com a base de apoio do governo Bolsonaro: o texto dificulta as demarcações de terras indígenas, ao se basear na chamada tese do “Marco Temporal”, segundo a qual só teriam direito à terra os povos que tivessem a sua posse em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal (entenda o PL 490 no quadro da p. 18). O tema também entrará em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento mais importante para os povos indígenas em 30 anos, adiado para agosto.

As manifestações em junho foram marcadas pela repressão policial contra os indígenas, com uso de bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha. “O Levante pela Terra foi o grito de resistência de mais de 521 anos, mostrando que a gente não parou e não se extinguiu. É o que eles querem, ao nos calar e nos silenciar. Serviu para mostrar que ainda estamos firmes nessa luta, mesmo com as perdas de famílias por causa da covid e das invasões”, relata Alessandra. Para a liderança munduruku, a luta dos povos indígenas é em defesa da vida na Terra, pois todos os seres são afetados pela degradação ambiental e pelas mudanças climáticas. “Não morrem apenas os povos indígenas. Vão morrer pessoas na cidade. Famílias estão passando fome, estão morrendo animais. A soja também precisa de chuva. Ninguém planta se não tiver água. Não é só nós que vamos desaparecer. Vamos todos desaparecer juntos”.

A voz da terra

A bacia do Rio Tapajós também é ameaçada por grandes obras que afetam a vida das comunidades de seu entorno, como indígenas, quilombolas e ribeirinhos. O antigo projeto do Complexo Hidrelétrico do Tapajós previa a construção de cinco usinas hidrelétricas, mas as obras receberam críticas pelos impactos sociais e ambientais, como inundações de áreas de floresta, perda de fauna e flora e destituição das terras de mais de 30 comunidades tradicionais — que tiveram um papel decisivo para que o projeto não fosse implementado.

Esses mesmos impactos foram sentidos pelas comunidades no entorno da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, na bacia do Rio Xingu, próximo a Altamira, no norte do Pará: as populações viram uma área de 478 km quadrados ser inundada, foram deslocadas das terras em que viviam e presenciaram o aumento da violência, da pobreza e da fome. “Quando se fala que vai haver um empreendimento ou uma usina hidrelétrica, quem está interessado? Quais são as máquinas que vão entrar? As pessoas que vêm junto trazem mais violência, drogas e ambição na mala”, descreve Alessandra. A construção de portos graneleiros e ferrovias, para escoar a produção de soja, é outro tipo de empreendimento que ameaça os territórios preservados.

Um caminho de resistência encontrado pelos povos tradicionais para frear o avanço de grandes empreendimentos nocivos ao meio ambiente na bacia do Tapajós foi a construção dos protocolos de consulta, que determinam que as decisões devem ser tomadas com a participação de toda a comunidade. “O protocolo de consulta foi construído porque havia pessoas sendo aliciadas pelo empreendimento no Rio Tapajós, que era a usina. As pessoas estavam traduzindo o que ia ser falado nas aldeias, para enganar os caciques”, conta a liderança munduruku. Os povos não têm descanso: hoje a ameaça é o mercúrio que contamina as fontes de água, os igarapés e os rios. “Quando a gente anda dentro da mata, vê onde eram as nascentes. Os igarapés estão só lama. Outro problema é a derrubada de madeira dentro da floresta. A gente vê pistas de pouso dentro do território e da floresta”, aponta.

A denúncia é outra estratégia encontrada pelos povos para resistir. “Estamos usando as redes sociais para mostrar o que realmente está acontecendo, porque não queremos morrer silenciados”, diz Alessandra. Em 2020, ela recebeu o Prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos por sua atuação como ativista em defesa dos direitos indígenas e pela preservação ambiental. “De 2019 pra cá, a situação vem piorando cada vez mais”, afirma, em referência às políticas do governo Bolsonaro em relação aos povos indígenas e à questão ambiental. A busca de apoio à sua luta é uma forma de dar voz — e força — à resistência dos povos da floresta. “Quando chegam, eles têm máquinas enormes. Botam a placa de ‘área particular’ como se nós não estivéssemos aqui antes”, descreve.

Mesmo em território ameaçado, Alessandra não se intimida e se soma a outras mulheres indígenas que são referência na defesa dos territórios. “As vozes das mulheres indígenas estão indo mais longe. Os próprios caciques falam que as mulheres têm coragem, que elas não recuam”. Ela conta que as mulheres ganharam espaço e hoje são respeitadas pelos caciques mais velhos: “Nossa vida é luta e resistência”, resume. “Todo dia que a gente acorda e vê que ainda estamos vivos, a gente sabe que tem que continuar em mais um dia de luta”. Alessandra afirma que os povos originários são os verdadeiros guardiões da floresta — porque diferente daqueles que “tapam os ouvidos”, eles aprenderam a ouvir a voz da terra. “Existe vida dentro do rio. Tem os locais sagrados. A gente se cura através da natureza”, observa.

“Estamos de frente a uma ofensiva”

Fran Paula, quilombola

Franciléia Paula aprendeu a colher as histórias de seus avós e pais como quem retira uma fruta do pé. Nos relatos que falavam de solidariedade e partilha nas comunidades quilombolas do Pantanal mato-grossense, desde criança ela foi entendendo que o preparo do alimento — do plantio até a colheita, passando ainda pela elaboração de receitas e pelo despertar dos sabores — era uma prática coletiva. “Nos meses de julho a agosto era o tempo de preparar a roça de toco ou coivara, e depois esperar a primeira chuva de outubro para plantio do arroz de noventa dias que era colhido em janeiro”, escreve, recuperando as memórias de infância. O “muxirum” — palavra de origem indígena que foi incorporada nas roças quilombolas — marca todo o percurso do alimento, em que a comunidade se reúne, em mutirão, para o trabalho com a terra.

Práticas ancestrais de agricultura dos povos pantaneiros, como o muxirum e as roças de toco, são fundamentais para o manejo agroecológico dos sistemas agrícolas, explica Fran, como é conhecida, engenharia agrônoma, quilombola, pantaneira e educadora popular da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) no Mato Grosso. Porém, essa herança ancestral corre o risco de desaparecer. O motivo: o avanço do agronegócio sobre as terras quilombolas. “Esses territórios não são regulamentados, titulados pelo Estado. Isso provoca vários conflitos agrários com fazendeiros, o que tem gerado perda de território, que coloca em risco a manutenção dessas práticas de agricultura e, consequentemente, vai pressionando para um esvaziamento das comunidades”, conta à Radis, ela que também é membra do GT Povos Tradicionais, Etnicidade e Ancestralidade da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA).

Técnicas tradicionais de cultivo são utilizadas por pequenos agricultores e comunidades quilombolas para produzir alimentos sem prejudicar a natureza. — Foto: Acervo pessoal.
Técnicas tradicionais de cultivo são utilizadas por pequenos agricultores e comunidades quilombolas para produzir alimentos sem prejudicar a natureza. — Foto: Acervo pessoal.

Os olhos de Fran viram de perto os impactos dos incêndios que atingiram o Pantanal em 2020, no maior registro de fogo na região — de janeiro a outubro, cerca de 4,1 milhões de hectares do Pantanal brasileiro foram queimados, o que corresponde a 28% do bioma, segundo o Instituto SOS Pantanal. A região de Cáceres, onde Fran atua, foi uma das mais atingidas. “Se considerarmos o rastro da destruição, ele chega a ser imensurável. A gente sabe que tem coisas que se perderam: foram destruídas pelo fogo e não serão restauradas, justamente por conta da fragilidade ecológica do bioma”, ressalta. Além da destruição da vegetação e da morte de animais, os incêndios também atingiram comunidades, que perderam colheitas e casas. “Isso tem provocado impactos que afetam diretamente os modos de vida nas comunidades tradicionais, que dependem da floresta em pé e de seus territórios protegidos e assegurados”, afirma.

Os incêndios no Pantanal, na Amazônia e no Cerrado não acontecem por acaso: eles são parte de um “intenso e acelerado processo de desregulação ambiental e desconstrução do aparato institucional”, como Fran escreveu em artigo de setembro de 2020, ao lado de outras duas integrantes da Fase, Letícia Tura e Rosilene Miliotti. “Estamos de frente a uma ofensiva dos setores ruralistas e governamentais, que agem nessa tentativa de flexibilização das leis ambientais e também na omissão diante de conflitos e impactos que têm sido gerados a partir de um modelo desenfreado de exploração dos biomas e das florestas”, afirma à Radis. No rastro do fogo, estão os interesses do agronegócio e da bancada ruralista no Congresso, aponta. “O governo usa essas florestas como mercadoria, não garantindo a proteção dos nossos territórios”.

Técnicas tradicionais de cultivo são utilizadas por pequenos agricultores e comunidades quilombolas para produzir alimentos sem prejudicar a natureza. — Foto: Acervo pessoal.
Técnicas tradicionais de cultivo são utilizadas por pequenos agricultores e comunidades quilombolas para produzir alimentos sem prejudicar a natureza. — Foto: Acervo pessoal.

Saúde da Terra

Os povos pantaneiros não assistiram de braços cruzados aos incêndios que converteram em cinza uma parcela do bioma: como Fran ressalta, são esses povos, em seus territórios, que têm monitorado os focos das queimadas e buscado se organizar em redes e brigadas populares em defesa do Pantanal. “Os povos tradicionais pantaneiros são os principais agentes ambientais e exercem uma vigilância que é permanente sobre o bioma”, observa.

A resistência contra a devastação também tem levado à valorização de práticas de agricultura sustentável, sem agredir a terra, que fazem parte da cultura dos povos tradicionais. “O agronegócio é um modelo de destruição, relacionado às mudanças climáticas, de não produção de alimentos”, aponta Fran, lembrando que esse modelo não garante comida na mesa dos brasileiros. “A agricultura é feita a milênios no planeta e nós temos muito que revisitar os conhecimentos tradicionais de se fazer agricultura de verdade, que garanta a produção de alimentos, o manejo sustentável e a conservação das florestas”. Segundo a engenheira agrônoma, enquanto a agricultura familiar e os sistemas agroecológicos não recebem incentivos governamentais para fortalecer a comercialização e o consumo, o agronegócio, que não produz alimentos para o país, desfruta de créditos, assistência técnica e apoio governamental — em um cenário em que cresce a insegurança alimentar e a fome entre os brasileiros, como Radis mostrou na edição 225.

“O planeta precisa desse equilíbrio até para se manter vivo. O que vivenciamos hoje é justamente o contrário: um modelo agrícola alicerçado numa exploração desenfreada e na destruição do meio ambiente, e é óbvio que isso é insustentável”, constata. Ela cita o exemplo de práticas agroecológicas e de manejo adequado do solo, com o cultivo de várias espécies de plantas, sem o uso de agrotóxicos. É o caso também das redes de trocas de sementes tradicionais, em saídas encontradas pelos pequenos agricultores para conservar variedades de espécies centenárias e adaptadas às condições locais de agricultura. “As redes de trocas de sementes tradicionais na Baixada Cuiabana são um exemplo de conservação de espécies — de espécies para alimentação, sementes e mudas que são utilizadas para fins medicinais e que cumprem um papel importante na manutenção da biodiversidade desses biomas e no seu equilíbrio”, pontua.

Agro é fogo: as queimadas provocadas pelo agronegócio, no Pantanal, prejudicam as comunidades tradicionais, afirma Fran Paula (à direita). — Foto: Acervo pessoal.
Agro é fogo: as queimadas provocadas pelo agronegócio, no Pantanal, prejudicam as comunidades tradicionais, afirma Fran Paula (à direita). — Foto: Acervo pessoal.

Os saberes dos povos tradicionais sobre agricultura, ressalta Fran, constroem sistemas resilientes no tempo a diversas mudanças. “Através do manejo do território, de forma racional e adotando uma diversidade de práticas agrícolas tradicionais, são responsáveis pela manutenção de engenhosos sistemas agrícolas. Isso é ciência. E é agroecologia praticada há muito tempo”, constata. Ela menciona as experiências de muxirum e roça de toco, que conhecia desde criança pelas histórias narradas por sua mãe, no quilombo Campina de Pedra em Poconé, no Mato Grosso.

Com sua mãe, seu pai e seus avós, Fran também aprendeu que não há saúde humana sem respeito à Terra. Uma coisa está associada à outra. “A saúde do corpo depende da saúde da Terra, do planeta, que é muito maior do que nós, seres humanos”, afirma. No site Ancestralidades (www.ancestralidades.com), voltado para a valorização de saberes tradicionais, ela traz alguns desses relatos que misturam memórias e vivências sobre agricultura e saúde do corpo e da terra: “O conhecimento sobre os remédios do mato, como aprendi a chamá-los desde criança, são vastos e riquíssimos, utilizados na maioria das vezes de forma preventiva”, escreve. Os textos nascem de um processo de escuta da sabedoria transmitida por sua avó e outros mais velhos; e são um convite para ampliar o olhar sobre saúde e o nosso vínculo com a Mãe Terra, em um contexto em que “vivemos uma pandemia que é um sintoma de desequilíbrio entre nós e a natureza”. “É urgente pensarmos em ações para começarmos a agir e recuperar a saúde do planeta, se a gente quiser continuar existindo”, reflete.

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