Há 35 anos ele abraçou a missão de levar a fé às ruas, sempre ao lado das pessoas em situação de vulnerabilidade. Prestes a completar 73 anos de idade [o aniversário é dia 27 de dezembro], padre Julio Renato Lancellotti é vigário episcopal para a população de rua da Arquidiocese de São Paulo e pároco na igreja de São Miguel Arcanjo, bairro da Mooca, região leste da capital. Um dos líderes religiosos mais atuantes no campo social, seu trabalho ganhou notoriedade nacional durante a pandemia de covid-19, quando quebrou a marretadas pedras instaladas pela prefeitura de São Paulo sob viadutos que serviam de moradia para pessoas sem moradia.
Agraciado nos últimos meses com o prêmio Zilda Arns, de Direitos Humanos de 2021, concedido em agosto pela Câmara dos Deputados, e com o Colar de Honra ao Mérito, a mais alta honraria da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), em novembro, padre Julio nunca buscou holofotes ou reconhecimento. No dia em que concedeu esta entrevista à Radis, no fim do mês de setembro, foi enfático em descartar qualquer interesse ou projeto relacionado ao poder — “Se tem alguma coisa que eu não aspiro é o poder. Nenhum tipo de poder, nem o eclesiástico” — ao seguir sua rotina de articulação em defesa dos mais vulneráveis e acolhimento dos que precisam de um prato de comida, um teto para viver, um olhar de atenção.
Nascido no bairro do Brás, filho de pai comerciante e mãe secretária, não é de hoje que padre Julio não se deixa envolver em polêmicas e segue firme no propósito de acolher quem precisa, mesmo nos dias em que o risco da pandemia exigia estratégias de distanciamento social. “Regras sanitárias não significam incomunicabilidade. E não significam o desconhecimento do outro, a negação do outro”, declarou nesta entrevista, em que também destacou a importância da comunicação e da humanização nas ações de saúde e criticou a solidão que acompanha o uso das redes sociais.
Teólogo, educador e técnico em Enfermagem por formação, foi um dos fundadores dos grupos da Pastoral da Criança e colaborou na formulação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Desde que se ordenou padre, em 1985, atua junto a adolescentes em conflito com a lei, detentos em liberdade assistida, pessoas com HIV/aids e populações de baixa renda e em situação de rua. Nos anos 1990, fundou casas de apoio para crianças que vivem com HIV e atuou diretamente na assistência às pessoas que viviam na região conhecida como Cracolândia, no Centro da Cidade.
Ativo e ativista na defesa do respeito às diferenças e da celebração da diversidade, ele defendeu uma formação menos positivista e mais integral para profissionais de saúde, chamou atenção para os riscos de uma “espiritualidade alienante” e mostrou o poder da inclusão e da interlocução para construir uma realidade mais justa e saudável: “A gente tem que aprender a conviver com a diversidade e a pluralidade, sem querer destruir ninguém”.
“Se você está do lado dos descartados, você vai ser descartado também.”
Padre, em uma homilia recente, o senhor comentou uma passagem da Bíblia que fala dos “microscópicos, dos descartáveis, das pessoas que ninguém vê”. O senhor tem um histórico de trabalho com as populações invisíveis. Como é trabalhar com os microscópicos de hoje?
É ser desvalorizado, também. É entrar na mesma lógica. Se você está do lado dos descartados, você vai ser descartado também.
E qual a contribuição que os profissionais de saúde podem dar para mudar este cenário?
A contribuição que todos podem dar, e não há algo específico que cada um possa dar, é que todos temos que resistir ao massacre. Nós estamos vivendo um massacre. E cada um, à sua maneira e como pode, tem que tentar resistir ao massacre.
“Nós estamos vivendo um massacre. E cada um, à sua maneira e como pode, tem que tentar resistir ao massacre.”
Quais são os impactos desse massacre na saúde das pessoas que vivem em situação de rua?
Acho que aumenta o sofrimento mental, aumenta a distorção de percepção. Uma das coisas que mais me chama a atenção é aquilo que a [escritora] Simone de Beauvoir já falava: “Os opressores não teriam tanto poder se não tivessem tantos cúmplices entre os oprimidos”. E o que depois o Paulo Freire coloca: “Se você não tem uma educação libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor”. A população de rua é atingida pela mesma ideologia dominante. Então eles também reproduzem a mesma forma de pensar. O fato de você ser da rua não significa que você tenha um pensamento libertário. Na rua também tem “terraplanista”, na rua também tem negacionista, e eles também vão encontrando os diversos expedientes da lógica neoliberal para agir. Eles também querem acumular, eles também querem ter vantagens, como todo mundo. Eles não são imunes à forma dominante de pensamento. Eles são invisíveis, dependendo do momento, mas há momentos em que são extremamente visíveis: quando eles estão perturbando.
Essa é uma estratégia de chamar atenção para si?
Não só isso. A sociedade não os vê porque a percepção é seletiva. Você só percebe aquilo que quer. Ou você percebe segundo a sua forma de percepção. Então a percepção dos grupos sociais, se eles estão sofrendo, mas não estão incomodando, não importa. Se ele está com fome, mas está lá no buraco onde ele mora e eu não estou vendo, então não importa. Mas se eu vejo, importa.
Diante deste cenário, como o senhor avalia a atuação da Saúde?
Nós padecemos de um grande mal, que é a compartimentalização da saúde. Se a pessoa está com um problema em determinada especialidade, o profissional não é capaz de vê-la como um todo. Esse é um problema geral da Saúde, que atinge todos, as pessoas de rua também. Então o que acontece é que elas vão ser atendidas por um profissional daquela especialidade, mas o sofrimento delas, na totalidade, não é somente cardíaco, ou renal, ou ortopédico; o sofrimento está na existência delas. Então o profissional não olha para a existência da pessoa, olha para aquela área que trabalha. Assistente social vai ver uma área, psicólogo outra, médico outra. Ele, inteiro, quem vai ver? É um problema geral, mas que na população de rua se agudiza mais.
O senhor tem formação nas áreas de Saúde e de Educação. Como essa trajetória lhe ajudou a se sensibilizar para as causas com as quais trabalha hoje?
A grande questão é ver a totalidade da pessoa. Nenhuma pessoa é uma coisa só. Ou: ninguém é um problema só. Na população de rua, por exemplo, o pessoal acha que se tiver emprego vai resolver o problema. Não é uma verdade absoluta para todos. “Ah, se tivesse moradia resolveria!” Também não é uma verdade absoluta. A gente vive o mundo do individualismo, do subjetivismo, mas é do “meu” subjetivismo, do “meu” individualismo. Eu não aplico isso para os outros. Falta pensar: Qual é a percepção que ele tem de mim? Eu sei qual é a percepção que tenho dele, mas dificilmente eu faço um exercício para saber qual é a percepção que ele tem de mim.
Falta escuta?
Isso é geral! Saiu um livro recentemente, que recebi ontem, que fala da solidão. A gente nunca viveu tanto em massa e tão solitário. A solidão na rua é ainda mais grave. Em todas as atividades que a gente faz, a gente busca mais que entregar o pão; não é somente porque esse pão vai matar a fome da pessoa, mas porque entregar o pão é um instrumento de quebra da incomunicabilidade. Você entrega o pão e olha para a pessoa. E a pessoa te vê, também. Então há uma interação. Você viu aqui que eu não estava entregando nada. Mas eles fizeram uma interação comigo. Quem é que interage com uma pessoa de rua? Quando acontece, é uma interação muito pragmática. Eu vou falar com você porque você vai tirar documento ou ter uma consulta. Eu não falo com você porque você é uma pessoa e quero conversar.
O senhor considera então que a comunicação é essencial para a garantia do direito à saúde?
A comunicação é essencial em todos os sentidos. Para comunicar sentimentos, emoções. Como a população de rua comunica a dor? A dor não é só física, é uma dor existencial. Se eu vou a um médico com dor de estômago, ele só pergunta do meu estômago, mas não investiga por que será que meu estômago não vai bem.
Falta uma formação mais integral para os profissionais de saúde?
Hoje a formação dos profissionais é muito positivista, aliás, a educação brasileira é muito positivista. Em todas as áreas. Você vê na área médica: as pessoas vão para especialidades, mas não tem ninguém especialista em ser humano. Tem especialista no pé do ser humano, na cabeça, na mão, no olho, no ouvido, na bexiga, mas não tem ninguém especialista no ser humano. Seria quem? O psiquiatra? O psicólogo?
O senhor acredita que a espiritualidade pode cumprir este papel?
A gente quando fala de espiritualidade precisa saber do que está falando, porque existe muita espiritualidade alienante, também. O ateu pode ter uma espiritualidade, o humanista pode olhar para o ser humano e vê-lo inteiro. Há profissionais que fazem isso, por sua própria forma de ser, mas não por ofício.
De que maneira a pandemia de covid-19 agudizou todas estas questões?
O que a gente viu é que a pandemia, num primeiro momento, gerou muito medo. E esse medo imobilizou as pessoas. Por exemplo: ontem houve a festa de São Miguel aqui. E vieram muitas pessoas que eu não via desde o início da pandemia. Eu percebi o quanto estas pessoas estão sofridas, envelhecidas, descuidadas. Elas estão muito marcadas pelo isolamento, pela solidão, pela não interação.
Como equilibrar o distanciamento social e as demais regras sanitárias com o cuidado com a saúde?
O distanciamento e as regras sanitárias não significam incomunicabilidade. E não significam o desconhecimento do outro. Não significam a negação do outro.
O senhor falou sobre a incomunicabilidade, sobre o fato de que nunca estivemos tão conectados e tão distantes uns dos outros. O senhor mantém no Instagram uma conta com milhares de seguidores. Como o senhor avalia o potencial destas redes tecnológicas de comunicação?
As redes sociais são como uma faca, que serve para descascar uma fruta, mas também serve para ferir os outros. Depende de como você usa. Muita gente usa as redes sociais para me ferir; eu procuro não vigiar a rede social de ninguém, não fazer polêmica. Eu não fico vendo o que cada um pensa para xingar, mas tem gente que se dedica a isso. Tem gente que entra na transmissão da missa para me xingar. Então acho que é uma questão de vontade. Se você vai dar uma palestra e eu não me interesso pelo assunto, eu não vou entrar na sua palestra. E não vou ficar xingando você por pensar daquele jeito. Isso não é comunicar. Isso é uma negação do outro e é uma estratégia da retórica do ódio, que é desqualificar o interlocutor. Ao invés de discutir o conteúdo, eu discuto e desqualifico a pessoa. “Ah, você é um comunista”; “você é um herege”; “você é um louco”.
De que modo o exemplo de são Miguel Arcanjo o inspira para continuar na luta por uma sociedade mais justa e saudável?
Ele me dá inspiração para lutar desarmado, para lutar sem a lógica da arma e da destruição. A frase “combater o mal” é muito dura, a gente tem que aprender a conviver com a diversidade e a pluralidade, sem querer destruir ninguém.
O senhor já disse que “não luta para ganhar, mas para ser fiel”. Como o senhor cuida da própria saúde?
Depende do que entendemos por cuidar. [Risos] Às vezes o autocuidado pode ser um fechamento. Eu não vou ter boa saúde enquanto as pessoas com quem me relaciono estão sofrendo. Eu sou atingido muito pela dor, pelo sofrimento. Eu procurei, durante a pandemia, aprender a ler o olhar das pessoas. Vejo olhares extremamente sofridos, então não é possível cuidar da saúde em um mundo doente. Você não vai se sentir são caso o mundo continue doente.
Cuidar da saúde então é um sacerdócio?
É uma relação de humanização. O povo da rua não vai ter saúde, por exemplo, se não tiver onde morar, se não tiver um lugar onde se sinta acolhido, se não tiver alimentação e, principalmente, se não tiver autonomia. Nós vivemos uma estrutura de enlouquecimento, que está nos matando. Temos que lutar contra isso.
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