Em 1994, uma ideia revolucionária ganhou vida com 328 equipes em 55 municípios brasileiros. A experiência consistia na presença de um médico, um enfermeiro, um ou dois técnicos de enfermagem e quatro a seis agentes comunitários (ACS) para promover saúde de forma continuada e integral na vida das pessoas, unindo o cuidado individual com abordagem coletiva e comunitária. O Sistema Único de Saúde (SUS), recém-criado após a Constituição de 1988, ganhava uma das suas principais marcas — a Estratégia Saúde da Família (ESF), que se tornaria o modelo ordenador da atenção primária no Brasil.
Ao completar 30 anos em 2024, a ESF abrange um total de 52 mil equipes, com uma cobertura de aproximadamente 70% da população do país. Ao longo de três décadas, o modelo expandiu a presença do SUS no território brasileiro, tornou-se referência internacional na redução da mortalidade infantil e materna, ajudou a ampliar a cobertura vacinal, sobreviveu às tentativas de desmonte e continua sendo o principal contato da maioria da população com serviços de saúde.
O legado desses 30 anos é sentido no cotidiano das pessoas. “Os estudos comprovam que a ampliação da saúde da família reduziu a mortalidade de crianças menores de 5 anos, a mortalidade por diarreias, a internação por condições sensíveis à atenção primária, as taxas de mortalidade precoce por acidente vascular encefálico, minorou desigualdades e reduziu a mortalidade de idosos”, sintetizou Lígia Giovanella, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), no Seminário “30 anos da ESF no SUS: Efeitos no acesso e na saúde da população” (11/10), organizado pela Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde (APS) da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Entre as contribuições da ESF, Lígia aponta o maior acesso da população aos serviços públicos de saúde. “A maioria da população, hoje, usa regularmente uma Unidade Básica de Saúde (UBS)”, disse à Radis. Além da melhora dos indicadores, a saúde da família também deixa o legado — “ainda que insuficiente”, como ressalta Lígia — de mudanças curriculares, com o fortalecimento da formação médica e de enfermagem em saúde da família e comunidade. Para Brenda Costa, diretora de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), a ESF permitiu que o direito à saúde chegasse nos lugares mais distantes do país. “A gente conseguiu capilarizar o SUS para os territórios diversos do Brasil”, ressalta [Leia entrevista clicando aqui].
Conquistas e reveses
A trajetória de uma estratégia que busca garantir o direito constitucional à saúde para a população, com a presença territorial e comunitária do SUS, não foi simples — e muito menos fácil. Criado em 1994, o então Programa Saúde da Família (PSF) priorizou inicialmente municípios mais pobres, com piores indicadores de saúde, como uma política para reduzir desigualdades.
A iniciativa partia de algumas experiências que existiam no país, como o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs), criado em 1991. Como lembra Carlile Lavor, ex-coordenador da Fiocruz Ceará e um dos idealizadores da figura do ACS, o agente de saúde “fez o elo entre a comunidade e o sistema de saúde” e “ajudou o SUS a nascer” [Leia entrevista aqui].
Com o passar do tempo, o PSF foi reconhecido como estruturante — e o nome “programa” já não dava mais conta, sendo substituído por Estratégia, com a criação da primeira Política Nacional de Atenção Básica (Pnab), em 2006 [Veja a Linha do Tempo da Estratégia Saúde da Família]. Em 2013, um relatório da Organização das Nações Unidas reconheceu que o declínio da mortalidade infantil no Brasil ocorreu pela combinação de três fatores: a própria criação do SUS, a expansão da ESF e a ampliação das políticas sociais, como o Programa Bolsa Família.
A partir de 2016 e 2017, no entanto, o modelo — que ainda tinha o desafio de ampliar a cobertura e se sustentar no tempo — começou a sofrer uma série de investidas para o seu desmonte. Em 2017, foi lançada uma nova Pnab, que enfraquecia a abordagem territorial, o trabalho comunitário e o cuidado integral e multidisciplinar ao privilegiar a existência de outros modelos de equipe que não seriam saúde da família (Radis 183). Também houve mudanças no repasse de recursos, com o lançamento do Programa Previne Brasil, em 2019 — que fazia parte de um contexto mais amplo de desfinanciamento do SUS, sob o peso da Emenda Constitucional nº 95, do Teto de Gastos.
Radis contou essa história ao longo de diversas edições (134, 171, 183, 207, 219, 234). Como lembrou Rosana Aquino, professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC-UFBA), no mesmo seminário da Rede APS (11/10), as trajetórias em políticas públicas não são lineares. “Muitas vezes, infelizmente, há reveses. É uma trajetória tortuosa. É muito bom que a gente esteja hoje num momento de reconstrução”, ressaltou.
E o que esperar do futuro? “Espero que de fato se retome a prioridade para a ESF na plenitude de uma abordagem integral de APS: de orientação comunitária, territorial, resolutiva, de qualidade, com participação social, bem integrada à rede regionalizada do SUS para garantir o cuidado conforme a necessidade”, disse Lígia à Radis.
Para resgatar a história, refletir sobre o presente e pensar os caminhos para o futuro, na celebração dos 30 anos da saúde da família, Radis organizou uma edição especial com uma série de reportagens que abordam os diferenciais deste modelo reconhecido internacionalmente e suas contribuições para o fortalecimento do SUS. Essa história será contada a partir do ponto de vista de trabalhadores e trabalhadoras que atuam diretamente nas ruas, nas casas e nos territórios: médicos e médicas, enfermeiros e enfermeiras e agentes comunitários de saúde que dão vida às equipes que garantem saúde às famílias e às comunidades.
O que é saúde da família?
A Estratégia Saúde da Família (ESF) é um modelo organizador da atenção primária à saúde no Brasil, de acordo com os preceitos do Sistema Único de Saúde. Uma das principais características da ESF é a presença de uma equipe multiprofissional, a equipe de Saúde da Família (eSF), composta por, no mínimo: um médico generalista ou médico de família e comunidade; um enfermeiro generalista ou especialista em saúde da família; um auxiliar ou técnico de enfermagem; e agentes comunitários de saúde.
A essa equipe podem ser acrescentados os profissionais de saúde bucal, como cirurgiões-dentistas e técnicos ou auxiliares de saúde bucal. A saúde da família conta também com Equipes Multiprofissionais na Atenção Primária à Saúde (eMulti), antigo Nasf (Núcleo de Apoio à Saúde da Família), da qual fazem parte profissionais dos mais diversos, como fisioterapeutas, educadores físicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos e outros.
De acordo com o Ministério da Saúde, cada equipe deve ser responsável por, no máximo, 4 mil pessoas, sendo a média recomendada de 3 mil pessoas, respeitando critérios de equidade para essa definição.
Toda atenção básica é saúde da família?
Não. Atenção básica (AB) é o conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrangem a promoção e a proteção da saúde, a prevenção, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção da saúde. Contudo, desde a Política Nacional de Atenção Básica de 2006, a ESF é vista como modelo prioritário, que visa a reorganização da atenção básica no país, incluindo a substituição da rede de AB tradicional.
Legados da ESF (1994-2024)
- Reduziu a mortalidade infantil e materna
- Diminuiu a ocorrência de desnutrição e diarreia
- Ampliou a cobertura vacinal
- Reduziu as internações por doenças crônicas
- Aumentou a realização de ações de saúde, como atividades educativas, consultas e visitas
- Ajudou a diminuir as mortes por aids e tuberculose
- Levou o SUS e os serviços de saúde a municípios remotos
- Protegeu idosos contra a morte por causas evitáveis
- Reduziu as desigualdades em saúde
Fonte: Dados apresentados no Seminário “30 anos da ESF no SUS: Efeitos no acesso e na saúde da população”
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