Em um cenário de envelhecimento acelerado e marcado por desigualdades no país, Milton Crenitte tem se destacado por seu olhar inclusivo para o tema, ao se debruçar, na pesquisa e no ensino, sobre os reflexos do fenômeno na população LGBT+. Médico geriatra e diretor técnico do Centro Internacional de Longevidade Brasil (ILC-BR), sua tese de doutorado em Ciências, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), mostra o impacto do gênero e da orientação sexual no pior acesso à saúde em brasileiros com 50 anos ou mais.
Nesta entrevista que concedeu à Radis, ele falou sobre as especificidades que afetam de maneira mais contundente o envelhecimento da população LGBT+ no país, destacou barreiras concretas que impedem que gays, lésbicas e pessoas transgênero sejam acolhidas nos serviços de saúde e defendeu que as políticas públicas existentes no país sejam de fato efetivadas. Crenitte declarou ainda ser fundamental investir na formação de profissionais para que reconheçam identidade de gênero e orientação sexual como determinantes sociais do processo saúde e doença.
“Sabemos que pessoas LGBT+ idosas têm um suporte social mais precário. Então quando se fala em gestão do cuidado, de política do cuidado, é preciso pensar em equidade para proporcionar um cuidado melhor para essas pessoas”, disse o coordenador do Ambulatório Trans 40+ no Centro de Saúde Escola Geraldo de Paula Souza, em São Paulo, que também defende atenção integral à população LGBT+ e a participação social como preparatória para o envelhecimento saudável.
Professor no curso de Medicina da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), onde supervisiona o internato de clínica médica, Crenitte falou sobre cuidado, solidão e violência, deixando ainda um recado: “Quando eu enxergo o velho como o outro e não como eu, eu desumanizo o velho, sou etarista, não penso no meu próprio envelhecimento. A gente precisa mudar, parar de achar que o velho é o outro, e entender que nós somos seres ‘envelhecentes’. Assim a gente também vai pensar em políticas públicas, em melhores escolhas individuais e coletivas e criar uma sociedade em que as gerações convivam de maneira harmoniosa”.
“O envelhecimento no Brasil está acontecendo de maneira revolucionária, rápida, mas ainda muito acompanhado de desigualdades”
Você poderia fazer um panorama sobre o envelhecimento no Brasil?
A gente tem que entender envelhecimento como um direito, uma conquista, um marco civilizatório. O Brasil vive atualmente, como diz o Alexandre Kalache [ex-diretor de Longevidade da Organização Mundial da Saúde (OMS)], uma revolução, algo nunca visto na história do mundo. O que aconteceu em aproximadamente 100 anos em países como Inglaterra e França — dobrar o número de pessoas idosas — a gente viveu aqui em 20 anos. O país vive um panorama de envelhecimento rápido da população. Porém, é um envelhecimento ainda muito acompanhado de desigualdades e a gente vê as marcas da desigualdade nas possibilidades de envelhecer. Mesmo dentro de grandes cidades como Rio de Janeiro, São Paulo ou outras capitais, é possível enxergar realidades muito distintas de envelhecimento. Enquanto nos bairros ricos, com grande acesso à saúde e disponibilidade de serviços, como transporte, educação e assistência social, encontramos expectativas e qualidades de vida próximas de países ricos, em bairros mais afastados ou periféricos encontramos baixas expectativas de vida. Em São Paulo, por exemplo, temos Cidade Tiradentes [bairro da Zona Leste da capital] com uma expectativa de vida de aproximadamente 55 anos. O envelhecimento no Brasil está acontecendo de maneira revolucionária, rápida, mas ainda muito acompanhado de desigualdades. Essas desigualdades vão se marcar na possibilidade de acesso à saúde, de controle das doenças crônicas e no acesso aos direitos garantidos pela nossa Constituição.
“Pessoas LGBT+ encontram barreiras de acesso à saúde que pessoas não LGBT+ não encontram”
Neste cenário de envelhecimento e desigualdade, quais são as especificidades que afetam de maneira mais contundente a população LGBT+?
Quando a gente fala do envelhecimento de pessoas LGBT+, a principal questão é o acesso à saúde. Por mais difícil que seja definir o que é acesso à saúde, sabemos que é muito mais do que o usuário entrar pela porta de uma unidade de saúde. Pesquisas sérias, no Brasil e no mundo, demonstram que o acesso à saúde por pessoas LGBT+ é diferente. Elas encontram barreiras de acesso à saúde que pessoas não LGBT+ não encontram, como por exemplo o não respeito ao nome social de pessoas trans, a falta de capacitação de profissionais, experiências prévias negativas naqueles serviços — seja por uma situação vexatória, seja por medo de revelar a sua identidade sexual, a sua identidade de gênero ou a sua orientação sexual — vão fazer com que esses usuários evitem procurar o serviço de saúde e fazer a estratégia preventiva. É importante a gente falar disso porque são as pessoas idosas que mais vão demandar cuidados de saúde. Então estou falando de uma população que mais demanda cuidados de prevenção e de promoção da saúde, e que não está recebendo esses cuidados por conta de barreiras de acesso. São dois grandes cenários: Um é o estresse de minorias (que é envelhecer dentro de um grupo minorizado, exposto a diversos estressores que vão moldar e gerar gatilhos em sua saúde física e mental); outro, são as barreiras de acesso à saúde, que vão impedir que o controle, a promoção e a prevenção da saúde sejam efetivos.
“Muitas pessoas trans não têm o direito de envelhecer. Muitas morrem, são assassinadas ou são ‘suicidadas’ antes de chegarem à velhice”
Dentro do espectro LGBT+, existe alguma população que seja mais penalizada ou que tenha alguma especificidade menos compreendida ou mais invisível dentro dos serviços de saúde?
Infelizmente a realidade das pessoas trans. Transgêneros, homens e mulheres trans, travestis vivem realidades mais vulneráveis. Se o cenário já é difícil para gays, lésbicas e bissexuais, para as pessoas trans é ainda pior. A gente não tem o respeito, seja em trabalho, seja em condições de educação, seja no acesso à saúde, para pessoas trans. Ainda há muita discussão sobre qual seria a real expectativa de vida de pessoas trans no Brasil, porque não existe nenhum censo aproximado ou pesquisa séria que mostre exatamente isso. O que a gente estima é que muitas pessoas trans não têm o direito de envelhecer. Muitas morrem, são assassinadas ou são “suicidadas” (como dizem os ativistas do tema) antes de chegarem à velhice. Então é importante garantir um curso de vida, a promoção da saúde e do envelhecimento para que todas as pessoas, incluindo as pessoas trans, que enfrentam uma realidade mais vulnerável e mais precarizada, possam envelhecer.
Mesmo diante da variedade de perfis e a singularidade das pessoas, é possível identificar demandas específicas de cuidado de cada um dos grupos que compõem o universo LGBT+?
No geral, a grande questão é criar profissionais capacitados. Na minha pesquisa de doutorado [“Fatores sociodemográficos associados a pior acesso à saúde em brasileiros com 50 anos ou mais: o impacto do gênero e da orientação sexual”, disponível aqui], fiz uma pesquisa online com pessoas 50+, LGBT+ e não LGBT+ no Brasil. Um dado interessante foi que 50% das pessoas LGBT+ não acreditavam que seus profissionais de saúde estivessem capacitados para lidar com as particularidades de saúde da população LGBT+. Então a primeira coisa é fazer que a comunicação e a educação em saúde sejam feitas, para que as pessoas LGBT+ se sintam recepcionadas, acolhidas e queridas nas unidades de saúde (UBS, outros serviços do SUS, de assistência social). E aí existem outras particularidades, para homens gays, mulheres lésbicas, pessoas bissexuais, homens e mulheres trans.
Quais as especificidades dos homens gays?
Em relação aos homens gays, é importante falar não só de solidão, mas também da possibilidade do envelhecimento do corpo, sabendo que na comunidade de homens gays o corpo masculino é padronizado, um corpo “musculoso”, e que essa é uma questão de aceitação dentro da comunidade. Só que a partir do momento em que esse homem envelhece, há transformações que vão mexer com sua saúde física e mental. Mas não é só o corpo. A gente tem que falar de saúde mental, de prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), de promoção do envelhecimento ativo, entre outras questões.
E para as outras populações?
É fundamental, no caso de mulheres lésbicas, a gente falar, por exemplo, do acesso a exames preventivos. Temos pesquisas que mostram que a taxa de realização de mamografia, exame recomendado nacionalmente para mulheres acima de 50 anos pelo Ministério da Saúde, é menor entre as lésbicas. Na minha pesquisa, 80% das mulheres heterossexuais já tinham feito alguma mamografia; já entre as mulheres lésbicas, apenas 40%. Isso mostra que há um impacto, uma barreira e uma dificuldade de acesso a exames preventivos. É preciso a gente facilitar o acesso, entendendo quais são as barreiras que também impedem, por exemplo, a realização de outro exame em mulheres lésbicas, como o papanicolau [exame ginecológico fundamental para a prevenção e detecção precoce do câncer de colo do útero]. Para homens e mulheres trans, é fundamental falar de saúde mental, de promoção do envelhecimento, de atividade física, de alimentação saudável, de vacinação, de controle de doenças crônicas, mas também poder discutir e capacitar os profissionais do SUS para lidar com as particularidades da hormonização. Para que a pessoa possa ter o acesso (na UBS, pelo médico de família ou pelo médico que já a acompanha em suas necessidades de saúde) não só à hormonização mas a todo o processo que essa pessoa vai apresentar.
Em sua avaliação, a dificuldade de acesso e de acolhimento dessas pessoas no SUS reflete lacunas na formação de profissionais de saúde ou a ausência de políticas públicas que regulamentem esses processos?
Na verdade, há políticas públicas muito boas. Nós temos, por exemplo, a Política Nacional de Saúde Integral de Pessoas LGBT+, publicada pelo Ministério da Saúde em 2011. Mas em um sistema federativo e muito hierarquizado como é o SUS, há ainda a dificuldade de transplantar ações da macropolítica para a micropolítica do consultório. Então a gente tem que batalhar para que as boas leis que já existem sejam implementadas. Claro que queremos criar leis novas, como por exemplo, levar a diversidade sexual para o Estatuto da Pessoa Idosa, que ainda não existe. Mas a gente precisa que os entes federativos (federal, estadual e municipal) conversem sobre o tema, de modo que ele esteja em plano de metas. Então o primeiro passo é implementar as políticas que a gente já tem.
E a formação profissional?
É fundamental que os profissionais que estudam determinantes sociais no processo saúde e doença entendam que, assim como raça, renda e escolaridade, a orientação sexual e a identidade de gênero também são determinantes sociais — ou também são marcadores sociais da diferença. Quando a gente entende que uma mulher lésbica vai ter possibilidades diferentes de envelhecer do que uma mulher heterossexual, apenas por ser lésbica, a gente vai levar isso para as formações, seja em medicina, seja em enfermagem, serviço social, fisioterapia, terapia ocupacional ou qualquer uma das áreas que atuam no SUS.
Você lembra de alguma experiência exitosa que promova ações de equidade relacionadas à população LGBT+ acima dos 60 anos?
A gente tem visto algumas iniciativas muito boas pelo país afora. Posso citar como exemplo o Centro de Saúde Escola Geraldo de Paula Souza (CSEGPS), em São Paulo, onde nós criamos há dois anos um ambulatório para pessoas trans com mais de 40 anos, dentro do SUS. É um ambulatório didático, que ao mesmo tempo atende a população trans e ensina, em serviço, médicos residentes e estagiários. A ideia do ambulatório é não só oferecer hormônio para as pessoas trans, mas aproveitar essa porta de entrada para que ela seja atendida e possa falar, sim, de hormônio, mas também de atividade física, hipertensão, diabetes, saúde mental, tabagismo. Talvez o “gatilho” para que essa pessoa procure o serviço de saúde seja hormônio, mas lá a gente oferece um olhar integral de saúde.
“Um jeito bom de envelhecer para todas as pessoas LGBT+ é entender que as barreiras de acesso à saúde existem, mas que os canais de denúncia e as ouvidorias têm que ser usados”
Pensando agora nas pessoas LGBT+ que estão em processo de envelhecimento, você teria alguma orientação de como envelhecer melhor?
A OMS fala de quatro pilares importantes para se pensar no envelhecimento ativo: saúde, educação, segurança e aprendizado ao longo da vida. Então um jeito bom de envelhecer para todas as pessoas LGBT+ é entender que as barreiras de acesso à saúde existem, mas que os canais de denúncia e as ouvidorias têm que ser usados. Se não for respeitado o uso do nome social, por exemplo, que já está garantido em lei, deve haver denúncia. É importante que os usuários do SUS conheçam os seus direitos — e o direito ao respeito e à saúde está garantido na nossa Constituição — para que, se houver alguma violação, haja denúncia, para que essa situação não se repita.
E em relação aos profissionais e gestores de serviços de saúde?
Garantir saúde é também pensar em hábitos de vida. Então é importante falar de atividade física, de alimentação saudável, de controle das doenças crônicas, de vacinação. E garantir o acesso de todas essas questões. Quando falamos com gestores, é preciso facilitar o acesso a tudo isso. Porque falar de atividade física e alimentação saudável é fácil, mas é preciso implementar, pensar por exemplo se o programa de atividade física da cidade acolhe bem uma pessoa LGBT+, se há campanhas para que pessoas LGBT+ também se sintam bem nos programas de atividade física ou de conscientização da alimentação. Será que pessoas LGBT+, por exemplo, têm acesso a uma alimentação saudável, que geralmente é mais cara, sabendo da sua precarização de renda? Então quando a gente fala em envelhecimento é preciso pensar de modo intersetorial, unindo saúde, trabalho, educação, meio ambiente, transporte, serviço social, tudo que a gente possa fazer para que a pessoa cuide bem da saúde e possa garantir um envelhecimento digno.
Nesse sentido, é possível dizer que a participação social e o ativismo são preparatórios para a vida na velhice?
Eu acho excelente. O que a gente quer é que as pessoas tomem consciência de que existe a participação social no SUS, a participação em outros conselhos, como o da pessoa idosa, por exemplo. Será que há pessoas LGBT+ nesses conselhos? A participação social é fundamental para fazer valer a sua voz, fazer valer os seus direitos. Estimular isso é fundamental para democratizar o acesso ao SUS.
Em uma entrevista recente ao Drauzio Varela, você falou da importância da autonomia e da independência na velhice. Você pode explicar melhor a diferença entre esses dois conceitos?
Autonomia vai falar muito da capacidade que a gente tem de tomar decisões, de fazer valer a nossa vontade; já a independência é a facilidade de realizar (ou não) as atividades. Quando falo sobre independência, falo das atividades de vida diária, desde as mais complexas, como ir ao banco, mexer com os meus remédios e cozinhar, até as mais simples, como tomar banho, me vestir ou sair da cama. Tudo isso está muito relacionado à capacidade que eu tenho de realizar, com ou sem ajuda, essas atividades; já a autonomia está relacionada à capacidade de tomar as decisões, expressar a minha vontade: o que eu quero, com quem quero me relacionar, o que quero fazer. Uma doença muito comum que fere a autonomia é o Alzheimer, por exemplo. Ela vai deteriorando a capacidade cognitiva do cérebro de modo que a gente pode perder autonomia, a capacidade de crítica, de tomada de decisões do dia a dia. Uma outra doença, também conhecida, que afeta a independência, é o Parkinson, que altera os movimentos. A pessoa pode ter uma atrofia do sistema muscular (ou uma artrose) que pode causar a perda da independência para algumas atividades. Então Parkinson está mais relacionada com as atividades; Alzheimer, com a capacidade de crítica.
“O cuidado no Brasil é feminino. Homens geralmente não cuidam dos seus parentes”
Pesquisas recentes mostram que além da necessidade de pessoas idosas terem um cuidador, algumas delas vivem a realidade de cuidarem de outras pessoas. Como você avalia esta realidade?
Infelizmente essa é outra realidade: idosos cuidando de idosos. A maior parte do cuidado dado a pessoas idosas no Brasil é feito por cuidadores informais. Cuidador formal geralmente é alguém que fez uma formação para virar um cuidador e é contratado pela família para exercer esse trabalho. Essa é uma minoria, já que envolve custos e a gente sabe da situação financeira das pessoas. Já o cuidador informal é geralmente um membro da família ou um conhecido, que não tem capacitação formal para isso. Esse cuidador informal geralmente é uma mulher: uma filha, uma sobrinha, uma nora. O cuidado no Brasil é feminino. Homens geralmente não cuidam dos seus parentes. E temos mais outra realidade, que é o cuidado feito entre pessoas idosas, uma delas às vezes mais vulnerável que a outra. Isso aumenta o que chamamos de estresse do cuidador. Pessoas que cuidam, adoecendo por conta do cuidado.
Como isso se apresenta na população LGBT+?
Existem pesquisas que mostram que pessoas LGBT+ têm mais chance de morarem sozinhas, de não terem filhos, de não serem casadas ou de não terem ninguém para chamar em caso de emergência. Quando se fala em suporte social, ou seja, na situação de quem vai cuidar de você, se você precisar, sabemos que pessoas LGBT+ idosas têm um suporte social mais precário. Há uma precariedade no cuidado de pessoas idosas LGBT+. Então quando se fala em gestão do cuidado, de política do cuidado, é preciso pensar em equidade para proporcionar um cuidado melhor para essas pessoas.
“Sabemos que solidão pode matar. E pessoas idosas LGBT+ têm mais chance de serem sozinhas”
Na discussão saúde, cuidado e suporte social de pessoas LGBT+, o ponto nevrálgico é a solidão?
Exatamente. Um ponto nevrálgico é a solidão. Sabemos que solidão pode matar. E, como eu disse, pessoas idosas LGBT+ têm mais chance, segundo estudos observacionais, de serem sozinhas. Então é preciso criar políticas públicas pensando no fato de que temos uma proporção de pessoas LGBT+ envelhecendo de maneira solitária e que é preciso apoiá-las. E, novamente, não basta que a pasta da saúde discuta isso. As políticas de cuidado têm que falar de moradia, por exemplo. Onde essas pessoas vão morar? Vai ser numa instituição de longa permanência para idosos (ILPI)? Como é o respeito à identidade de gênero e à orientação sexual nessas ILPIs? Já é muito difícil, para idosos de baixa renda, conseguirem uma instituição pública de residência. Quase não existem instituições públicas. Mas mesmo as que existem: será que atendem bem a diversidade? Minha resposta, muito provavelmente, é não.
E em relação aos casos de violência?
É preciso, também, criar canais de denúncia de violência e capacitar profissionais para que entendam o que é violência. Às vezes as violências acontecem e a gente não consegue nem nomear. É preciso capacitar as pessoas para que reconheçam uma violência, aquilo não é tolerado; para que saibam que violência contra a pessoa idosa não é só física, mas que existem outras formas, como a violência psicológica. O fenômeno da violência é muito mais que um caso de polícia. A violência contra a pessoa idosa é um caso de saúde pública. Os equipamentos de saúde e de assistência social precisam estar unidos, seja na prevenção ou na denúncia, seja propondo estratégias para acabar com o fenômeno da violência.
Quais os reflexos (diretos ou indiretos) da busca pela juventude eterna e do etarismo no envelhecimento saudável da população LGBT+?
A busca desenfreada pelo corpo ideal, por juventude, vai gerar solidão e sofrimento. Pesquisas mostram mais essa realidade com homens gays, que vão expressar mais essa busca pelo “corpo perfeito”, e que vão sofrer muito à medida que o envelhecimento chegar. A busca por procedimentos e cirurgias estéticas vai fazer com que essas pessoas sofram. Já em relação ao etarismo (ou idadismo), há duas coisas: o etarismo da própria pessoa, que passa a não se sentir mais pertencente à comunidade; e aquele praticado por pessoas mais jovens. Ambos geram autodesvalorização. A pessoa vai se excluir, deixar de participar de atividades sociais e ficar cada vez mais solitária. Porque o idadismo se expressa de várias maneiras, como autoexclusão ou exclusão de outras pessoas. Um caminho para a gente pensar nisso é a relação entre as gerações, de modo que gerações mais jovens, LGBT+, incluam pessoas LGBT+ mais velhas.
O pesquisador João Paulo Gugliotti, do Núcleo de Pesquisa Aplicada em Gerontologia e Envelhecimento, da Universidade Federal de São Carlos (Nupage/UFSCar), propõe que a epidemia de HIV/aids fez com que a representação da homossexualidade dentro da medicina se deslocasse da esfera da saúde mental para a categoria de risco. De que modo isso pode interferir na saúde das pessoas LGBT+?
A supervalorização da sexualidade do homem gay vai gerar um padrão e esse padrão vai gerar sofrimento. É preciso discutir, e não obrigar ninguém a seguir um padrão, obrigar as pessoas a expressarem a sexualidade da mesma forma. O próprio símbolo +, presente na sigla LGBT, expressa exatamente isso. A vivência da sexualidade é algo extremamente plural. É essa mensagem que a gente tem que passar. Não existe uma única forma nem de se expressar sexualmente e nem de envelhecer. Só criando a possibilidade de diversidade que a gente vai acolher todas as pessoas. Porque não necessariamente uma pessoa de 60 anos precisa ter a mesma expressão sexual de uma pessoa de 20. Isso só vai trazer opressão para essa pessoa e um medo por não se sentir encaixada ou parte dessa comunidade.
A Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, em 2025, traz o tema do envelhecimento. Você acha que a discussão está ganhando visibilidade?
Essa discussão é extremamente necessária. Talvez as pessoas estejam acordando para um assunto que a gente fala, mas que tem que se aprofundar. O etarismo é um preconceito que existe, está enraizado. É fundamental a gente aproveitar esses momentos. Eu fiquei muito feliz porque a parada irá trazer esse tema: a partir do momento que a gente discute, a gente pensa, reflete, gera dúvidas, atritos e umas fissuras nesse amálgama cultural que existe e é etarista, além de machista, racista, LGBTfóbico e capacitista.
Como mudar este padrão?
Existe uma frase da Simone de Beauvoir, no livro “A velhice”, que diz: “Velho é sempre o outro”. Quando eu enxergo o velho como o outro e não como como eu, eu desumanizo o velho, eu sou etarista e não penso no meu próprio envelhecimento. Então talvez a gente precise mudar, parar de achar que o velho é o outro, e entender que nós somos seres envelhecentes. Assim a gente também vai pensar em políticas públicas, em melhores escolhas individuais e coletivas e criar uma sociedade em que as gerações convivam de maneira harmoniosa.
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