Em entrevista à Radis, Selma Dealdina Mbaye, uma das principais lideranças do movimento quilombola no Brasil, fala sobre suas expectativas para a COP30 e cobra das autoridades uma participação mais ativa das populações tradicionais, como indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outras comunidades, na conferência. “Somos sujeitos de direitos e queremos debater de igual para igual”, afirma.
Nascida e criada em uma comunidade quilombola, o Quilombo Angelim III, em São Mateus, no Espírito Santo, conselheira da Anistia Internacional e articuladora política da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Selma lembra que indígenas e quilombolas defendem e preservam o meio ambiente. “A COP precisa ser um espaço democrático, coletivo e aberto a quem está segurando esse país com atitudes muitas vezes invisíveis, mas essenciais para a humanidade”, declara.
Selma também detalha a organização da Cúpula dos Povos — evento paralelo e autônomo, que reunirá movimentos sociais de todo o mundo: “Um espaço fundamental para pautarmos também a questão do racismo ambiental e energético”.
Qual é a expectativa da Conaq para a COP30?
A nossa principal expectativa em relação à COP é, primeiro, garantir as credenciais de participação. Esse é um desafio grande não só para a Conaq, mas para todas as entidades que pretendem estar presentes. Estamos em diálogo constante com o Estado brasileiro, tivemos reuniões com a Ana Toni, diretora executiva da COP30, com Edel Moraes, secretária de Povos e Comunidades Tradicionais do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), com a ministra [da Igualdade Racial] Anielle Franco, o ministro [do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar] Paulo Teixeira, além da Casa Civil e a Secretaria-Geral da Presidência da República.

Por que é importante a participação da população quilombola?
Nosso objetivo é garantir a presença quilombola nesse espaço, porque a COP acontece no Brasil, mas não é apenas sobre o Brasil ou a Amazônia — é sobre todos os biomas e todas as pessoas do planeta. O maior evento climático do mundo não pode continuar invisibilizando as pautas quilombolas. Queremos garantir espaço para discutir temas como titulação de territórios, enfrentamento das violências, políticas de gênero e a valorização dos nossos modos de vida. Além disso, estamos investindo na construção da Cúpula dos Povos, um evento paralelo à COP, em que conseguimos colocar o máximo de quilombolas possíveis. A Conaq faz parte da coordenação executiva desse movimento, e vemos esse espaço como fundamental para pautar temas como o racismo ambiental e energético.
Recentemente você participou do encontro Vozes Afrodescendentes, em Brasília. Como está sendo essa construção?
De 1º a 4 de abril realizamos um encontro da Coalizão dos Afrodescendentes — Caminho para a COP, em continuidade à vitória na COP16, em Cali, Colômbia, em 2024 [trata-se da 16ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica, que reconheceu a contribuição dos povos indígenas, comunidades locais e afrodescendentes como guardiões da diversidade]. A ideia é fazer com que o tema dos afrodescendentes esteja realmente presente nos documentos oficiais e nas estruturas da COP30. Queremos construir o que chamamos de “COP quilombola”, ou “COP afro”, com um pavilhão específico para os povos afrodescendentes. Participam desse processo representantes de 16 países — entre eles quilombolas, palenqueiros [população afrodescendente da Colômbia], garífunas [grupo étnico do Caribe descendente de indígenas caraíbas e aruaques e africanos] e cimarrones [também conhecidos como marrons, comunidades de afro-descendentes em alguns países das Américas e Caribe]. Nosso próximo evento será em maio, e vamos avançar na construção de documentos e na publicação da Carta de Brasília, que será uma peça importante para garantir autonomia, participação e visibilidade dos povos afrodescendentes nesse debate.
Qual é a pauta central para os quilombolas na COP30?
A titulação dos territórios quilombolas. Em 20 de novembro de 2025, completamos 30 anos da primeira titulação quilombola (o Território Boa Vista), em Belém (PA). Isso precisa estar no centro do debate. A titulação ainda está muito aquém do que desejamos, mas esperamos que as entregas de 2025 e de 2026, pós-período eleitoral, tragam avanços significativos. O que os quilombolas têm feito, há cerca de 500 anos, é manter seus territórios de pé, preservar florestas, proteger rios, viver em harmonia com a natureza. Nosso território não é mercadoria — é espaço de saber, ancestralidade, partilha e vida coletiva. É a partir dele que enfrentamos a crise climática. A titulação é o nosso tema, lema e mantra!
A Conaq está presente na organização oficial da COP30?
Infelizmente, não. A Conaq não está nos espaços de organização do evento. Há uma promessa da diretoria executiva da COP de criar um ciclo de participação que contemple as representações quilombolas, mas por enquanto isso é apenas uma proposta — nada efetivado. Não estamos na construção do evento nem como mulheres quilombolas, nem como representação do movimento social.
Houve um sentimento de exclusão nesse processo?
Sim, houve exclusão. O primeiro documento público apresentado pelo presidente da COP30 [André Corrêa do Lago] não mencionava os quilombolas, nem a questão racial. A Conaq se manifestou com uma carta de repúdio, e depois houve um pedido de desculpas por parte do presidente da COP. Mas, para além das desculpas, é preciso garantir inclusão real. Não apenas após uma vírgula, não de qualquer jeito. A gente participa das COPs desde a edição 26 [na Escócia, em 2021], e tem contribuído com o processo, mas seguimos lutando para sermos reconhecidos como sujeitos de direitos. Não podemos aceitar que, num país onde 54% da população se autodeclara negra, a pauta quilombola fique de fora de um espaço como esse. Não somos laboratório de pesquisa. Queremos debater de igual para igual.
“A COP precisa ser um espaço democrático, coletivo, humanizado e aberto às pessoas que estão na linha de frente”
O que você acredita que a COP precisa ser, de fato?
A COP precisa ser um espaço democrático, coletivo, humanizado e aberto às pessoas que estão na linha de frente — aquelas que, muitas vezes com gestos simples, garantem que o país não entre em colapso ambiental. A COP não pode ser um palco para mercantilização ou loteamento dos nossos territórios. Ela deve respeitar a autonomia dos povos e contribuir para a titulação das terras quilombolas, que são responsáveis por garantir a preservação e a possibilidade de respirar melhor.
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