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Coordenadora-geral de um estudo que avaliou as condições de saúde sexual e reprodutiva de meninas e mulheres refugiadas venezuelanas, a argentina Pia Riggirozzi considera ser essencial incluí-las no planejamento e na execução de políticas e práticas de saúde. “É preciso apoiá-las para que se organizem e exerçam sua voz em relação às práticas de proteção a que estão sujeitas”, diz a pesquisadora, que está à frente do ReGHID, projeto realizado entre 2020 e 2023 em diferentes países, incluindo-se o Brasil.

Em entrevista à Radis, a codiretora do Centro Interdisciplinar de Saúde Global e Política da Universidade de Southampton, no Reino Unido, fala como a situação de deslocamento acentua a condição de vulnerabilidade de meninas e mulheres, avalia a situação das deslocadas na América Latina e enfatiza a importância dos sistemas universais de saúde na proteção de refugiadas. “Um sistema de saúde universal é essencial para garantir os direitos das mulheres e meninas migrantes, pois fornece uma base essencial para responder às suas necessidades de saúde de uma forma equitativa e inclusiva”.

“Um sistema de saúde universal é essencial para garantir os direitos das mulheres e meninas migrantes.”

Que desafios e necessidades de saúde passam meninas e mulheres em situação de deslocamento?

Elas enfrentam uma série de desafios e necessidades de saúde que são amplificados pela sua condição de vulnerabilidade. De acordo com a ONU, existem hoje mais de 50 milhões de mulheres e meninas deslocadas em todo o mundo, o que representa mais da metade da população mundial de refugiados. Esta realidade complexa traz consigo uma série de barreiras que impactam profundamente o acesso destas mulheres à saúde e ao bem-estar. Em primeiro lugar, devemos realçar a natureza de gênero da migração forçada, evidenciada pelo deslocamento massivo de mulheres e meninas em todo o mundo, conforme indicam as estimativas da ONU. No caso das mulheres e meninas venezuelanas que migram para países vizinhos — e o Brasil é agora o terceiro país anfitrião — elas não são forçadas a fugir somente por razões específicas de gênero (como o colapso da infraestrutura hospitalar e dos cuidados materno-infantis) ou por papéis relacionados ao trabalho de cuidados familiares. Elas também enfrentam desafios específicos de gênero durante o trânsito e quando chegam aos países que lhes oferecem proteção. 

Você pode dar exemplos?

No deslocamento forçado, as mulheres e as meninas estão particularmente expostas a riscos de exploração, à violência sexual e a comportamentos sexuais que são arriscados para a sua sobrevivência (econômica), levando a um aumento no número de gravidezes indesejadas, dos casos de HIV e de outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), além de morte materna e insegurança generalizada. Em geral, os riscos e necessidades das pessoas deslocadas não são neutros, em termos de gênero, e os sistemas de proteção devem responder a essas necessidades e direitos específicos. Mas, mesmo nos países de acolhimento, e na presença de respostas humanitárias, existem desafios relacionados ao acesso limitado a serviços de saúde de qualidade.

Que tipo de dificuldades são relatadas por estas mulheres?

As mulheres deslocadas vivem frequentemente em áreas remotas ou em campos s uperlotados, onde os serviços de saúde são escassos ou de baixa qualidade. Além disso, as barreiras econômicas, como a falta de recursos financeiros para pagar cuidados médicos ou mesmo transporte para clínicas, agravam ainda mais a situação. A discriminação e a desigualdade de gênero também desempenham um papel crucial na saúde destas mulheres. Elas enfrentam frequentemente preconceitos nos sistemas de saúde, o que limita o seu acesso a cuidados essenciais, incluindo serviços de saúde reprodutiva. A violência baseada no gênero é uma realidade brutal para muitas mulheres deslocadas, o que não só prejudica a sua saúde física e mental, como também cria um ambiente em que se sentem inseguras quando procuram ajuda. Outro desafio significativo é a saúde materna e reprodutiva. O acesso inadequado aos cuidados pré-natais e pós-natais coloca estas mulheres em alto risco de complicações, durante e após a gravidez. Além disso, a falta de acesso à contracepção e à educação em saúde sexual resulta em taxas elevadas de gravidezes indesejadas e abortos inseguros, aumentando também a vulnerabilidade a infecções sexualmente transmissíveis.

“Mulheres e meninas em situação de deslocamento enfrentam uma rede complexa de desafios de saúde que exigem uma resposta global coordenada e sensível às suas necessidades.”

Que outras áreas da saúde merecem atenção?

A prevalência de doenças crônicas e não transmissíveis é outra área de preocupação. O diagnóstico e o tratamento destas doenças, como diabetes, hipertensão e câncer, são frequentemente negligenciados em contextos de migração, quando os recursos são limitados. Além disso, o fardo destas doenças é muitas vezes desproporcional para estas mulheres, que também assumem o papel de cuidadoras nas suas comunidades, muitas vezes em detrimento da sua própria saúde. A saúde mental é outra área crítica e muitas vezes negligenciada. As mulheres deslocadas enfrentam elevados níveis de estresse, traumas e depressão, mas o estigma associado à saúde mental e a falta de serviços adequados dificultam-lhes a procura e o recebimento do apoio necessário. Em resumo, as mulheres e meninas em situação de deslocamento enfrentam uma rede complexa de desafios de saúde que exigem uma resposta global coordenada e sensível às suas necessidades. Para que reconstruam as suas vidas e alcancem um estado de saúde e bem-estar, é essencial que suas vozes sejam ouvidas e que as suas necessidades sejam colocadas no centro das políticas e intervenções de saúde.

“Para que reconstruam as suas vidas e alcancem um estado de saúde e bem-estar, é essencial que suas vozes sejam ouvidas.”

Como você avalia a situação de mulheres e meninas migrantes na América Latina?

Em relação à América Latina, estes problemas são evidentes nos países de trânsito e de recepção. Além disso, existe uma questão de recursos escassos e lacunas de proteção, bem como de arbitrariedade política. Embora a região seja considerada avançada e progressista em termos de políticas migratórias, ainda existe arbitrariedade na implementação de políticas que afetam a experiência e os direitos dos migrantes. Além dos problemas anteriores identificados, devemos também prestar atenção às dimensões da autodeterminação e da autonomia, uma vez que as políticas de imigração e os programas de cuidados para mulheres e adolescentes migrantes centram-se na emergência, deixando de lado muitas questões necessárias para o desenvolvimento social e político e a integração econômica dos migrantes, que têm dificuldade em desenvolver vidas autónomas e sustentáveis.

Que outros problemas você identifica?

As mulheres deslocadas em centros de acolhimento ou instaladas têm muito pouco controle sobre aspectos importantes das suas vidas, tais como segurança, abrigo e saúde, devido à falta de programas de longo prazo que atendam às suas necessidades. Em grande medida, a capacidade, as ações e as escolhas são limitadas pelas relações de dependência em relação às agências de proteção e aos serviços (humanitários). Da mesma forma, o ambiente social em muitas partes da América Latina mina a capacidade das mulheres migrantes de se enxergarem como detentoras de autoridade normativa sobre as suas vidas, uma vez que acontecem situações terríveis de julgamento (por serem mulheres, pobres, migrantes, mães solteiras etc.), além de discriminação, exploração, hipersexualização e falta de respeito. Nestes contextos, muito comuns nas sociedades latino-americanas, a concretização de vidas autônomas para as mulheres migrantes é um desafio.

Qual a importância de um sistema universal de saúde como o SUS na garantia de direitos de mulheres e meninas migrantes?

Um sistema de saúde universal é essencial para garantir os direitos das mulheres e meninas migrantes, pois fornece uma base essencial para responder às suas necessidades de saúde de uma forma equitativa e inclusiva. Dado que o deslocamento forçado geralmente agrava as vulnerabilidades e os riscos para elas, um sistema de saúde acessível e de qualidade pode funcionar como um mecanismo crucial de proteção e apoio. Em primeiro lugar, mulheres e meninas migrantes estão particularmente expostas a riscos de exploração, violência sexual e comportamentos que podem colocar em risco a sua sobrevivência. Um sistema de saúde universal garante que todas estas mulheres, independentemente do seu estatuto de imigração, tenham acesso a cuidados preventivos, tratamentos médicos e serviços de saúde reprodutiva, o que é vital para reduzir estas vulnerabilidades. Porém, a universalidade não garante acessibilidade, uma vez que existem muitas barreiras relacionadas à situação socioeconômica, à informação e ao tratamento, assim como igualdade não significa equidade para muitas mulheres e adolescentes migrantes.

De que modo o sistema pode melhor atender às necessidades das migrantes?

Um sistema de saúde universal pode responder adequadamente às necessidades específicas de gênero garantindo que os serviços sejam sensíveis às suas realidades e protegendo os seus direitos à saúde. Mas também são necessárias políticas específicas para servir a população de mulheres e adolescentes migrantes, compreendendo as suas necessidades, ouvindo-as, não tomando decisões por elas. É importante também que os programas de saúde se concentrem na saúde abrangente, incluindo a saúde mental. Além disso, um sistema de saúde universal deve se basear nos princípios da igualdade e da não discriminação, o que é crucial para garantir que estas mulheres não sejam marginalizadas, mas sim incluídas e respeitadas no acesso aos serviços de saúde. A implementação de um sistema de saúde universal é uma medida essencial para combater as desigualdades de gênero que são exacerbadas durante o deslocamento forçado. Ao garantir que todas as mulheres e meninas migrantes tenham acesso a cuidados de saúde de qualidade, um sistema universal não só protege a sua saúde física e mental, mas também reforça os seus direitos humanos e promove a igualdade de gênero. Mas estas garantias dependem de outras, relacionadas à independência e à autonomia.

Neste sentido, em que pontos o SUS precisa se aprimorar no atendimento a meninas e mulheres refugiadas?

Além das prioridades de atendimento já destacadas, é importante que o SUS aborde questões relacionadas à violência generalizada (não apenas vivida no trânsito), à fome, ao planeamento familiar e à saúde materna. Da mesma forma, uma proteção sensível ao gênero exige a disponibilização de acesso eficaz e seguro à saúde sexual e reprodutiva. Isto implica não só na capacidade de prestar serviços de saúde a todas as mulheres e meninas deslocadas, bem como na garantia de que elas tenham — e saibam que têm — o direito de acessar esses serviços. É preciso, também, que estes serviços sejam prestados de uma forma que as respeite, o que o requer sensibilidade, bem como uma compreensão da desorientação e do trauma que o deslocamento muitas vezes acarreta, corrigindo as barreiras ao acesso à proteção e aos cuidados de saúde.

Como enfrentar esse desafio?

É necessário incluir voz e mecanismos de consulta e inclusão: apoiar mulheres e meninas deslocadas para que se organizem e exerçam sua voz em relação às práticas de proteção a que estão sujeitas, sendo consultadas sobre os requisitos de funcionamento e cuidados em saúde. Ao fazer isso, seus valores e dignidade também serão reconhecidos; é necessário reconhecer e trabalhar as condições de saúde, evidenciando as desigualdades sociais e de gênero. Nesse sentido, um último ponto central é a situação de desfinanciamento e escassez de recursos enfrentada pelos migrantes venezuelanos no Brasil, que em muitos aspectos é semelhante à dos cidadãos brasileiros em situação precária.

Como isso se percebe?

Ambos os grupos enfrentam desafios significativos no acesso aos serviços básicos, incluindo saúde, educação e habitação, devido à falta de recursos e ao subfinanciamento dos programas sociais. O Brasil passou por um período de austeridade econômica que resultou no desfinanciamento de serviços públicos essenciais. Este desfinanciamento afeta tanto migrantes venezuelanos como os cidadãos brasileiros em situação precária, uma vez que os recursos disponíveis para saúde, educação e assistência social diminuíram. Isto traduz-se numa maior competição por recursos limitados, o que prejudica os setores mais vulneráveis. Tanto os migrantes venezuelanos como os brasileiros em situações precárias enfrentam discriminação e estigmatização. Isto se reflete no acesso desigual aos serviços e em atitudes negativas que perpetuam a marginalização desses grupos. As políticas de migração e de proteção social muitas vezes não conseguem abordar estas barreiras de forma eficaz, perpetuando as desigualdades existentes.

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