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O princípio do respeito e da reciprocidade é o caminho para superar o dispositivo da submissão e da inferioridade que demarca distâncias entre seres humanos. Para isso, é preciso admitir que temos limitações e que precisamos da ajuda de outras pessoas que podem contribuir para o nosso crescimento. “A presença e o reconhecimento de nossas diferenças físicas e mentais, coloca a necessidade e a oportunidade de aprender com elas e de desenvolver outras formas de comunicação e percepção do mundo”, diz o professor Reinaldo Fleuri, pesquisador especializado no campo da inclusão e interculturalidade, em entrevista à Radis por uma plataforma de vídeo.

Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, mestre em Filosofia e História da Educação e graduação em Filosofia, Reinaldo Matias Fleuri é professor permanente da Universidade Federal de Santa Catarina e professor visitante sênior na Universidade do Estado do Pará. Coordena a Rede de Pesquisas Mover – Educação Intercultural e Movimentos Sociais. Para ele, a luta pela inclusão é muito mais do que obrigar uma instituição disciplinar a aceitar indivíduos com deficiências. “Se não mudarmos essa lógica relacional, essas pessoas vão ser incluídas para serem excluídas cotidianamente”, observou. Ao mesmo tempo, ele diz que é a presença de pessoas com deficiência em ambientes como a escola que torna possível mudar diariamente a lógica dessas instituições disciplinares. “O reconhecimento das diferenças é essencial e indispensável para forçar a instituição a se tornar mais a se tornar mais inteligente, mais complexa, mais eficiente”, garante.

O que é a deficiência?

Essa é uma pergunta que provoca outras. Quem é deficiente diante de um surdo? Eu, que não sou fluente na Língua de Sinais ou ele que não consegue escutar o que eu digo oralmente? A deficiência seria uma característica individual? Por exemplo, a deficiência seria apenas da pessoa que, por um fator fisiológico, não consegue ver? Deficiente seria aquela pessoa que tem uma conformação física e comportamental típica, devido à Síndrome de Down? A deficiência seria decorrente de limitações individuais em habilidades de comunicação ou locomoção? Ou, então, a deficiência acontece na relação entre as pessoas, pela incapacidade de estabelecerem comunicação nas linguagens específicas que umas e outras pessoas utilizam para se expressar, agir, interagir e produzir? Um cego não consegue acompanhar aulas quando o professor se comunica apenas pelo que escreve no quadro, ou a criança surda não entende o professor que se comunica apenas pela oralidade! A deficiência comunicacional e interativa na relação educacional se configura quando o professor não consegue se comunicar com seus alunos nas múltiplas linguagens que, por exemplo, as pessoas não videntes ou surdas utilizam para se comunicar!

É preciso entender que limitações físicas e mentais são comuns a qualquer pessoa?

Sim, todos nós temos as nossas singularidades, limitações e potencialidades para interagir e se comunicar. A presença e o reconhecimento de nossas diferenças físicas e mentais, coloca a necessidade e a oportunidade de aprender com elas e de desenvolver outras formas de comunicação e percepção do mundo. Um professor cego percebe dimensões que um vidente não perceberia pela visão. As singularidades da forma de ser, de agir e de se comunicar forçam todos que compõem um contexto comunicacional a criar novas linguagens e formas de entendimento para perceber, interagir, potencializar e aprender com a subjetividade e criatividade de cada pessoa, principalmente com aquelas cuja estrutura de comunicação e interação divergem dos padrões hegemônicos e são consideradas “deficientes”. Para se perceber e acolher a contribuição que elas têm para dar, é necessário que toda a comunidade desenvolva um potencial muito mais complexo de percepção e comunicação, aprendendo na interação com essas pessoas. O desafio é que nós temos que ampliar e complexificar as nossas categorias de entendimento do outro, para percebermos o mundo tal como eles percebem, segundo outras lógicas e perspectivas.

Como não ser capacitista na relação com pessoas com deficiência?

Todos nós precisamos da ajuda de outras pessoas. Entendo que é preciso criar condições para que cada pessoa possa expressar, interagir, cooperar. É esta a tarefa do educador e da educadora: criar condições e contextos para conversar, potencializar os interesses e a criatividade de cada pessoa, de cada educando e educanda. Nesta relação educacional, a professora, o professor, também se tornam educandos, porque a presença, as histórias e as necessidades de seus estudantes colocam desafios, para os quais é chamado a criar propostas e soluções. Esse é o princípio da reciprocidade, que supera o dispositivo da submissão disciplinar que vigora em instituições como a escola, o hospital, a caserna, a fábrica. Nestas instituições, as pessoas (alunos, doentes, militares, trabalhadores ….) são enclausuradas em recintos fechados e em células enfileiradas, submetidas a programas de atividades sequenciadas e padronizadas, comandadas centralmente por mensagens estereotipadas. Este processo forma pessoas produtivas, mas dóceis.

Qual a função da disciplina em instituições como a escola?

A função de coordenação disciplinar se exerce mediante constante vigilância e sanção, acionadas por exames periódicos que, pela aplicação de prêmios ou castigos, submete todos à norma e exclui os divergentes. Assim, as relações disciplinares de poder, que vigoram nas instituições como a escola, produzem exclusão ou sujeição de todo comportamento diferente ou divergente daquilo que todos passam a considerar como “normal”. Esta lógica disciplinadora é colocada em xeque pela emergência, pelas expressões e interações das pessoas diferentes, seja do ponto de vista físico ou mental, seja por suas conotações étnicas, raciais ou de gênero. É preciso prestar mais atenção à fala, à vivência, às propostas das vidas das pessoas “diferentes” do padrão disciplinar e “normal”. Para contribuir eficazmente em seu processo educativo, é preciso interagir com essas pessoas pelo seu potencial e não pelo que aparentemente lhes “falta”, justamente para ir desconstruindo os nossos critérios de “normalidade”.

Como é possível fazer a inclusão?

Não se trata apenas de possibilitar às pessoas estigmatizadas por suas diferenças de estar em todos os espaços sociais, mas de modificar estruturalmente as lógicas relacionais nestes espaços para torná-los realmente inclusivos. Por isso, é preciso desenvolver a reciprocidade entre opostos, na sua complementaridade e na relação com o contexto. A luta pela inclusão é muito mais do que obrigar a instituição disciplinar a aceitar aquele indivíduo “deficiente”. Se não mudar a lógica disciplinar, essas pessoas vão ser incluídas para serem excluídas cotidianamente. Ao mesmo tempo, é a presença dessas pessoas que torna possível mudar diariamente a lógica disciplinar dessas instituições.

A diferença é um atributo que marca a humanidade?

Temos que reconhecer que todas as pessoas são diferentes e singulares. O antropólogo Clifford Geertz considera que a essência dos seres humanos se define pelas suas particularidades, por seu potencial criativo que lhes possibilita se constituir como seres singulares. As culturas, padrões coletivos de comportamento, portanto, se constituem e se transformam constantemente pela interação ativa entre seres singulares, não pela adequação a padrões rígidos de comportamento pautados pelos interesses de poucos. Por isso, para promover o desenvolvimento cultural e social é preciso reconhecer e valorizar as potências criativas de cada pessoa e de cada grupo, e não simplesmente se enquadrar o comportamento das pessoas em padrões que são cômodos e úteis apenas para uma minoria de pessoas que constituem uma comunidade. Para isso, precisamos desenvolver outras lógicas relacionais que permitem superar as lógicas da modernidade. A modernidade pressupõe que a sociedade progride linearmente mediante o sujeitamento de todos os indivíduos a um padrão único e universal de interação. A lógica moderna pressupõe que o indivíduo afirma sua identidade pela negação ou sujeição de seu oposto. Se entendemos como opostos todos os diferentes, somos induzidos a reduzi-los ao que pensamos e queremos ou simplesmente a rejeitá-los e ignorá-los. Mas se considerarmos – conforme as lógicas ancestrais do Bem Viver e do Ubuntu – que a singularidade de cada pessoa se constitui na sua relação viva com toda a comunidade. Nesta perspectiva, a relação entre os seres humanos, assim como entre todos os seres vivos, se constitui por oposições entre elementos ou dimensões que, porém, se complementam. Tal interação viva é ativada e mantida pela reciprocidade (a cada ação corresponde uma reação) e pela coerência das estruturas de relações singulares com os princípios segundo os quais se articulam harmonicamente os processos vitais de toda a Natureza.

Há uma articulação entre a luta das pessoas com deficiência e a de outros movimentos?

É preciso entender também que as lutas para se promover relacionalidade, complementaridade, reciprocidade e integralidade são diferentes e se dão em diferentes contextos singulares. São lutas que se articulam entre si, na perspectiva de criar outras lógicas que superam o padrão moderno e colonial. Mas não há um único caminho e objeto de ação. São lutas que se dão microfisicamente nas fissuras, nas brechas dos sistemas totalitários e disciplinares. Assim, quando o STF questiona e inviabiliza o decreto que instituiu a Política Nacional de Educação Especial [Decreto 10.502/2020], abre uma brecha importante. Temos de entender que essas lutas políticas se articulam com lutas de diferentes outros movimentos populares, de indígenas, quilombolas, de trabalhadores, de mulheres, de LGBTI+, de cegos, de surdos, de cadeirantes, de sem-terra, de favelados, em diferentes dimensões, como a política, econômica, subjetiva, cultural, espiritual, para ir abrindo novos espaços e assim criar relações de bem viver, que cultivam a reciprocidade, a complementaridade e a integração com os contextos socioambientais que a maioria das pessoas está buscando.

A inclusão resulta em crescimento individual e coletivo?

A história dos seres humanos é de profundas interações e o ser humano se constitui na relação com o outro e com todos os seres vivos. A gente se faz e se singulariza na relação com o outro, que é relação de conflitualidade, diferenciação, oposição, mas simultanea e necessariamente, de complementação recíproca. Eu não consigo aprender e me desenvolver sem a relação de alteridade, pois é na relação com diferentes que eu me descubro, me educo e cresço. Além disso, o desenvolvimento da pessoa e do grupo se dá também por reciprocidade. E há também a dimensão da integralidade em que cada ser se constitui na mesma lógica do todo, do cosmos. Logo, há uma relação muito íntima do singular e pessoal com o contextual e o global.

Por que é importante demarcar essa luta?

Acho que a grande dificuldade é entender a singularidade de cada pessoa, dotada de autonomia, para além da concepção de individuo produzido pelas instituições disciplinares. Eu me referia ao filósofo Michel Foucault quando falei das organizações disciplinares. Como eu dizia, elas são organizadas pelo enclausuramento de um conjunto de indivíduos em um espaço fechado. Esse espaço é esquadrinhado em células. O indivíduo é “produzido” pelo enquadramento da pessoa em um espaço delimitado, celular, onde é submetido a rotinas de comportamentos padronizados, emparelhados e sincronizados com rotinas de outros indivíduos que compõem a mesma máquina institucional. Essa padronização e rotinização dos movimentos individuais mantém a coesão do todo. Assim, o “indivíduo” é uma produção da máquina disciplinar que, ao isolar e rotinizar o comportamento das pessoas, neutraliza suas relações de complementaridade e reciprocidade com seus parceiros, bem com desconecta a pessoa de seus contextos sociais, históricos, culturais, espirituais, tornando-a passível de sujeição. Muitas vezes a gente fala que é preciso reconhecer a individualidade, que é como dizer ‘cada um no seu lugar’, para que a máquina funcione e transforme todo mundo em corpos produtivos, mas dóceis. Por outro lado, o processo educativo é um processo que cada pessoa conduz de dentro para fora (como a própria etimologia do verbo indica: e-ducere), em que cada pessoa desenvolve a própria autonomia e singularidade mediante a relação de conflitualidade, complementaridade, reciprocidade e integração com todas as outras pessoas e seres singulares que tecem seu contexto de vida!

Como, então, a singularidade é construída?

É preciso compreender que a singularidade se faz no todo e o todo se constitui na interação complementar e contraditória entre todos os seres humanos e com todos os seres da natureza. Isso é importante para entender o conceito de inclusão. A subjetivação é um processo relacional: cada ato, pensamento, sentimento, decisão pessoal é fruto do entrelaçamento de múltiplas relações. Cada pessoa vai tecendo sua singularidade mediante relações múltiplas e multidimensionais com todos os seres que constituem o seu contexto. Reconhecer a singularidade e o potencial criativo de cada um de nós, de cada grupo, é reconhecer a multiplicidade e a multidimensionalidade das relações que constituem cada elemento, cada ato, cada pessoa. É um ato de insurreição que desconstrói e transforma as lógicas disciplinares de sujeição e exclusão.

Qual sua visão sobre o modelo de escola especial?

O que vem sendo chamado de retrocesso no campo educacional é o que pode ser amplamente chamado de um sistema de retrocesso nos sistemas democráticos em geral. Compreender esse grande contexto é importante para entender os microrretrocessos. Para escrever, a criança tem que dispor de móveis e instrumentos adequados. Da mesma forma, a criança que tem dificuldade de escutar ou é surda, tem que ter os meios para que ela possa acompanhar tudo o que os outros estão dizendo. Legendas na TV permitem que as pessoas surdas acompanhem a programação. Essa é uma forma de facilitar a comunicação do surdo. Mesmo assim, é insuficiente para permitir uma comunicação mais plena.
Isso implica esforço grande de todos para construir ambientes com estrutura e recursos adequados para promover linguagens variadas e complexas de comunicação de modo a atender as diferentes necessidades “especiais” de cada pessoa. O problema acontece quando as escolas ou salas “especiais” são organizadas disciplinarmente, ou seja, quando se segrega e se enquadra um conjunto de pessoas que pressupostamente têm a mesma dificuldade e, por economia de recursos e trabalho, é oferecida para esse conjunto um processo de treinamento rotineiro e padronizado, desconectado dos interesses singulares e dos contextos de vida das pessoas com deficiência.

Há, então, um processo de simplificação de necessidades?

Isso mesmo. E esse processo disciplinar reduz todo mundo àquela necessidade como se ela fosse a única e surgisse isoladamente. Quando se oferece uma resposta padrão para uma necessidade especial, como se esta fosse a mesma para um conjunto de indivíduos, são ignoradas todas as outras dimensões relacionais e vivenciais que aquele grupo tem. Por isso, a escola especial pode ser uma resposta simplista e pouco eficiente para necessidades comunicacionais e interacionais específicas apresentadas por um conjunto de pessoas, na medida em que tais necessidades são entendidas e tratadas de modo isolado, desconectadas das histórias singulares e dos contextos de vida de cada pessoa. Temos de ver essas ações e propostas ou vivências sempre nas suas relações contextuais, nas interações da própria pessoa com os seus parceiros e com seus ambientes de vida.

Por que é importante ter alunos com deficiência em uma escola regular?

A presença das pessoas com suas diferenças na escola é necessária porque corresponde ao direito que todos têm de acesso à educação. Mas a interação proativa de pessoas com necessidades na escola é essencial e indispensável para forçar essa instituição a se tornar mais inteligente, mais complexa, mais eficiente, mais capaz de proporcionar educação de qualidade, crítica e potencializadora de vida em plenitude. A interação educacional com pessoas com deficiência, diferentes dos padrões hegemônicos, instiga a todos os integrantes da comunidade educativa a desenvolver diferentes linguagens e formas de relação, capacitando-as para lidar com a complexidade e a singularidade de cada pessoa. Que tal tentarmos enxergar do outro lado do espelho! Não se trata apenas de incluir, de abrir espaço para que as pessoas surdas, cegas ou com dificuldade de locomoção entrem na escola e possam interagir com outros estudantes, desenvolvendo outras linguagens e adequando formas de acessibilidade. Isso é um primeiro passo. O passo mais importante é aprender com essas pessoas o seu potencial criativo. As pesquisas mostram que as pessoas com deficiência têm dificuldade de acompanhar e permanecer na escola porque a escola não consegue aprender com o protagonismo dos “diferentes” e, com isso, criar ambientes confortáveis e adequados para sustentar as tensões criativas inerentes às relações entre seres singulares e diferentes entre si.

Qual a base de um ambiente inclusivo?

Criar um contexto inclusivo é criar contextos integradores na relação das pessoas com diferenças. É possível criar um contexto em que elas se assumem como um sujeito ativo e criativo. É criar contextos integradores em que a ação de cada um adquire sentido a partir do contexto em que ele vive ou do contexto criado ao se relacionar. Por isso que é mais difícil. Tem que ter essa formação para perceber e reagir com os contextos relacionais de cada pessoa para acolhê-la a partir do seu contexto e criar contextos que possibilitem estabelecer essa conexão. Só assim a gente supera os processos excludentes. É importante reconhecer o capacitismo como uma ideologia excludente e, portanto, contra a vida.

Como resistir a esse movimento que segrega e discrimina alunos e alunas?

O que temos hoje no campo econômico e político é uma predominância de forças que visam ao interesse de poucas grandes corporações que crescem, sugam e destroem os seres da natureza. Mas a emergência dessas forças não significa que outras tenham desaparecido. Muito pelo contrário! Quando políticos expressam essa lógica excludente, dominadora, disciplinadora, colonizadora, evidenciam, por contraste, todas as forças contrárias que apontam para outras lógicas de relação. Isso cria uma oportunidade de reação de todas as forças que tenham um objetivo de relação mais integral, recíproca e complementar, portanto, mais sustentável de vida pessoal, coletiva e com toda a natureza.

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