“O que a vida quer da gente é coragem”. A frase inspiradora do escritor mineiro Guimarães Rosa foi citada por Nísia Trindade na conclusão do seu discurso de posse como ministra da Saúde, no dia 2 de janeiro de 2023. Coragem e outro tanto de disposição seriam indispensáveis para a jornada iniciada pela carioca de 65 anos, socióloga e presidente da Fiocruz nos últimos seis anos, escolhida pelo presidente Lula para comandar a pasta da Saúde.
Somente nos primeiros quarenta dias como ministra, ela viajou a Roraima para constatar a grave crise sanitária vivida pelo povo Yanomami; esteve nos Estados Unidos para a posse do novo presidente da Organização Pan-americana da Saúde (Opas), o também brasileiro Jarbas Barbosa; e liderou as primeiras ações de reconstrução das políticas de saúde, incluindo o planejamento de estratégias para revitalizar o Programa Nacional de Imunizações (PNI) e retomar as altas coberturas vacinais.
Nísia é a primeira mulher a comandar o Ministério da Saúde (MS). Ela foi escolhida depois de presidir a Fiocruz durante seis anos, de 2017 a 2022, incluindo o período de enfrentamento à pandemia de covid-19. Agora, tem pela frente a missão de recuperar a autoridade sanitária do Ministério da Saúde, comprometida nos últimos anos. Só para se ter uma breve dimensão do tamanho do desafio: desde 2016, houve uma piora generalizada de indicadores e a perda da capacidade de coordenação e gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), como constata o relatório do Grupo Técnico (GT) da Saúde na transição, do qual Nísia fez parte.
Mesmo com a urgência de inúmeras agendas, Nísia conversou com Radis na sede do MS no Rio de Janeiro, na tarde do dia 10 de fevereiro, e falou sobre as ações já implementadas em 40 dias de gestão e os planos para reconstruir as políticas de saúde. Apesar de um longo dia de compromissos, ela recebeu nossa equipe com um sorriso gentil, o olhar sereno e a disposição para conversar durante mais de quarenta minutos.
Na entrevista exclusiva à Radis, a ministra da Saúde ressaltou o compromisso em resgatar a ciência e a saúde coletiva como bases para a construção de políticas públicas. Entre as ações prioritárias para os 100 primeiros dias de governo, ela mencionou o lançamento do Movimento Nacional pela Vacinação, como algo “mais amplo” que uma campanha — com foco na recuperação das coberturas vacinais que faziam o Brasil ser referência internacional até 2016. “Recuperar o papel de coordenação do Ministério da Saúde é essencial”, disse.
Servidora da Fiocruz desde 1987, Nísia é formada em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), com doutorado em Sociologia pelo antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Na conversa, ela também falou sobre participação social, enfrentamento ao racismo, reestruturação da área de Saúde Indígena diante da emergência sanitária yanomami e definição de políticas intersetoriais atentas aos chamados determinantes sociais e ambientais. Pontuou ainda que as condições de saúde têm um impacto muito grande na agenda social e que é hora de construir alternativas que levem em conta a questão: “Como políticas de saúde podem impactar positivamente as condições de vida?”
Primeira ministra da Saúde
O que significa ser a primeira mulher à frente do Ministério da Saúde em um país ainda machista como o Brasil?
É um lugar muito desafiador. Seria para qualquer pessoa, ainda mais no momento que estamos vivendo, com todo o processo de desconstrução das instituições. E mais do que isso: de destruição do ânimo e da cultura. É um ataque que eu diria que não é só político — é mais profundo, pois atinge valores básicos, humanistas, civilizatórios e até emancipatórios. E há uma dimensão internacional, porque vemos uma grande crise das instituições e da democracia. O fato de ser mulher, em um país tão machista como o nosso, reedita para mim, mas de uma forma muito mais ampla, o que vivi ao me candidatar à presidência da Fiocruz. Eu via muitas vezes pessoas que apostam também em um caminho progressista, que defendem a igualdade de gênero, mas veem como se não fosse um lugar adequado para as mulheres ou que demandasse um perfil estereotipado. Não é só o fato de ser mulher, mas mulher com uma certa característica. Eu sou uma pessoa muitas vezes definida como serena e há uma série de estereótipos masculinos de autoridade. Tanto mulheres quanto homens são vítimas um pouco disso. Como defende [a escritora feminista] Rosiska Darcy de Oliveira, a gente pode pensar o mundo com um pouco menos de agressividade.
E o que o fato de ser mulher representa para a agenda institucional?
É interessante falar disso porque ao mesmo tempo que eu sei que é importante para as mulheres ocuparem essas posições, se não tivermos políticas públicas efetivas torna-se um gesto, ainda que importantíssimo, insuficiente. Foi uma sensibilidade do presidente Lula, que escolheu assim, e ele falou muito antes de me fazer o convite que queria uma mulher e alguém comprometido com o SUS, e a luta contra a pandemia na liderança da Fiocruz foi o terceiro elemento que o fez escolher o meu nome. Quantas vezes ouvi as pessoas me perguntarem: Quem vai ser “o” Secretário Executivo? Poderia ser “a” Secretária. Isso é um pouco sugestivo de uma visão de “quem aguenta um tranco desse”. O MS é muito complexo, é o segundo maior orçamento. Aliás, nenhum Ministério é simples, ainda mais em um governo que está retomando políticas que foram descontinuadas com o impeachment da presidenta Dilma e tendo que atualizar ações. É outro momento da história. Pautas que estavam muito mais tímidas precisam ser colocadas de maneira mais afirmativa, como a questão das identidades de gênero, racial e vários outros recortes.
Para o SUS funcionar, o papel de coordenação nacional [do Ministério da Saúde] é fundamental.
Retomada das políticas públicas
Uma das 10 medidas prioritárias para reconstruir a saúde, segundo o GT de Transição, é resgatar a autoridade sanitária e técnica do Ministério da Saúde (MS), comprometida no último governo. Como pretende “resgatar essa autoridade” e melhorar a relação do MS com estados e municípios?
Essa foi uma tônica da transição. Procurei desde o início pôr em prática isso como visão e pactuação. Não só recebendo e indo à reunião tripartite, com as representações do Conass [Conselho Nacional de Secretários de Saúde] e Conasems [Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde], mas também fazendo muitos diálogos diretos, indo ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), recebendo governadores e parlamentares. Recuperar o papel de coordenação do Ministério da Saúde é essencial. Procuramos fazer isso deixando as primeiras ações de governo pactuadas, mostrando já de início o que seria essa condução. Todo o Movimento Nacional pela Vacinação, que não estamos chamando de campanha, porque é algo mais amplo que isso, foi pactuado na última tripartite, em janeiro. Da mesma forma, o programa para a redução de filas de cirurgias eletivas e exames também foi pactuado, não só do ponto de vista formal, mas também no sentido de reconhecer a grande diversidade do Brasil. Estabelecemos que isso será feito a partir de planos pactuados nos estados. Quando a gente fala em recuperar o protagonismo, não é uma nova centralização. Mas para o SUS funcionar, esse papel de coordenação nacional é fundamental. O MS precisa trabalhar com mais equidade: há estados que precisam de uma atenção especial; e [é preciso] promover uma solidariedade interfederativa. É nessa direção que a gente está buscando caminhar e nesse primeiro mês foi uma das coisas que mais me deixou satisfeita, ter conseguido não só as medidas, mas o acordo para isso.
No momento de assumir o governo, não tínhamos dados transparentes sobre a situação dos estoques das vacinas.
Desde 2016 observamos uma queda acentuada nas coberturas vacinais, o que foi ainda mais agravado na pandemia. Além do movimento anunciado, que medidas estão sendo planejadas para reverter esse quadro e o Brasil voltar a ser referência em imunização?
O que nós temos procurado fazer: primeiro, dar estabilidade à própria oferta de vacinas. Nós não tínhamos, no momento de assumir o governo, dados transparentes sobre a situação dos estoques. Mais do isso: eles estavam sob sigilo, que é uma coisa fora de propósito. O que fizemos de imediato foi recompor todos os estoques para replanejar as ações. Ao lado disso, vamos iniciar várias campanhas (no plural), para cada momento, para cada vacina, mas dentro dessa visão de um movimento nacional. E estabelecemos um grupo com o Ministério da Educação para que essa ação não seja restrita ao Ministério da Saúde. Que se possa ter, para ampliar a cobertura vacinal das crianças e adolescentes, a vacinação nas escolas, sem com isso descuidar da rotina. As vacinas para a covid-19 para crianças e adolescentes, na medida que a gente vai conseguindo repor os estoques, estão sendo distribuídas. Em 27 de fevereiro, a gente vai dar a partida para esse movimento nacional, mas muitas ações de vacinação devem ocorrer antes, por exemplo, no território yanomami, que foi também definido como prioridade, não só pela situação em que se encontram, mas porque tem havido um afluxo maior de pessoas, o que pode trazer alguns tipos de risco. É a ciência e a saúde coletiva presidindo a visão de política pública.
Ouvi de várias lideranças indígenas algo que me impactou muito: ‘A única política pública que temos 24 horas nos territórios é a política de saúde’
Emergência yanomami, saúde indígena e racismo
Um dos primeiros desafios que a senhora precisou enfrentar foi a grave emergência sanitária yanomami. Que ações estão sendo pensadas a longo prazo para fortalecer e recuperar a área de Saúde Indígena?
Primeiro, acho importante dizer que eu já tinha noção da fragilidade da Saúde Indígena e ao mesmo tempo da sua importância. Eu me reuni com várias lideranças indígenas, de vários povos. E de quase todos ouvi algo que me impactou muito, pois é diferente quando você ouve da população que está demandando a política: “A única política pública que temos 24 horas nos territórios é a política de saúde, graças ao Subsistema de Saúde Indígena”. Eu já tinha a dimensão da importância do MS na atenção básica para os povos indígenas, porque acompanhava esse processo desde a Fiocruz. Acompanhei durante toda a pandemia de covid, incluindo o relatório encaminhado ao ministro Barroso, do STF, a pedido da Apib [Articulação dos Povos Indígenas do Brasil]. Mas é diferente quando você dialoga diretamente com representantes dos povos e vê a importância que dão a essa política. E isso contrastava com os relatórios — além desse que foi enviado ao Supremo, também o da CGU, de 2020 — que mostravam uma situação muito crítica das ações do Ministério da Saúde, com as políticas de saúde em condições muito precárias.
Como construir políticas de saúde indígena atentas ao avanço da mineração e do desmatamento nos territórios originários?
O caso dos Yanomami é exemplar. Envolve a área de segurança; envolve trabalho, porque muitas das pessoas que estão no garimpo também precisam de uma alternativa de emprego; e envolve questões de ambiente, o aumento da malária etc. A crise yanomami é a desorganização de um modo de vida. Davi Kopenawa falou isso: a fome é só um indicador de algo muito mais grave. Com a desorganização do modo de vida, vêm a fome, as doenças, mais malária, mais violência. Para mim, já chamava atenção a necessidade de organizar o que seria uma grande força-tarefa para reestruturar a Saúde Indígena. E os Yanomami já apareciam como uma crise anunciada. Havia muitas denúncias de roubo de medicamentos. No caso dos Yanomami, coloquei a possibilidade de decretar uma Emergência em Saúde Pública, na reunião interministerial, mas decidimos que era importante uma missão ao território, coordenada pelo MS, para termos um quadro completo que embasasse a decretação da emergência sanitária [em 21/1]. Quando a missão estava em curso, começaram a circular aquelas fotografias terríveis. É o poder da imagem, e todos ficaram horrorizados no mundo todo.
O descaso era uma política.
E o que sentiu ao se deparar com a situação?
Foi uma sensação terrível. Não fui ao território yanomami, fui à Casai [Casa de Saúde Indígena], em Boa Vista, que é uma casa sob responsabilidade total do Ministério da Saúde. E ali vi coisas que realmente eu não tinha noção. Nem eu nem o presidente [Lula]. Fiquei ao lado dele ouvindo todos os relatos, junto com outros ministros. O mais chocante não era a condição física das pessoas, mas é saber, por exemplo, que havia uma moça que estava lá há seis meses e não havia transporte para voltar para casa. Isso não é uma Casa de Apoio à Saúde Indígena, isso é um campo de concentração. Por absoluto descaso. Não há outra palavra. O descaso era uma política. Não se considerava essas pessoas como cidadãos, com direitos, do contrário jamais poderia acontecer uma coisa dessas. Pode ser que alguém ache isso natural, mas é algo inadmissível.
Como pretende promover ações de enfrentamento ao racismo como pauta central para a saúde pública?
Essa é uma agenda que não é exclusiva da saúde. A saúde depende daquilo que chamamos de determinantes sociais e ambientais, e depende de muitas políticas. O que tenho feito de concreto, ao lado de uma coordenação voltada para a saúde da população negra, é estabelecer também ações efetivas e transversais — e tive uma excelente reunião com a ministra Anielle Franco, da Igualdade Racial, e lideranças da área, sejam gestores do SUS ou de movimentos. Se olharmos os indicadores de mortalidade materna: o quanto as mulheres negras sofrem muito mais com essa questão, da violência obstétrica até mesmo chegando à situação de morte materna. O enfrentamento ao que chamamos de racismo estrutural é o que está na base dessas ações. Na discriminação e na hesitação frente ao cuidado. A ideia é trabalharmos ações conjuntas com outros ministérios, como o caso dos ministérios das Mulheres e dos Direitos Humanos, para o enfrentamento do racismo estrutural. Isso vai desde políticas afirmativas até o cuidado permanente, enfatizando a construção de projetos educacionais, para que esse tema seja incorporado aos currículos, não deixando de ter um olhar especial a questões propriamente de saúde, como é o caso da anemia falciforme.
A gente fala em determinantes sociais e ambientais da saúde como algo que antecede as condições de saúde, mas também as condições de saúde têm um impacto muito grande na agenda social.
A gente tem que pensar as questões sociais e ambientais não antes de pensar a saúde, mas numa via de mão dupla mesmo. Assim: como políticas de saúde podem impactar positivamente as condições de vida?
Questões sociais e ambientais
Como pretende construir pontes com outras áreas do governo para que a garantia de saúde seja vista na perspectiva dos determinantes sociais?
Acho que podemos falar em determinações sociais e ambientais mesmo. Não dá para dissociar que todas as ações que afetam o ambiente, todas as questões de mudança climática, têm impacto na sociedade e ao mesmo tempo são fruto de ações sociais. Nossas ações intersetoriais são basicamente com vários ministérios: com o Ministério de Meio Ambiente, certamente, isso já está na pauta com a ministra Marina Silva; com a ministra do Esporte, Ana Moser, que também tem uma visão do esporte como política pública acessível a todos e como promotor da saúde; com a Educação, seguramente; com a Ciência e Tecnologia, também, porque acreditamos que o desenvolvimento da ciência e tecnologia, no caso da saúde, tem que se voltar para o acesso, com a melhoria da qualidade de vida. Mas queria enfatizar algo: a gente fala em determinantes sociais e ambientais da saúde como se antecedessem as condições de saúde, mas também as condições de saúde têm um impacto muito grande na agenda social — só para ficar num exemplo da pandemia: hoje se discute em todo mundo recuperação, preparação e resiliência dos sistemas de saúde. Então, a gente tem que pensar as questões sociais e ambientais não antes de pensar a saúde, mas numa via de mão dupla mesmo. Assim: como políticas de saúde podem impactar positivamente as condições de vida?
A saúde pode ser um fator promotor de condições melhores do ponto de vista social e ambiental.
Será que é possível para o Ministério da Saúde entrar na discussão de moradia, por exemplo?
Acho que é possível. A gente até fala de ‘Saúde em todas as políticas’. Por exemplo, a articulação com um ministério que hoje se colocou de uma forma muito clara foi com o Ministério das Cidades, que criou a Secretaria Nacional de Políticas para Territórios Periféricos. Nós estivemos juntos devido a um plano elaborado para o enfrentamento à covid-19 em favelas e periferias no estado do Rio — hoje se discutem políticas nacionais com a mesma orientação. Então, acho que a saúde pode ser um fator promotor de condições melhores do ponto de vista social e ambiental, à medida que as pessoas mudam suas formas de vida. Acho que é possível e desejável, mas o mais importante é, na organização do governo, existirem pautas em que todos os ministérios contribuam, de forma transversal. Essa é a tendência também porque os desafios são tantos… E claro que é necessário ter foco. No Ministério da Saúde estamos buscando ter foco nos 100 primeiros dias, para ganhar força para as políticas de médio e longo prazos. Acho que a sociedade espera por isso também.
Ano da participação social
2023 é o ano da 17ª Conferência Nacional de Saúde. Como pretende fortalecer a participação social, que foi desarticulada nos últimos anos, e incorporar as decisões do CNS e da conferência?
Acho que o CNS tem uma agenda fundamental agora com a 17ª Conferência. Já desde a transição, o presidente do Conselho [Fernando Pigatto] participou das discussões, então essa pauta já vinha sendo conversada. Eu só queria fazer uma observação: é verdade que nos últimos tempos o Conselho não foi ouvido, mas ocorreram conferências. Isso mostra a importância das instituições e de olharmos, no campo progressista, para a proteção legal. Isso não é tudo, mas é muito importante. O Conselho Nacional de Saúde só não foi desfeito porque era definido em lei, devido à forma como o SUS foi concebido. Outros conselhos, como o de Segurança Alimentar (Consea), foram destituídos. Isso mostra que precisamos também da institucionalidade. A pandemia e os ataques à democracia durante o governo Bolsonaro mostraram a importância de termos essa institucionalidade garantida.
E o que esperar da participação social no governo Lula?
Creio que esse terceiro governo do presidente Lula será muito inovador na questão da participação social. Há aprendizados importantes. Não só na forma como o ministério foi constituído — a gente sabe que há uma base muito ampla de apoio, então há muita diversidade —, mas essa preocupação está presente na própria formação dos ministérios. E mais do que isso: na criação, anunciada recentemente, de um Sistema Nacional de Participação Social e Diversidade, onde todos os ministérios terão representantes. No caso do Ministério da Saúde, a pessoa de referência que nos representará nesse fórum é a Lúcia Souto, ex-presidente do Cebes e pesquisadora da Fiocruz. Acho que nós temos aí a possibilidade de uma ação voltada para estabelecer, mais do que um diálogo, a construção de pautas comuns e políticas públicas entre governo e sociedade civil.
Você tem tido contato com lideranças sociais, como o Ivan Baron [referência na luta anticapacitista] e padre Júlio Lancellotti, por exemplo. Como tem sido esse encontro com pessoas que representam movimentos sociais tão diversos?
Esses encontros têm sido carregados de afeto e de muita emoção. Acho que todo mundo está ansiando por recuperar e avançar também nas suas pautas. E não falo só de movimentos sociais — até governadores, deputados, muitas vezes, chegam no gabinete do Ministério da Saúde e falam da emoção de estar ali. Então, acho que esse primeiro mês vem carregado de muita afetividade nesse sentido, muita aposta no ‘tem que dar certo’, muita demonstração de confiança, e, claro, muitas críticas também e isso faz parte — se não, não seria governo. Porém, mais do que confiança, vem carregado de compromisso também. Com padre Julio Lancellotti foi muito emocionante, porque ele também estava emocionado por me encontrar. Então, há essa expectativa positiva e isso é muito forte. É quase como se eu recebesse uma bênção por dia.
Nossa política tem que ser a do cuidado.
Revogaços e olhares para o futuro
Em janeiro, assistimos à revogação da portaria que dificultava o acesso ao aborto legal. Principalmente no que diz respeito à saúde da mulher, como o Ministério vai enfrentar medidas do governo anterior elaboradas sem qualquer base científica, mas endossadas por um forte apelo moral?
Nesse caso, desde o anúncio da medida, há muita incompreensão também. Acho que temos que ter um papel pedagógico, porque a maioria da sociedade não sabe exatamente do que se trata. Não adianta apenas eu ficar indignada e dizer: “Mas como não entendem?” O que estamos fazendo não só está dentro da lei como é uma medida de proteção. Claro que essa sempre foi uma discussão polêmica na sociedade, mas acho que é também uma oportunidade de falar de algo que não é dito: primeiro, que é obrigação do Ministério da Saúde cuidar da saúde integral de meninas e mulheres; é uma obrigação do MS protegê-las e garantir o aborto, nas condições em que ele é permitido legalmente no Brasil [quando a gravidez é resultante de estupro, quando há risco de vida para a mulher e em casos de feto anencefálico, isto é, com má formação cerebral]. Há algo que a sociedade não gosta muito de ouvir, mas infelizmente sabemos que é verdadeiro: grande parte dessas violências acontecem na família, na vizinhança, ou seja, no meio daqueles que deveriam proteger essas meninas e mulheres. Aí se diz: “É o Estado versus família”. Não, não é! A família deve proteger, como a família deve vacinar crianças e adolescentes, mas é uma obrigação do Estado — no caso, do MS — cuidar das crianças e adolescentes. Nossa política tem que ser a do cuidado. Mas acho que temos que esclarecer sempre. São questões muito difíceis de lidar, mas que são comprovadas por dados.
Qual a posição do MS em relação a dois pontos que vão ser muito debatidos na 17ª CNS: saúde mental e a presença das comunidades terapêuticas; e financiamento?
Em relação ao financiamento, minha visão é clara: de que existe o desfinanciamento, como sempre falamos. Vamos ter que superar essa situação e aumentar o financiamento público para a saúde, estabelecendo metas para isso. Acho que essa tem que ser uma discussão para este ano ainda. Agora, é importante dizer: temo que se a PEC da Transição não tivesse sido aprovada, eu não estaria falando nada disso aqui com vocês. Aliás, nem sei o que estaria falando ou fazendo porque não havia condições de fazer nada — quase 60% do orçamento de todos esses programas prioritários que mencionamos aqui haviam sido cortados. A famosa PEC do Teto [de gastos] já se mostrou insustentável, né? Então, isso abre caminho para o debate e para mostrar a importância de um SUS fortalecido com financiamento adequado. O que fizemos foi apenas a recomposição com a garantia de orçamento para esses programas. Já em relação à saúde mental, também teremos que fazer um grande debate na sociedade. É importante reforçar a linha de cuidado, de como podemos fortalecer a saúde mental e voltar à concepção dos Caps [Centros de Atenção Psicossocial] com força. Nesse momento, estamos estruturando o que vai ser o trabalho da nova Secretaria de Saúde Mental do MS.
Ministra, a senhora é uma apaixonada confessa por literatura e queríamos perguntar o quanto a literatura lhe inspira em momentos desafiadores? Tem conseguido ler algo para além dos relatórios técnicos?
[Risos] Tenho lido pouco literatura, mas ela é inspiradora mesmo, porque nos desloca, nos tira do lugar em que estamos e nos faz pensar com mais liberdade. Mas para você ver como o tempo para a literatura diminuiu, já passei de romance para o conto e agora estou nos poemas [risos]. Ultimamente, tenho lido o mais recente livro de poesia do Paulo Henriques Britto [Fim de Verão], que ganhei de presente. São poemas lindos.
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