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Apenas entre 2010 e 2024, o Brasil registrou a entrada de quase dois milhões de migrantes. São residentes, permanentes ou temporários, que se estabeleceram no país e vivem sob o guarda-chuva da Constituição de 1988, que assegura “o exercício dos direitos sociais como educação, saúde, alimentação, moradia, transporte, trabalho, lazer, segurança, assistência e previdência social, proteção à maternidade e à infância e o respeito às especificidades culturais, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória”.

O Brasil é um dos países que mais recebe migrantes no mundo. Eles chegam por ar, terra e mar, sem maiores dificuldades de entrada, e vão se estabelecendo (e se adaptando) à medida do possível. Não há uma política de restrição e deportação em vigor, pelo menos essa não é uma das prioridades do atual governo. O Brasil acomoda migrantes, refugiados e apátridas das mais diversas nacionalidades e dá acesso (pelo menos em tese) aos mesmos direitos básicos da população nacional. 

Dados do Boletim das Migrações, divulgado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), por meio da Secretaria Nacional de Justiça (Senajus), em 10 de outubro de 2024, mostram o crescimento do fluxo migratório vindo da Venezuela (500.636), seguido do Haiti (183.102) e da Bolívia (110.795). 

A Venezuela também lidera a listagem de países com mais refugiados (134.089), muito à frente da Síria (4.100) e da República Democrática do Congo (1.158), que ocupam respectivamente o segundo e o terceiro postos. Atualmente, o governo analisa outros 450.752 pedidos de reconhecimento da condição de refugiado.E depois da entrada em território nacional, como o Brasil lida com as demandas e necessidades dessas pessoas? Como tem sido o acolhimento e como as políticas públicas têm se preocupado com os direitos dessa população? Radis esteve na 2ª Conferência Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia (Comigrar), que aconteceu em Brasília, nos dias 8, 9 e 10 de novembro, para entender como o Estado brasileiro atua no tema das migrações e, principalmente, o que pensam e reivindicam migrantes, refugiados e apátridas que chegam ao país.

Como acolhemos?

“O Brasil queria mão de obra, mas vieram pessoas. Com suas necessidades e peculiaridades”, analisa Richardson Yonel Civil, natural do Haiti, estudante de Medicina na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e membro da Associação dos Jovens Haitianos em Ciência de Saúde (Associação des Jeunes Haitiens en Sciences de la Santé-AJHASS). Ele recupera a famosa frase do sociólogo suíço Max Frisch (1911-1991), que em 1965 analisou o movimento migratório para a Suíça, e disse: “Importamos mão-de-obra, recebemos seres humanos”.

Na mesa de abertura da 2ª Comigrar, Richardson reconheceu o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro como um dos melhores do mundo, mas relembrou casos de haitianos que enfrentaram (e ainda enfrentam) a discriminação no atendimento. “Além de racismo e xenofobia, os migrantes no Brasil sofrem com profissionais pouco capacitados para lidar com as diferenças culturais. Falta uma real integração entre médicos e usuários estrangeiros do sistema”.

Em recente reportagem de capa de Radis (264), o repórter Adriano de Lavor destrinchou os impactos da migração no SUS. O projeto Reparando desigualdades de gênero na saúde das mulheres e adolescentes deslocadas em contextos de crise prolongada na América Central e do Sul (ReGHID), coordenado também pela pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) Maria do Carmo Leal,  constatou que a existência de um serviço público de saúde gratuito e universal é uma das principais motivações para as mulheres migrarem para o Brasil. 

No entanto, a formação médica para atendimento de uma população composta por diferentes nacionalidades, com dificuldades naturais da língua, e que cresce a cada dia, apareceu na Comigrar como uma das maiores demandas de migrantes e refugiados.

Jerzey Timóteo Ribeiro Santos, secretário adjunto da Secretaria de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, comprometeu-se, durante a Conferência, a levar à frente essa discussão de incluir na formação profissional médica e de enfermagem as especificidades dos estrangeiros. 

Ele lembrou uma portaria recente do Ministério da Saúde (nº 5.517/24), assinada pela ministra Nísia Trindade, que instituiu um Grupo de Trabalho para apresentar um projeto de Política Nacional de Saúde Integral de pessoas migrantes, refugiadas e apátridas. “Em 34 anos de existência do SUS, essa é a primeira vez que discutiremos uma Política Nacional de Saúde específica para essa população. Estamos aqui nessa Conferência para escutar todas as necessidades”, afirmou.

Entre as propostas aprovadas na Comigrar estão a revisão e a aprovação do Projeto de Lei (n. 5182/20), que institui a obrigatoriedade de alocação de tradutores, intérpretes comunitários e mediadores culturais nos principais pontos de entrada do Brasil, abrangendo línguas de sinais e os diversos idiomas falados no território, além da disponibilização de tecnologias e plataformas de tradução simultânea em serviços e equipamentos públicos do SUS e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). “A questão linguística é uma barreira importante no acesso à saúde pública. Temos ciência disso e vamos trabalhar para diminuir esse problema”, disse Jerzey.

A Comigrar indicou ainda a implementação de um programa nacional de mediação intercultural e linguística, priorizando a contratação de pessoas migrantes, refugiadas e apátridas, com paridade de gênero, orientação sexual, raça, cor, etnia e origem, em especial as mulheres indígenas, africanas, afrodescendentes e população LGBTQIA+. A iniciativa também deve incluir a capacitação em direitos humanos, políticas públicas e diversidade cultural. 

“Tenho certeza de que as discussões da Comigrar irão fundamentar a construção da política nacional e o desenvolvimento do plano nacional sobre essa temática. Esse é um governo da participação popular e nosso compromisso é de acolher as propostas feitas por vocês”, disse Jean Uema, secretário nacional de Justiça.

Floriano Teixeira Filho, presidente da Comissão Especial de Direito Imigratório do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), destacou que não basta receber os migrantes, refugiados e apátridas. “O que percebemos hoje é que o país recebe essa população, que cresce a cada dia, de forma desorganizada. É preciso ter uma política pública séria de acolhimento”, avaliou na abertura da 2ª Comigrar.

Ele lembrou que o país já conta com uma lei que dispõe sobre os direitos e os deveres dos migrantes e visitantes (n. 13.445/17). “Em maio de 2017 foi sancionada no Brasil uma das leis mais modernas e abrangentes do mundo. No entanto, ela ainda não regulamenta de fato a política imigratória do nosso país”.Para que a lei saia do papel, Floriano defende a regulamentação do artigo 120, que garantiria uma logística para sua efetividade. “Nota-se que a operacionalidade e a real aplicação da lei que trata da migração precisa ser através de atos normativos do Poder Executivo Federal. Por isso, estamos aqui defendendo e trabalhando pelo artigo 120”. 

“Um terremoto destruiu completamente minha casa no Haiti em 2010. Viemos para o Rio de Janeiro e nos adaptamos muito bem. A cultura entre os dois países não é tão diferente, tem o futebol e o carnaval”.

Robert Montinard (Bob), haitiano, há 14 anos no Brasil

Novas regras para pedidos de refúgio

Imigrantes que desembarcaram em aeroportos brasileiros a partir do dia 26 de agosto de 2024 se depararam com uma nova regra para fazer o pedido de refúgio no país: passageiros em trânsito internacional, que não tiverem visto de entrada no Brasil, devem seguir para seus destinos ou retornar às suas nações de origem. “Se esses passageiros permanecerem na área de trânsito internacional do Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, ou em outros aeroportos com conexões internacionais, e não tiverem visto de entrada para o Brasil, não serão admitidos”, diz a nota do Ministério da Justiça.

O assunto foi tema e ganhou destaque nas discussões da 2ª Comigrar. Virou moção aprovada por unanimidade no final das votações da Conferência o “repúdio às restrições impostas pelo Ministério da Justiça às solicitações de refúgio de pessoas no aeroporto de Guarulhos que não possuem o Brasil como destino final”.

Cerca de 60 entidades da sociedade civil, incluindo organizações de proteção a migrantes e refugiados, também divulgaram nota conjunta em repúdio às restrições. “A mudança de entendimento do governo, sob o pretexto de combater o tráfico de pessoas, não pode justificar a negação da proteção a indivíduos em situação de vulnerabilidade”, afirma o texto.

Já o secretário Nacional de Justiça, Jean Keiji Uema, defendeu a medida após a Polícia Federal apontar a atuação de grupos criminosos em esquemas de tráfico e contrabando de pessoas. Jean ressalta que o Brasil não pode permitir que seu caráter acolhedor e humanitário seja explorado por organizações criminosas para facilitar a migração ilegal. “O refúgio é um instrumento legal para proteger pessoas perseguidas em seus países de origem. Não podemos permitir que ele seja usado para tráfico de pessoas e contrabando de imigrantes”, declarou.

A nova regra, no entanto, também recebeu críticas da Defensoria Pública da União e do Ministério Público Federal (MPF), por meio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. O órgão recomendou sua revogação ou anulação. No documento, o procurador federal Nicolao Dino afirma que a mudança “inova indevidamente no ordenamento jurídico, frustrando a eficácia e a aplicação da Lei de Migração e da Lei n. 9.474/1997 e disposições regulamentares correlatas, que definem os mecanismos necessários à implementação do Estatuto dos Refugiados”.

O Comitê Migrações e Deslocamento da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) também recomendou ao Ministério da Justiça a imediata revogação de tal política de criminalização da migração e do refúgio. “Essa política fragiliza a garantia e a efetivação de direitos humanos básicos das pessoas migrantes, ensejando interpretações que vinculam, preocupantemente, determinados migrantes ao perigo, à insegurança, ao risco e ao crime. Ela também contraria a Lei de Refúgio e a Nova Lei de Migração, indicando uma continuação das políticas dos governos Temer e Bolsonaro, e ecoa uma tendência mundial de ataques aos direitos de pessoas em mobilidade”.

“A crise política no Peru me fez querer ficar no Brasil. Lá temos que conviver com a continuidade da ditadura Fujimori, a violação dos direitos humanos, muita informalidade e pouco acesso a emprego”.

Sandra Morales, peruana, há 10 anos no Brasil

Centenas ainda estão em aeroportos

Dentre algumas das quebras de protocolo, na abertura da 2ª Comigrar, a de uma refugiada de Gâmbia, Mariam Bah, emocionou a todas as pessoas. Ela subiu ao palco, pediu o microfone à organização do evento e lembrou da morte de Evans Osei Wusu. 

O imigrante ganês, de 39 anos, faleceu após passar mal no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Ao não ser admitido no México, onde faria uma cirurgia na coluna, ele solicitou refúgio no Brasil. Ficou retido alguns dias em condições insalubres. De acordo com a família, Evans reclamou de dores e disse que não foi compreendido quando pediu ajuda no aeroporto. Acabou sendo levado em estado crítico a um hospital no dia 11 de agosto e faleceu dois dias depois. Foi enterrado sem o conhecimento dos familiares.

Mesmo com a nova regra em vigor, que na prática restringe o número de pessoas habilitadas a pedirem refúgio, os aeroportos do país ainda apresentam muitos imigrantes nessas condições. O presidente da Comissão sobre Migrações Internacionais e Refugiados do Congresso Nacional, o deputado federal Túlio Gadêlha (Rede-PE), disse na Comigrar que atualmente existem cerca de 400 pessoas nessa situação no aeroporto de Guarulhos. “Em pequenos espaços, ilegalmente isolados do resto do aeroporto, dormindo no chão. Em condições desumanas. Nós, da Comissão, já denunciamos diversas vezes às autoridades competentes essa situação e continuamos cobrando mais celeridade no processo de averiguação e concessão dos vistos, quando pertinentes”.

Conferência reuniu migrantes de diversas nacionalidades. Entre elas, a peruana Sandra Morales (de preto), que chegou no Brasil há 10 anos. — Foto: Jesuan Xavier.
Conferência reuniu migrantes de diversas nacionalidades. Entre elas, a peruana Sandra Morales (de preto), que chegou no Brasil há 10 anos. — Foto: Jesuan Xavier.

E agora?

Passada a euforia e o otimismo gerado pela realização da 2ª Comigrar, em Brasília, Radis ouviu três delegadas que participaram ativamente das discussões nos três dias da Conferência Nacional. Elas estiveram nos Grupos de Trabalho, que debateram 180 sugestões compiladas das conferências prévias — realizadas entre outubro de 2023 e julho de 2024.

Destes GTs, que analisaram os seis eixos temáticos [Veja quadro clicando aqui], saíram os destaques apreciados na Plenária Final: 60 propostas aprovadas que devem servir de base para a construção de uma Política Nacional voltada para essa população.

A venezuelana Lis Carolina Martinez, delegada eleita por Manaus, enfatizou a representatividade da Conferência: “A Comigar foi um espaço muito importante de discussão, mas o principal é que foi um processo que iniciou com eventos locais e regionais, o que permitiu à comunidade migrante se articular e trabalhar em bloco por objetivos comuns. Nenhum outro país tem mecanismos como a Comigrar. O Brasil é pioneiro nesses espaços de debate”, avaliou à Radis

Uma representatividade expressa em números. Dos 269 delegados e delegadas eleitos, nas 119 conferências preparatórias, metade foi de migrantes, com origens diversas como Afeganistão, Angola, Bolívia, Guiné-Bissau, Peru, Colômbia e Equador. Mais de 14 mil pessoas participaram das discussões prévias. Mulheres, indígenas, pessoas idosas, negras, com deficiência e LGBTQIA+ estiveram representadas.

Há 5 anos no país, a jornalista de formação e hoje empreendedora e coordenadora de iniciativas que visam apoiar mulheres refugiadas e migrantes no país [Leia matéria clicando aqui], Lis destaca algumas das propostas aprovadas na Comigrar. “Acho que avançamos positivamente em questões caras para os refugiados, como os processos de revalidação e reconhecimento de diplomas. Um tema vital para toda nossa comunidade”, disse.

A expectativa é que todo o trabalho realizado na Conferência saia do papel e seja implementado realmente pelas autoridades competentes. “Nossa luta agora é para que as propostas aprovadas virem realidade. A Comigrar foi apenas uma etapa desse processo”, completou Lis.

A peruana Sandra Morales, delegada eleita por São Paulo, confirmou que os participantes da Conferência Nacional já se articulam para a formação de um grupo de trabalho posterior, visando o acompanhamento das propostas aprovadas na Comigrar. “Estamos nos organizando para termos reuniões sistemáticas. Já começamos a avaliar as possibilidades para, juntos, chegarmos às autoridades competentes. É importante que todo o trabalho aqui não seja desperdiçado”, ressaltou.

Sandra, descendente de indígenas quíchuas, psicóloga com mestrado em psicologia social, também destacou a proposta de revalidação dos diplomas, como uma das principais aprovadas na Conferência. Para ela, a identidade profissional dos migrantes é de suma importância na adaptação e no estabelecimento dos estrangeiros. “Além de um processo mais célere na regularização dos documentos migratórios”, acrescentou.

A colombiana Catalina Revollo Prado, delegada pelo estado do Rio de Janeiro, também disse que o trabalho continua. “Vamos bater na porta da Comissão Mista no Congresso, tentar que nossas presenças, expressões e ideias também estejam lá representadas”, destacou.

Em mensagem transmitida na abertura da Comigrar, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, reafirmou o compromisso do governo federal com o tema. “A 2ª Comigrar é uma conquista histórica que reafirma o compromisso do Estado brasileiro com a construção participativa de políticas públicas para pessoas migrantes, refugiadas e apátridas em nosso país”.

O secretário Nacional de Justiça, Jean Keiji Uema, disse que o evento é um marco para a construção de um país mais acolhedor e inclusivo. “Reafirmamos o compromisso do Brasil com aqueles que atravessam fronteiras em busca de uma vida melhor, seja em razão de conflitos, perseguições ou desastres. Este é o momento de debatermos soluções concretas e fortalecer os laços de solidariedade”, pontuou.

“Ganhei uma bolsa de estudos para cursar Geografia na Universidade Católica de Salvador (UCsal). Era o início da crise econômica na Venezuela e consegui me estabelecer por aqui.”

Alejandra Escalona, venezuelana, há 9 anos no Brasil

Políticas migratórias em movimento

— Foto: Jesuan Xavier.

Movimentos migratórios no mundo sempre existiram e não são maiores atualmente, como muitos podem pensar, destaca Leonardo Cavalcanti, professor do Centro de Pesquisa e Pós-graduação sobre as Américas (Ceppac), vinculado à Universidade de Brasília (UnB). Segundo ele, a grande diferença está em um sentimento carregado de preconceitos e racismo. “Antigamente, as migrações aconteciam basicamente nas regiões Norte do planeta. Movimentos Norte-Norte ou Norte-Sul. O Brasil é um exemplo disso. Recebemos durante anos e de braços abertos alemães, portugueses, italianos e espanhóis. Outros países da América do Sul também acolhiam bem esses migrantes europeus”, afirmou, durante a Conferência.

Leonardo, que proferiu a Aula Magna Políticas migratórias em movimento: Dilemas entre fluxos líquidos e políticas sólidas, durante a 2ª Comigrar, explica que o preconceito contra os migrantes se inicia em meados do século 20, quando as pessoas do Sul global passam a ocupar os espaços do Norte. “Pela primeira vez na história das migrações, os negros africanos são vistos em espaços públicos em Londres e Paris. Os sul-americanos, os indígenas, também ocupam seus lugares no Norte. Isso causa um mal-estar, aflorando o racismo e a xenofobia nesses países”, destaca.

Jean Uema tem a mesma opinião. Segundo ele, a migração precisa ser vista como um direito universal. “Quando o movimento migratório se dava a partir dos países que compõem o Norte global para o Sul, era mais aceito. Agora, quando o Sul global precisa que os países do Norte aceitem os migrantes, os refugiados, nós encontramos dificuldades, politização e xenofobia”, ressaltou.

Leonardo lembra, no entanto, que a crise financeira que afetou principalmente os Estados Unidos e o Japão, nos anos de 2007 e 2008, alterou significativamente o fluxo migratório mundial. “Passa a ser completamente diferente do que aconteceu anteriormente nos séculos 19 e 20. Atualmente, para se ter uma ideia, o Brasil recebe pessoas tanto do Norte quanto do Sul global. E brasileiros também migram para outros países. A migração em todo o mundo fica muito mais complexa”, completou.

“Vim foragida do terremoto que devastou meu país. Sofri muito com racismo e xenofobia. Não gosto do rótulo de migrante, refugiada ou apátrida. Somos todos seres humanos.”

Gloriane Antoine, haitiana, há 12 anos no Brasil

Educação e mercado do trabalho

— Foto: Jesuan Xavier.

Uma das maiores demandas de migrantes, refugiados e apátridas está na educação. Para essa população, o reconhecimento de diplomas e, principalmente, o acesso e uma receptividade mais acolhedora nas instituições de ensino são fundamentais para garantir melhores condições de vida no país.

Uma das propostas aprovadas na plenária final da Conferência prevê um Programa Nacional permanente, em parceria com o Ministério da Educação (MEC), em articulação com as Secretarias de Educação estaduais e municipais e universidades credenciadas, com o foco na formação continuada de diretores, gestores escolares e profissionais de escolas públicas, abordando as especificidades e as vulnerabilidades de migrantes, refugiados e apátridas no ambiente escolar.

A professora Denise Bomtempo, do Departamento de Geografia da Universidade Estadual do Ceará (Uece), também delegada na Comigrar, frisou que é importante garantir a entrada de migrantes e refugiados nas universidades brasileiras. Isso inclui a abertura de editais específicos para ingresso no ensino superior, a facilitação de matrícula e o acolhimento, independente de documentação completa.

A proposta aprovada indica ainda a organização de materiais didáticos, paradidáticos, plurilingues e interculturais em bibliotecas escolares; a contratação de, ao menos, um professor MRA (migrante, refugiado ou apátrida) universitário por disciplina ou matéria junto às universidades credenciadas; e mobilidade de assistentes de língua portuguesa nativos de outros países e indígenas para ajudar durante as aulas e em traduções de documentos, a fim de melhorar as práticas de ensino de português como língua de acolhimento.

O presidente da Comissão sobre Migrações Internacionais e Refugiados do Congresso Nacional, Túlio Gadêlha, frisou que é fundamental fazer parcerias com as universidades, visando que o estrangeiro possa aprender a língua portuguesa. “A barreira da língua impede muitos de acessarem o mercado de trabalho formal”, avaliou.

Para a peruana Sandra Morales, há 10 anos no Brasil, o país já tem uma das melhores leis de migração do mundo. “Mas muitos dos artigos que estão lá simplesmente não são cumpridos. Fizemos um bonito trabalho na Comigrar. Vamos cobrar os compromissos aqui assumidos e espero que realmente haja vontade política do governo para colocar em prática as diretrizes aprovadas”, avaliou.

“Somos todos humanos”

A 2ª Comigrar contou com delegados de nacionalidades distintas (mais de 50% eram de estrangeiros), mas com trajetórias e objetivos similares: lutam por melhores condições de vida no país e quase sempre estão envolvidos com projetos de acolhimento aos seus conterrâneos. 

Muitos dos migrantes vêm ao Brasil foragidos de guerras, perseguições políticas, crises econômicas e/ou desastres ambientais. Ao chegarem, deparam-se com algumas barreiras, como a diferença cultural e da língua, e enfrentam preconceitos, racismo e xenofobia. Formam no país uma diversidade ainda mais ampla.

Conheça algumas propostas aprovadas na Comigrar

Revalidação de diplomas 

  • Implementar no âmbito do Ministério da Educação (MEC) e do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), e em colaboração com os conselhos profissionais, um sistema nacional integrado de revalidação e equivalência de diplomas e certificados de educação profissional (superior, técnicos e de formação inicial e continuada) e de educação básica para migrantes, refugiados e apátridas, independentemente do status documental e garantindo a observância e o reconhecimento do conhecimento universal;

Direito ao voto

  • Impulsionar a campanha “Aqui Vivo, Aqui Voto” para reabrir e ampliar a PEC n. 25/2012, que visa garantir o direito ao voto para migrantes, refugiados e apátridas em cargos eletivos de presidente/a, governador/a, prefeito/a, deputados/as, senadores/as, vereadores/as e conselheiros/as tutelares, respeitando o direito ao uso do nome social e à identidade de gênero, e destacando a participação política plena das mulheres, sobretudo mulheres negras (pretas ou pardas), indígenas e migrantes autodeclarados como indígenas. Além disso, elaborar critérios mais adequados de tempo de residência no Brasil para ter acesso ao direito de votar, considerando dois anos para eleições municipais e quatro anos para estaduais e federais;

Disque Migrante

  • Implementar um canal de atendimento multilingue nacional (Disque migrante) com número único, utilizando tecnologia para incorporar intérpretes bilíngues e equipe multiprofissional capacitada, a partir do fornecimento de orientações sobre serviços públicos e privados — incluindo organizações da sociedade civil, esclarecer dúvidas e acolher denúncias da população migrante, refugiada e apátrida, com especial atenção às necessidades das pessoas LGBTQIA+, indígenas, negras africanas e afrodescendentes, priorizando opções de atendimento físico e telefônico, além do online, para garantir acessibilidade (digital, física, auditiva e visual) a todos os membros da comunidade.

Eixos da Comigrar

  • Igualdade de tratamento e acesso aos serviços públicos
  • Inserção socioeconômica e promoção do trabalho decente
  • Interculturalidade e diversidades
  • Governança e participação social
  • Regularização migratória e documental
  • Enfrentamento a violações de direitos. 

Conferência em números

  • 60 propostas aprovadas
  • 119 conferências livres
  • 14 mil participantes
  • 269 delegados

Migrantes no Brasil 

  • Total: 1.700.686 (até agosto de 2024)
  • Venezuela: 500.636
  • Haiti: 183.102
  • Bolívia: 110.795

Fonte: Boletim das Migrações (Ministério da Justiça)

Qual a diferença entre migrante, imigrante, apátrida e refugiado?

Migrante

É um termo geral que se refere a qualquer pessoa que se desloca de um lugar para outro, seja dentro do mesmo país ou para o exterior.

Imigrante

É uma pessoa que se estabelece em um país diferente daquele em que nasceu ou do qual é cidadão, com a intenção de residir permanentemente ou por um longo período de tempo.

Refugiado

É toda pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social, opinião política, sexualidade ou identidade de gênero, é obrigado a deixar o seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outros países.

Apátrida

É considerada apátrida a pessoa que não tem sua nacionalidade reconhecida por nenhum país. De acordo com a Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), essa situação ocorre no mundo inteiro por diversos motivos, entre eles a discriminação, os conflitos entre leis e a falta de reconhecimento de residentes de países que se tornaram independentes.

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