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Luciene Silva perdeu um filho na Chacina da Baixada, como ficou conhecido o triste episódio em que 29 pessoas foram assassinadas, na noite de 31 de março de 2005, por policiais militares, em Nova Iguaçu e Queimados, na Baixada Fluminense. Roger Gomes de Oliveira ficou sem um primo, também por culpa da violência policial, em 2014, no Rio de Janeiro. Elza Maria viu de perto uma brutal operação de despejo que destruiu a casa e o sonho de muitos, em 2012. O que motiva Suellen Paim de Mello a lutar, no Complexo da Maré, é a ausência — “É a ausência de opções, ausência de escolhas, ausência de proteção, é a ausência de muita coisa”.

Os quatro integram um grupo de 20 defensores que fizeram parte do projeto “Promoção da Saúde e Direitos Humanos no Estado do Rio de Janeiro”, coordenado pela Cooperação Social da presidência da Fiocruz em parceria com profissionais que já atuaram na Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). De acordo com o coordenador do projeto, Gabriel Simões, a ideia nasceu com um triplo objetivo: capacitar defensores de direitos humanos, implantar uma rede para compartilhamento das experiências e traçar uma cartografia das violações nos territórios de favelas e periferias do estado. 

O projeto foi tão bem-sucedido que, finalizado em maio, já está com uma reedição prevista para acontecer no segundo semestre de 2023. Para participar da primeira edição, que teve início em 2012, por meio de um edital, os interessados deveriam redigir uma carta demonstrando o vínculo com um movimento de defesa dos direitos humanos. No total, 175 pessoas se inscreveram, 33 foram entrevistadas e 20 selecionadas.

Vinham de diferentes movimentos sociais, coletivos e organizações da sociedade civil, sem limite de idade, cada um com a sua causa. Contaram com uma bolsa equivalente a um salário-mínimo. E durante 10 meses, quinzenalmente, aos sábados, reuniram-se em oficinas temáticas, em que eram discutidas as questões específicas dos territórios e as diferentes frentes de atuação. Nessa etapa, o projeto teve assessoria da Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (Fase).

Como resultado, foi lançada em maio a Cartografia dos Territórios Populares do Rio de Janeiro, um documento ilustrado de 50 páginas em que os defensores mapeiam as violações em suas respectivas regiões, descrevem iniciativas de combate a essas ocorrências e identificam equipamentos e parcerias que podem ser acessados para o cumprimento de direitos. Para cada ato de violência, dizem na abertura da cartografia, um número sem-fim de “atos de sobrevivência, de solidariedade, de disposição a não se entregar, de não ser engolido pelo fatalismo”. [O documento está disponível para download aqui]

Defensores durante as oficinas de capacitação do projeto: a força do território. — Foto: acervo pessoal.
Defensores durante as oficinas de capacitação do projeto: a força do território. — Foto: acervo pessoal.

O lugar da rede

Desses encontros, nasceu também uma rede autônoma de defensores de direitos humanos, o que talvez possa ser considerado o ponto alto do projeto. “É muito importante encontrar um lugar de fortalecimento das lutas e a gente entende que a Rede é esse local”, relatou Gabriel, para quem as trocas que aconteciam nesses encontros e as experiências partilhadas ajudavam a encorajar os defensores no cotidiano do ativismo. “Porque apesar de representarem um território e fazerem parte de um movimento, em muitos momentos, a luta é muito solitária”. 

Não raro, um problema relatado por um defensor encontrava eco em outro; uma solução detectada em um território apontava uma saída para outro. Na tarde em que Radis entrevistou Gabriel, um defensor estava à procura de uma referência em violência doméstica para participar de um evento que discutiria o tema em um grupo de mães de pessoas com deficiência que vem enfrentando o problema. Rapidamente, no grupo de WhatsApp da Rede, o defensor encontrou a resposta. “A Rede é um espaço de estímulo, mas também onde eles descobrem caminhos e sugestões para lidar com casos de violações comuns”.

Um primeiro encontro da Rede já estruturada para formalizar a proposta e definir o seu funcionamento aconteceu no início de julho, no Assentamento Terra Prometida, em Duque de Caxias, na região metropolitana do Rio de Janeiro. É de lá que vem a defensora Ana Beatriz de Carvalho, que herdou dos pais a gana de lutar pela terra e pelo acesso a uma vida digna com moradia, alimento, autonomia. No relatório final do programa, ela disse: “Precisamos não só desconcentrar a terra, mas garantir desenvolvimento social, econômico e ambiental para que todas as famílias no campo e nas cidades vivam com dignidade”.

Escuta e acolhimento

Quando as oficinas de capacitação temática do programa tiveram início, o país ainda engatinhava para fora de uma pandemia que ampliou as desigualdades e violações de direitos, especialmente em territórios vulnerabilizados. No Rio de Janeiro, por exemplo, as operações policiais continuaram acontecendo — e deixando vítimas —, descumprindo uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que determinava que, naquele período, elas só deveriam ser realizadas em situações excepcionais. 

Além disso, acrescenta Daniel, a criminalização dos defensores de direitos humanos parecia ainda mais violenta. “Houve um momento em que a expressão ‘direitos humanos’ virou um xingamento. O simples fato de ser identificado socialmente como um defensor já podia colocar a vida deles em risco”. Talvez como um reflexo desse cenário, em um primeiro momento, nem todos os participantes se reconheciam como defensores de direitos humanos. “Alguns se chamavam de militantes, ativistas, lideranças. Outros, de defensores populares. Mas ao longo do projeto foi ficando mais claro para eles o lugar que ocupavam”.

Como uma maneira de cuidar do defensor, o projeto fechou uma parceria com a Universidade, Resistência e Direitos Humanos (Urdir), um núcleo das faculdades de Psicologia e Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), por meio da qual foi possível oferecer aos participantes também oficinas de escuta terapêutica. “Há muita dureza no dia a dia de um defensor de direitos humanos”, disse Gabriel. “A gente queria que o projeto fosse também um lugar de acolhimento para quem faz tanto pelo coletivo”.

O projeto se desdobra: relatório final e reedição prevista para acontecer ainda este semestre. — Foto: acervo pessoal.
O projeto se desdobra: relatório final e reedição prevista para acontecer ainda este semestre. — Foto: acervo pessoal.

Relatório final

Como última etapa, será lançado em setembro um relatório final do projeto — que já foi apresentado ao ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, e à ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, além de parlamentares. Essa é uma maneira de difundir essa experiência que pode virar referência e inspirar políticas públicas, assim espera Gabriel, que é pesquisador de políticas públicas e formação humana.

O documento traz um balanço detalhado de cada etapa do projeto, uma retrospectiva das oficinas e encontros, um passo a passo da elaboração da cartografia social e os contornos da Rede, além de um perfil de cada um dos 20 participantes com declarações coletadas sobre a importância da defesa dos direitos humanos. A partir de seus territórios, mas agora em rede, eles lutam por um mundo com menos fome, racismo, misoginia, homofobia, violência policial; e com mais saúde, educação, moradia, saneamento básico, cultura e direitos humanos. [O relatório será disponibilizado na página da Fiocruz]“Perceber que os direitos básicos são negligenciados, que a desigualdade social só aumenta, que a exclusão é normatizada cada vez mais e que a discriminação se torna cotidiana, são estas questões que me mobilizam”, disse Elaine de Moraes Lopes, agente comunitária de saúde, comunicadora popular da Maré, que também participou desta primeira edição do projeto. [É dela a reportagem que você pode ler clicando aqui].


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