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No Centro de Boa Vista, Roraima, são quase oito horas da manhã de segunda-feira, 6 de março, e já não há mais lugar para se sentar ao redor da grande mesa que ocupa quase toda a sala onde diariamente acontece a reunião do Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE Yanomami). O COE é ação concreta da resposta governamental à crise de desassistência identificada na Terra Indígena Yanomami (TIY), desde que o Ministério da Saúde (MS) declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin), em 20 de janeiro.

A medida foi tomada depois que a agência de notícias Sumaúma divulgou que 570 crianças de até cinco anos haviam morrido de causas evitáveis no território, entre 2019 e 2022. Como uma forma de gerenciar a resposta à emergência em âmbito nacional, o COE Yanomami está sob responsabilidade da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) do MS e tem como atribuição coordenar as medidas a serem empregadas durante o estado de emergência, incluindo a mobilização de recursos para o restabelecimento dos serviços de saúde e a articulação com os gestores estaduais e municipais do SUS.

Geralmente, um COE envolve apenas secretarias do próprio Ministério da Saúde. A complexidade da situação na TIY, no entanto, exigiu que a resposta contasse com a participação de diferentes setores do governo e da sociedade, já que os problemas encontrados ultrapassavam as fronteiras da Saúde. “No caso do COE Yanomami, há algumas especificidades, já que essa foi a primeira Espin decretada por situação de desassistência, por causa de um problema que é crônico, em todas as dimensões, e que não é somente da Saúde”, disse à Radis a pesquisadora Ana Lúcia Pontes, coordenadora do COE.
Leia entrevista completa clicando aqui.

Esta é a primeira matéria produzida por Radis como resultado da cobertura especial sobre a Emergência Yanomami. Durante 10 dias, os repórteres Adriano De Lavor e Luiz Felipe Stevanim e o fotógrafo Eduardo de Oliveira estiveram em Roraima para acompanhar a crise vivida pelos Yanomami em razão da falta de assistência e pela invasão do garimpo em suas terras. Ao longo desta edição e nas próximas, você confere as reportagens produzidas como resultado desse trabalho.

O fotógrafo Eduardo de Oliveira e os repórteres Adriano De Lavor e Luiz Felipe Stevanim acompanharam durante 10 dias as respostas à Emergência Yanomami, em Roraima. — Foto: Divulgação.

Testemunhas da crise

Naquela manhã de 6 de março, a equipe da Radis começava a acompanhar de perto as ações do COE, em Boa Vista, e a testemunhar a complexidade que é planejar, executar e monitorar ações em um território onde atuam inúmeros atores e onde se vive uma situação de calamidade — resultado da ausência e da negligência do Estado e de respostas insuficientes a demandas há muito reclamadas por lideranças indígenas.

Na reunião, que acontecia na sede do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami e Ye`kuana (DSEI YY), profissionais de diferentes instituições que foram deslocados à capital de Roraima discutiam com colegas, em Brasília, de forma virtual, temas como a estruturação de um centro de assistência à saúde no polo base de Surucucu, o incremento de ações contra a malária e tuberculose nas comunidades, além do início de uma campanha de imunização na Casa de Saúde Indígena (Casai), também situada em Boa Vista [Leia a matéria clicando aqui].

A rotina dos profissionais que circulam por aquela sala, com múltiplos mapas e diagramas, no entanto, é mais ampla e desafiadora. Em um trabalho conjunto, técnicos de diferentes ministérios, como Saúde, Povos Indígenas, Defesa e Desenvolvimento Regional, profissionais do DSEI YY, pesquisadores, voluntários da Força Nacional do SUS e de outras instituições, como Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), além de representantes de organizações indígenas e de universidades, tentam equacionar a difícil tarefa de atender às demandas emergenciais, ao mesmo tempo em que se deparam com problemas crônicos de infraestrutura, logística e de recursos humanos.

Todos os dias, aviões de pequeno porte levam e trazem equipes de saúde, pacientes, medicamentos e insumos na TIY. — Foto: Eduardo de Oliveira.
Indígena aguardando avião de pequeno porte o levar para Território Indígena Yanomami.

O tamanho da Emergência

A Terra Indígena Yanomami (TIY) é a maior do país, com 96,6 mil quilômetros quadrados, uma área aproximadamente do tamanho de Portugal. O território se estende por parte dos estados de Roraima e do Amazonas e ali vivem 31 mil Yanomami [veja quadro clicando aqui].

É na sala do COE que o diagnóstico dado pelas próprias lideranças indígenas sobre os problemas na TIY se torna roteiro de uma série de medidas que visam minimizar os impactos à saúde das pessoas que vivem na região, seja requalificando a estrutura física dos 37 polos base — muitos deles completamente destruídos por garimpeiros — seja reorganizando a força de trabalho e a assistência prestada em área indígena e na Casai.

Também é onde se monitora a remoção de pessoas doentes para Boa Vista, driblando as dificuldades de logística — o acesso ao território, em quase a sua totalidade, é feito apenas por via aérea. Em muitos lugares, as pistas estão em péssimas condições, o que impede que aviões de médio e grande porte possam pousar, levando pessoas de volta para casa, profissionais, equipamentos e insumos.

O esforço é multisetorial, mas a prioridade é única: salvar vidas. “O COE não é uma instância gestora, responsável pelo serviço, nem faz uma intervenção nesse serviço; ele é uma rede de articulação interministerial e intersetorial de apoio ao serviço local, que nesse caso é federal, para garantir o enfrentamento de uma situação que não é exatamente um único agravo de saúde”, explica Ana Lúcia, que também é pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e integra o Grupo Temático de Saúde Indígena (GTSI) da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

A coordenadora destaca que a prioridade das ações, neste primeiro momento, é evitar a morte de crianças por causas evitáveis. “É uma situação estrutural, que demanda plano de gestão, logística, contratação e infraestrutura, num cenário onde ocorrem várias epidemias — que são principalmente a de desnutrição, a de malária e a de síndromes respiratórias. A tuberculose também está descontrolada, mas estas são o foco inicial”, completa.

Ana Lúcia Pontes, coordenadora do COE: a prioridade das ações, neste primeiro momento, é evitar as mortes de crianças Yanomami. — Foto: Eduardo de Oliveira.
Ana Lúcia Pontes, coordenadora do COE: a prioridade das ações, neste primeiro momento, é evitar as mortes de crianças Yanomami. — Foto: Eduardo de Oliveira.

Para alcançar bons resultados, as equipes locais do DSEI YY têm recebido o reforço de profissionais da Força Nacional do SUS (FNS). Até meados de abril, cerca de 100 voluntários já haviam passado pela região, contribuindo com os mais de 8,4 mil atendimentos médicos registrados pelo Ministério da Saúde. Novas instalações também têm sido projetadas, para que a assistência possa ser mais efetiva.

Em 14 de abril, o MS inaugurou um centro de referência em saúde indígena no polo base de Surucucu, com capacidade para tratar casos mais graves de desnutrição e malária. Até então, todos os pacientes eram removidos de avião para a capital Boa Vista.

Para se ter ideia do que representa a inauguração deste equipamento, somente em janeiro de 2023 foram efetuadas 223 remoções de doentes — 111 deslocamentos dentro do próprio território, entre aldeias mais distantes e os polos base, e 112 da TIY para Boa Vista. Também há planos para a construção de outro centro de referência em Awaris, outro polo base, conforme registrou a Agência Brasil (15/3). A medida diminuiria o tempo e os custos na assistência aos doentes que não podem ser tratados em área indígena. Em muitos casos, por conta das restrições para voos noturnos e com tempo nublado, pessoas em situação mais grave não resistiram.

O desafio é grande e complexo, mas já registra avanços, considera Ana Lúcia. Ela reconhece as dificuldades, mas destaca o compromisso de diferentes setores do governo em se responsabilizar pela resposta à crise. Diante disso, sinaliza como avanço o planejamento de melhores condições de trabalho para profissionais que atuam no território — o que trará melhorias no atendimento às pessoas — e na instalação de um protocolo de recuperação nutricional grave na Casa de Saúde Indígena, algo inédito na Saúde Indígena [Radis prepara reportagem sobre o tema].

A coordenadora alerta, no entanto, que o trabalho apenas está começando pois há muito a ser feito. “Quando a gente começar a ter menos remoções e urgências em área e mortes de criança, saberemos que estamos avançando”, pondera, ressaltando que isso só vai acontecer quando for possível manter mais equipes com insumos em área e quando algumas rotinas forem constantes, como o controle da desnutrição, da malária e da Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância (AIDPI). “Se estas três ações estiverem estruturadas, vamos ter alguma tranquilidade em saber que este problema principal vai estar minimamente resolvido. Mas eu não vejo isso em curto prazo”, adverte.

Conheça a Terra Indígena Yanomami

Abrange os estados de Roraima e Amazonas

  • 31 mil indígenas
  • 37 polos base de saúde
  • 376 comunidades
  • 85% são Yanomami (ali também vive o povo Ye’kuana e indígenas isolados)
  • 60,7% dos habitantes têm menos de 20 anos
  • 6 línguas Yanomami
Dados: Ministério da Saúde
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