A crise do clima tem levado ao aumento de arboviroses, apontou a coordenadora de Vigilância e Laboratórios de Referência da Fiocruz, Tânia Maria Peixoto Fonseca, em vídeo publicado (24/4) no perfil oficial da Fiocruz, no Instagram. Ao observar o componente socioambiental da doença, a pesquisadora disse que 50% da população mundial está exposta à dengue. “O mosquito também se adaptou. Os ovos da fêmea podem ficar até um ano num ambiente seco e eles vão esperar qualquer oportunidade de água para eclodir”.
O clima mudou e o planeta virou um criadouro de mosquitos e vetores que se espalham em velocidade assustadora. Além da dengue, chikungunya e zika, já foram identificados casos de febre oropouche e mayaro no meio urbano, doenças antes restritas às regiões de florestas. Em 2019, pesquisadores da Universidade Federal de Goiás (UFG) identificaram o vírus mayaro em pacientes residentes em área urbana de Goiânia e, em alguns casos, detectaram a co-infecção com o vírus da dengue.
Renata Gracie, pesquisadora do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), observa que desastres causados por ondas de calor, inundação e seca impactam na saúde das populações porque alteram o ambiente. “Temos mais ondas de calor e, logo após, há chuvas intensas e inundações. Quando ocorre seca, surgem impactos no abastecimento das populações e há dificuldade de cultivo, o que leva, por exemplo, a repercussões nas questões alimentares”, declarou à Radis.
A pesquisadora lembra que as inundações podem favorecer o aparecimento de doenças como cólera, leptospirose, dengue, chikungunya, hepatite A, entre outras. Já as ondas de calor causam maior impacto em pessoas com problemas cardíacos, diabetes e questões geniturinárias, e algumas situações mais graves podem levar até à morte. Com relação aos impactos indiretos, ela aponta que há perda na biodiversidade e nos biomas e alterações nos ciclos biogeoquímicos que acabam gerando outras questões de saúde.
Como exemplo, ela citou à Radis que as queimadas são um impacto indireto das alterações na biodiversidade, essencial para ecossistemas saudáveis, levando ao aumento de vetores de transmissão de muitas doenças. Com relação às queimadas, ela observa que há registros principalmente de problemas respiratórios. “Ocorrem intoxicações e alguns estudos já mostram resultados com relação a carcinomas”, explicou.
Entre os impactos diretos, a pesquisadora citou problemas de saúde mental e de acompanhamento das populações, já que as unidades de saúde são afetadas pelos desastres. “É um efeito em cadeia. Se a unidade de saúde deixa de prestar atendimento, não ocorre a distribuição dos medicamentos e isso impacta também nas doenças crônicas”, afirmou.
Estabelecimentos de saúde
Para a professora Eliane Lima e Silva, da Universidade de Brasília (UnB), um dos principais desafios no contexto das mudanças climáticas é contar com serviços ou estruturas de saúde preparadas para lidar com os eventos decorrentes dos desastres. “Além de ter um serviço de saúde preparado, ele também precisa ser resiliente, porque secretarias de saúde e municípios têm passado por um aumento de demanda. É essencial que o SUS, em todas as suas esferas de gestão, esteja com uma estratégia organizada para fortalecer a capacidade de atuação”, salientou à Radis.
Para cada um dos cenários que resultam de alterações no clima, devem ser considerados investimentos em políticas públicas para a resiliência dos estabelecimentos de saúde. Carlos Machado, pesquisador do Cepedes/Fiocruz, disse à reportagem que o setor de saúde tem um importante papel para atendimento, cuidado e vigilância da saúde das populações expostas aos desastres. “É preciso minimizar as consequências desses eventos extremos e auxiliar a população, ou seja, pensar a resiliência do sistema de saúde, o que envolve a sua capacidade de sofrer o impacto: não só resistir, mas se adaptar”, explicou.
Carlos Machado avaliou que a volta à normalidade de um estabelecimento implica em investimentos em trabalhadores, na qualificação em tecnologias, no mapeamento dos serviços e das áreas de riscos. Para ele, depois de um desastre, é preciso investir na melhoria de infraestrutura, água e energia e realocar algumas unidades de saúde para locais mais seguros, o que envolve um planejamento de curto, médio e longo prazo. Uma pesquisa dimensionou o impacto econômico dos desastres no sistema de saúde, e mostrou que quase R$ 4 bilhões foram perdidos entre 2000 a 2015.
Não basta reconstruir as unidades nas mesmas bases de antes do desastre se elas estiverem em locais de risco. O mapa dos estabelecimentos de saúde e áreas de risco produzido pelo Observatório de Clima e Saúde, da Fiocruz, ressalta a importância do planejamento ao mostrar a concentração de unidades de saúde em áreas centrais que foram atingidas pelas inundações em Porto Alegre e que podem deixar de prestar atenção adequada às pessoas atingidas e afetadas de alguma forma.
Doença multifatorial
Junto com a urbanização desenfreada, a crise e o acesso à água potável, as ondas de calor, a poluição atmosférica e a falta ou inexistência de saneamento favorecem a disseminação de doenças. O mosquito Aedes aegypti prolifera em meio à proposta de universalizar o saneamento básico, que tem metas a serem cumpridas até o fim de 2033, e que vão garantir que 99% da população do país tenha acesso à água potável e 90% ao tratamento e à coleta de esgoto. Ainda não se sabe se as metas serão cumpridas.
Um estudo realizado pelo pesquisador Christovam Barcellos, do Observatório de Clima e Saúde, do Icict/Fiocruz, mapeou dados entre 2000 e 2021 e observou que a ocorrência de eventos climáticos extremos e a degradação ambiental foram fatores decisivos para a expansão da dengue. O Cerrado, que sofre com desmatamento e queimadas, está entre as áreas mais afetadas. Mesmo regiões como Sul e Centro-Oeste, onde a doença não era comum, registraram alta incidência de dengue no início de 2024.
Segundo o pesquisador, a tendência de expansão da dengue acontece desde 2020. A diferença é que se, antes, havia cinco dias de anomalia de calor, agora, são 20 dias ou mais acima da média ao longo do verão, o que dispara o processo de transmissão de dengue, devido não só ao mosquito, mas também à maior circulação de pessoas. Para piorar o quadro, regiões com altitudes elevadas, que antes funcionavam como barreira para a transmissão, tornaram-se áreas de altas taxas de incidência.
Christovam avalia que, embora a crise climática seja global e evidenciada por conta da temperatura, ela se manifesta de formas diversas nos territórios. Segundo ele, há influência de fatores como as características físicas da vegetação e da organização social e econômica de quem vive em cada lugar. “A nossa tarefa agora é entender essas vulnerabilidades e criar políticas públicas voltadas para a proteção contra as mudanças climáticas, que estão atingindo muito mais populações vulneráveis, como ribeirinhos, sertanejos e favelados”, observou à Radis.
Para o pesquisador, as pessoas vulnerabilizadas devem ser ouvidas no debate sobre a mudança climática, ainda dominado por organismos internacionais e cientistas. Esse processo participativo, chamado de governança climática, deve levar em conta os direitos das pessoas e as regulamentações que as protegem para a elaboração de políticas públicas“E nós, pesquisadores, devemos entender o que ocorre e ajudar tecnicamente e tecnologicamente as populações vulneráveis”, salientou. Ele aponta também que, do território, saem alternativas interessantes, como a agroecologia ou a adaptação de favelas, áreas geralmente desprovidas de cobertura verde, com alta densidade de população e vulneráveis para várias doenças, não só a dengue.
Everton Pereira, coordenador do eixo de Direito Urbano Socioambiental da organização Redes da Maré, entende que há uma negação do debate sobre mudança climática nas favelas. Morador do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, ele disse à Radis que o debate ainda é “embrionário” nessas localidades, que abrigam uma parcela da população que mais sofre os impactos.
“Há uma tendência em olhar a favela a partir da carência, do que falta, e não de suas potências. A gente tem a potencialidade para fazer essa discussão, mas ela precisa sair um pouco do ambiente acadêmico e ir um pouco mais para a favela. A gente tem trabalhado muito nesse sentido de comunicar e provocar o debate, de fazer formações principalmente com a juventude e a criançada nas escolas, para que isso se torne uma pauta recorrente nos contextos de favela”, apontou.
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