A água invadiu municípios do Rio Grande do Sul, fez das ruas correnteza, inundou e arrastou o que tinha pela frente. Nas imagens divulgadas no Brasil e no mundo, foi possível ver a população atônita diante da destruição. Pessoas e animais foram tragados pelo avanço de rios e afluentes, muitos ficaram ilhados e esperaram pelo socorro incerto. Como a água demorou a descer, era difícil para os moradores dimensionar o que tinham perdido ou restado de suas casas. O nível do Guaíba, que banha a capital Porto Alegre, subiu acima do esperado, ultrapassou os muros de contenção e invadiu bairros da cidade. Dez dias foram estimados para que suas águas baixassem.
Em 13 dias, 414 de 496 municípios registraram algum tipo de estrago, com proporções desiguais, o que levou ao decreto de calamidade pública válido por 180 dias. Houve falta de luz e água, interrupção dos serviços de telefonia e internet, dificultando os resgates e levando à especulação em itens básicos de sobrevivência, como água potável e comida. O cenário era de desesperança, dor e incredulidade frente a mais um evento climático extremo que, desta vez, arrasou a maior parte do Rio Grande do Sul, estado que registrou inúmeros episódios anteriores de cheias. Porém, até então, nenhuma delas havia atingido tantas localidades e afetado de forma tão intensa a vida de tantas pessoas.
A chuva que começou em 26 de abril deixou 48 mil pessoas em abrigos, quase 130 mil desalojados e 291 feridos, além de ter afetado 1 milhão e quatrocentas mil pessoas, segundo balanço da Defesa Civil em 7/5. Até essa data, foram registrados 131 desaparecimentos e 90 vítimas fatais. As buscas continuaram numa corrida contra o tempo. Numa situação sem precedentes, o município de Eldorado do Sul, distante 49 quilômetros de Porto Alegre, foi inundado e, sem ter para onde ir, 2 mil pessoas esperaram por comida e abrigo nas proximidades de uma rodovia, na noite de 6/5, em uma situação de refugiados ambientais.
A chuva deu pouca trégua e dificultou o trabalho de resgate num cenário que lembra a destruição provocada por uma guerra. Resgatar e realocar pessoas, contabilizar prejuízos, buscar mortos e desaparecidos, procurar destroços em casas que ruíram sob o peso da água e da lama foi o que se viu após o desastre no estado. Via de regra, é essa a cartilha que vem sendo seguida em locais arrasados por fenômenos climáticos extremos.
A catástrofe enfrentada pelos gaúchos, mais uma no cenário nacional, revela, sobretudo, a responsabilidade de gestores públicos para que, em vez de negar o curso da mudança climática e buscar reconstruir locais impactados sem considerar os riscos, implementem políticas públicas de adaptação e mitigação ao clima.
Nesta edição, Radis preparou um guia para que nossos leitores compreendam os impactos das mudanças climáticas, um problema que pede atenção urgente de todos os níveis do poder público e da sociedade civil. Uma questão que, por sua escala e intensidade, já é considerada uma das maiores ameaças à vida, ao bem-estar e à saúde individual e do planeta e afeta, sobretudo, as populações mais vulnerabilizadas.
A meta para conter o aquecimento global
As chuvas extremas no Sul do Brasil espelham o futuro do que vai acontecer em todo o país caso nada seja feito. “É mais do que previsto que vai aumentar a taxa de chuvas e de eventos climáticos extremos. Precisamos estruturar políticas públicas”, disse à Radis o pesquisador Paulo Artaxo, que defende que a sobrevivência da vida humana vai depender das medidas que serão tomadas para reduzir as mudanças no clima.
Paulo Artaxo é físico, climatologista e membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e integrante do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que reúne os cientistas mais importantes do mundo para monitorar e assessorar a ciência global frente às mudanças climáticas.
O IPCC produz relatórios com o conhecimento científico sobre mudança climática, impactos, riscos generalizados e possibilidades de mitigação e de adaptação. As informações divulgadas não são as melhores, segundo o cientista. A meta estipulada pelos governos é evitar que as temperaturas fiquem acima de 2° C, mas o sexto e último Relatório de Avaliação do IPCC (AR6), divulgado em março de 2023, mostra que o ritmo e a escala da ação climática proposta pelos países são insuficientes para enfrentar os resultados dessas alterações.
Sem resultados práticos, as modelagens climáticas apontam para tragédias como a enfrentada pelo Rio Grande do Sul. Se o planeta continuar esquentando no mesmo ritmo, ondas de calor extremo, tempestades, inundações e secas vão ocorrer em um intervalo menor e com mais intensidade. Esses episódios vão se tornar cada vez mais recorrentes e conhecidos, não só dos brasileiros, amplificando ainda mais os riscos para a saúde humana e os ecossistemas.
De acordo com Paulo Artaxo, os estudos climáticos revelam que a precipitação, que é o vapor de água presente na atmosfera, vai aumentar no Sul, trazendo chuvas e inundações, e diminuir na Amazônia e no Nordeste, provocando períodos de grandes secas. Com avanços tímidos e pouco eficazes, a situação será agravada rapidamente, e serão cada vez mais somadas catástrofes, perdas e prejuízos.
A Ciência mostrou que, com o aquecimento global de 1,1°C, já ocorre a elevação do nível do mar e a diminuição da cobertura de gelo no Ártico. Ainda, uma atmosfera um grau mais quente consegue reter em torno de 7 a 9% mais de vapor d’água que uma atmosfera mais fria. Ou seja, chove mais e em menos tempo. Para complicar a situação, há o efeito simultâneo de El Niño e La Niña, fenômenos naturais que alteram a temperatura do Oceano Pacífico e causam muito sol, com seca, ou muita chuva, com inundações, a depender da região afetada. Um pacote completo que leva direto ao caos.
A humanidade e a natureza estão conectadas
Os registros globais do clima foram iniciados em 1850 e um estudo do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemadem) mostrou que 2023 foi o ano mais quente em 174 anos. Neste ano, ocorreram 1.161 eventos climáticos em 1.038 municípios monitorados pelo Cemadem. São capitais e regiões metropolitanas onde vivem 55% da população nacional.
O Cemaden foi criado depois da tragédia na Região Serrana do Rio de Janeiro, em janeiro de 2011, que deixou quase mil pessoas mortas, 100 desaparecidas e cerca de 35 mil desabrigados. A cidade de Petrópolis foi uma das mais atingidas por esta tragédia. Treze anos se passaram e as águas de março de 2024 encontraram a população ainda traumatizada, ceifaram a vida de outras quatro pessoas, sendo três da mesma família, e 90 pessoas foram resgatadas.
Como a realidade está sendo pior do que a previsão feita na década de 70 e 80, Paulo Artaxo avaliou que qualquer atraso em uma ação global, coordenada e conjunta, levará a perda de uma breve janela, que se fecha rapidamente, para assegurar um futuro habitável. Segundo o cientista, não basta reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE), mas é preciso mudar o modelo econômico, que é baseado em concentração de renda, exploração e destruição dos recursos naturais.
“Ele não é sustentável sequer a curto prazo. Estamos rompendo essa conexão vital entre nós e o planeta. O planeta vai continuar a sua trajetória, mas talvez ele seja obrigado a deixar para trás uma espécie predatória que não deu muito certo. Isso já aconteceu antes, pode acontecer de novo”, sentenciou Artaxo, em aula pública na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fiocruz, em março de 2024.
A resposta da natureza ao impacto humano
O Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) revela que, entre agosto e novembro de 2023, ocorreram seis ondas de calor e o Brasil registrou média de três eventos climáticos por dia. Um recorde, segundo o Cemadem, que afirmou em Nota Técnica (NT), em 6 de março, que o segundo semestre de 2024 promete novos fenômenos e novas catástrofes.
Se todos são atingidos pelas alterações do clima, nem todos sofrem os impactos da mesma forma. Segundo o relatório do IPCC, são as pessoas vulneráveis e os ecossistemas “especialmente difíceis”, que contribuíram em menor escala para as alterações climáticas, que têm sido desproporcionalmente afetados por seus efeitos. Especialistas apontam que a desigualdade está na raiz da crise e é necessário promover a justiça climática [Radis 257, fevereiro 2024].
Em junho de 2023, um ciclone extratropical atingiu o Rio Grande do Sul e passou por Maquiné, a 129 quilômetros de Porto Alegre, e seus quase 7,5 mil moradores. A cheia fez com que 80% da cidade ficasse ilhada. Naquele momento, um abaixo-assinado dos moradores alertava que, mais do que catástrofes naturais, esses eventos representavam “a força da Natureza em restabelecer seu curso, suas leis e impor a necessidade de respeito” e pedia “planos de recuperação e prevenção”.
Em maio de 2024, as águas invadiram novamente Maquiné. Levantamento da Prefeitura mostrou que houve queda de pontes, localidades isoladas, 300 km de estradas danificadas, comunidades sem água e luz e havia 150 pessoas desabrigadas em 6/5. No distrito de Barra do Ouro havia cerca de 1,8 mil pessoas isoladas, com pacientes oncológicos e pessoas sem acesso à hemodiálise.
A alteração da composição da atmosfera
A mudança no clima não se deu de uma hora para outra. Ao longo do tempo, é possível observar o dedo e a ação humana, mais precisamente, há pelo menos 125 mil anos, como pontuou Artaxo, ao dizer que o clima, antes, era alterado apenas por questões geofísicas. “O aumento significativo de emissões [de gases de efeito estufa] quer dizer que uma espécie, entre as milhares de espécies no planeta, adquiriu uma propriedade que é mudar a composição da atmosfera terrestre”, observou.
O relatório do IPCC sublinha a urgência de tomar medidas mais ambiciosas e mostra que uma ação imediata ainda pode garantir o futuro sustentável e habitável para a humanidade. Essa é a “janela” que está fechando a que Paulo Artaxo fez referência, e que precisa ficar aberta para proporcionar a manutenção da vida. O cientista usou também outra metáfora ao falar que o mundo vive uma “encruzilhada”. Há saídas que vão depender do caminho que será escolhido. Segundo o cientista, elas devem ser baseadas nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Organização das Nações Unidas (ONU).
Em entrevista à Radis 253 (outubro de 2023), Carlos Machado, coordenador do Centro de Estudos para Emergências e Desastres em Saúde (Cepedes/Fiocruz), avaliou que o Brasil avançou pouco e experimentou retrocessos significativos nos últimos anos. O país não está conseguindo alcançar o objetivo de manter o aumento da temperatura do planeta em até 1,5°C comparado a níveis pré-industriais. Para ele, o limite foi ultrapassado. O pesquisador defendeu um pacto global baseado na equidade entre os países para alterar modelos de desenvolvimento sustentados em produções poluentes e geradoras de desigualdades sociais e ambientais.
Os acordos do clima e a saúde no centro
Se há muito os cientistas alertavam sobre a mudança climática, vale pontuar que céticos, descrentes e plantadores de informações mentirosas contrariavam a Ciência, apesar de todos os fatos apresentados nos últimos anos. Os alertas foram comprovados, entre outros, nos relatórios das Conferência de Estocolmo sobre Meio Ambiente Humano, em 1972, da Rio 92 e Rio+20, do Protocolo de Quioto, em 1997, e das Conferências do Clima das Nações Unidas, a COP 26, na Escócia, COP 27, no Egito, e COP 28, nos Emirados Árabes, realizadas em 2021, 2022 e 2023, respectivamente. “Se nada for feito, vamos ter COP 29 e COP 30, sem resultados”, observou Artaxo.
O que é a COP? A sigla vem de Conferência das Partes, que congrega os países da ONU em conferências mundiais para tomar decisões coletivas e consensuais sobre temas relacionados à mudança do clima. É por meio desses encontros que são pactuados acordos internacionais que buscam soluções concretas e imediatas para reverter o caos climático. Artaxo pontuou que, pela primeira vez, a COP 28 — em Dubai, nos Emirados Árabes — dedicou um dia da programação à Saúde. Para ele, foi um reconhecimento de que saúde pública, transição energética e mudança do clima são temas correlatos que devem ser trabalhados em unidade e com equilíbrio.
O Brasil vai sediar a COP 30, em Belém, no Pará, entre 10 e 21 de novembro de 2025, região que é considerada o pulmão do mundo. O país já faz a sua preparação e o governo ressalta a importância de discutir a Amazônia dentro da Amazônia. Apesar das intenções, em abril de 2024, o Brasil ainda não apresentou uma estratégia de como vai fazer a necessária transição energética e reduzir ou substituir o uso de combustíveis fósseis, principal agente causador das mudanças climáticas.
Vinte anos atrás, em 27 de março de 2004, o Brasil viu o pânico da população de Santa Catarina e de parte do Rio Grande do Sul quando o Ciclone Catarina atingiu a costa com velocidade de furacão. Seu rastro deixou 11 pessoas mortas e 33,1 mil desabrigadas. Mais de um milhão de catarinenses foram afetados e os prejuízos econômicos ultrapassaram R$ 850 milhões. De lá para cá, a reconstrução dos locais atingidos foi feita nas mesmas bases, sem debate público e sem investimento em ambientes com resiliência climática, com sistemas adaptados e resistentes.
O mundo está perto do esgotamento climático
O relatório do IPCC diz que “a menos que haja reduções imediatas, rápidas e em grande escala nas emissões de GEE, limitar o aquecimento a 2,0° C pode ser impossível”. Esse parâmetro está acima do consenso estabelecido entre os países da ONU no Acordo Climático de Paris, um tratado internacional sobre mudanças climáticas, adotado em 2015, que visou limitar o aquecimento global a 1,5° C em níveis pré-industriais.
Diversos estudos científicos mostram também que, no ritmo das atuais emissões de carbono, o mundo pode enfrentar o esgotamento climático antes do previsto pelos acordos internacionais. Meio grau pode parecer pouco, mas, para o IPCC, reduziria significativamente os riscos e os impactos da mudança do clima, algo que, na visão de Paulo Artaxo, é “absolutamente impossível” de acontecer devido à lentidão das medidas tomadas pelos governos.
“Num cenário otimista de a gente limitar o aumento médio da temperatura em 3° nas cidades nós podemos ter um aumento de temperatura da ordem de 5° C. Isto é o que nós estamos construindo para a população que vai viver em áreas urbanas no futuro”, disse Artaxo. A saída apontada é neutralizar o carbono e reduzir as emissões em 7% ao ano, entre 2020 e 2050. Depois, entre 2050 e 2100, deve ser feita a remoção do CO2 da atmosfera. “Essa é a tarefa hercúlea que a gente tem que fazer”, afirmou.
Para o cientista, é possível fazer essa transformação, apesar das oposições como as de empresas produtoras de petróleo. “Esse embate é importante para todo mundo se conscientizar que um punhado de indústrias está levando 8 bilhões de pessoas para o pior cenário”, salientou. “São 30 a 40 empresas de petróleo que lucram de 4 a 5 trilhões de dólares por ano que estão causando todo o problema apontado pelo IPCC”.
A geração de poluentes é um problema de todos
A emergência climática é provocada principalmente pelo uso insustentável e desigual de energia e da terra e uso intensivo de combustíveis fósseis à base de carbono, como petróleo, carvão mineral e gás natural. Quando queimados para gerar energia, em atividades industriais, na agropecuária e em outras finalidades, eles liberam poluentes responsáveis por 80% das emissões de gases do efeito estufa.
Paulo Artaxo salientou que, a cada ano, são jogadas 60 bilhões de toneladas desses gases continuamente na atmosfera e eles são os responsáveis por absorver a radiação ultravioleta, causando um aumento da temperatura do nosso planeta. O pesquisador explicou que o foco atual é o controle do dióxido de carbono, CO2, responsável por 64% das emissões de GEE, e que, em breve, será feito também o controle de outros gases, como o metano e o óxido nitroso.
A emissão de GEE cresce cerca de 2% a 4% a cada ano, disse o pesquisador. Desde 2000, países como Índia e China aumentaram suas emissões enquanto os Estados Unidos e a Europa conseguiram reduzi-las, como mostram os dados do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). Ele lembrou que essas informações ainda deixam de fora a participação do continente africano como, há 20 anos, também excluíam a Índia. “Temos que olhar essa mudança de forma mais ampla do que a gente olhava há uma década”, salientou.
São os países desenvolvidos que geram a maior parte dos efeitos poluentes e o Brasil é o 7º maior emissor de gases de efeito estufa, o 4º em emissões per capita e o 6º em emissões históricas. “É uma falácia dizer que esse é um problema dos países desenvolvidos. Nós estamos entre os dez maiores culpados por esta situação. Queira ou não queira, goste ou não goste”, disse.
Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança Climática, destacou “o tempo perdido” desde a Rio 92 e assumiu que “não houve trabalho preventivo para minimizar os efeitos do clima”. Em entrevista à Radis [Radis 259], a ministra afirmou que nenhum país consegue mudar a matriz energética da noite para o dia. “O Brasil, ao longo desses anos, conseguiu ter uma matriz energética 43% limpa e uma matriz elétrica quase 90% limpa. Mas, mesmo assim, ainda tem um espaço de mudança”, avaliou.
A pauta ambiental continua a ser ignorada
O Serviço Geológico Brasileiro estimou, em 2023, que quase 4 milhões de brasileiros viviam em áreas de risco em um mapa que cartografou 1,6 mil cidades. Em 2 de maio de 2024, ao analisar o problema enfrentado pela população gaúcha, Marina defendeu a decretação de um estado de emergência climática permanente em 1.942 municípios do país suscetíveis a eventos climáticos extremos.
De acordo com a ministra, é preciso implementar duas frentes de combate a desastres naturais, com uma ação emergencial e estruturante que saia da lógica da gestão do desastre para a lógica da gestão do risco. Além da ajuda humanitária e do aporte de R$ 538 milhões em emendas parlamentares, o governo federal anunciou (6/5) o lançamento de um novo sistema de alerta de desastres com avisos que vão se sobrepor aos demais aplicativos.
À Radis, Paulo Artaxo recomendou que é preciso equipar e reforçar as defesas civis da maior parte dos municípios e estados brasileiros, para que possam lidar com rapidez na luta contra eventos climáticos extremos. Focar em prevenção é também parte para que gestores saiam da inércia. Apesar de ter enfrentado episódios anteriores, não houve investimentos do governo local em prevenção contra enchentes em 2023.
Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima (OC), uma rede brasileira sobre a agenda climática, afirmou ao site da BBC que “as tragédias são resultado da falta de adaptação e de combate às mudanças climáticas, duas áreas onde os Executivos precisam fazer mais e onde o Legislativo têm promovido ativamente retrocessos”. O OC revelou, em seu site, que 25 projetos e três propostas de emenda à Constituição (PECs) tramitam no Congresso Nacional e afetam direitos consagrados em temas como licenciamento ambiental, tais como grilagem, direitos indígenas e financiamento da política ambiental. Outra informação é que apenas 1 deputada entre 513 parlamentares destinou verba de emendas para as mudanças climáticas.
A pauta ambiental, diz o OC, é ignorada também por sucessivos governos estaduais, e vai além da precipitação. Desastres estão interligados e a destruição de biomas, como o Pampa gaúcho, o Cerrado, a Mata Atlântica e a Amazônia é que leva ao colapso climático. E, enquanto o Rio Grande do Sul ainda enfrentava os impactos da tempestade e a possibilidade de novas chuvas, o OC alertou que o número de queimadas no país, um total de quase 17,5 mil focos, de janeiro a 1º de maio de 2024, é o maior da história desde o início das medições do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 1998. “As duas tragédias carregam a impressão digital da crise do clima e reforçam a urgência de falar sério sobre adaptação no país”, diz texto publicado no site do Observatório.
As mudanças globais trazidas pelo clima
Segundo Paulo Artaxo, desde o início da Revolução Industrial [1760], a concentração de CO2 aumentou 66%, de metano 259% e de óxido nitroso 123%. A maior emissão de gases vem por meio da queima de combustíveis fósseis (83%) e do desmatamento de florestas tropicais (17%), principalmente, da América Latina, da África e do Sudoeste da Ásia. “Mesmo que o Brasil faça milagres e zere o desmatamento até 2030, se não mexer nos 83% das emissões de combustíveis fósseis, bau-bau para todos”, afirmou.
Do ponto de vista de fenômenos climáticos, o futuro do planeta caminha para o lado dos extremos. “As simulações do IPCC mostram que um evento que ocorreria uma vez a cada 50 anos antes da Revolução Industrial, se a gente aquecer o planeta 3o C, vai ser 39 vezes mais frequente e vai ser cinco vezes mais intenso, que é o que a gente está começando a observar agora”, disse.
São os países tropicais, como o Brasil, que já vivem no limiar superior de temperatura, que vão sofrer os maiores impactos da mudança climática e os beneficiários serão áreas de clima temperado. “Em particular, a Rússia e o Canadá e os países da Europa. Isso vai causar mudanças significativas na geopolítica global. É um alerta para o governo brasileiro prestar mais atenção no modelo de desenvolvimento”, disse o cientista.
Maristella Svampa, pesquisadora do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet), da Argentina, apontou à Radis que o atual modelo é insustentável porque implica na mercantilização da natureza e na exacerbação da exploração de seus recursos naturais, em matéria publicada em fevereiro de 2024 (Radis 257).
É nesse cenário que o Brasil precisa se preparar para os efeitos das mudanças. Sem reduzir as emissões, o aumento médio da temperatura máxima no país vai ser de 5 a 7 graus. “Em Teresina ou Cuiabá que no verão bate frequentemente 41°, quando começar a bater 48° e 49°, o que é que nós vamos fazer para tirar essa população de lá?”, perguntou Artaxo, lembrando que o Paquistão e a Índia enfrentaram uma onda de calor recorde em 2022, o que colocou a vida de milhares de pessoas em risco.
Produção de alimentos ameaçada
Fenômenos climáticos impactam a produção de alimentos, entre tantos outros segmentos. Em função da maior frequência dos eventos climáticos extremos, a produção brasileira será menor e cientistas projetam que haverá mudanças para o cultivo de algumas áreas, pedindo adaptação também na agricultura, com forte impacto na agricultura familiar e na segurança alimentar.
O IPCC alertou que pelo menos um terço da produção de alimentos está em risco. Alimentos como milho e soja passaram a custar mais caro em 2022 por conta da crise econômica e dos eventos climáticos. Qualquer desequilíbrio em alguma etapa do processo produtivo de diferentes culturas afeta a produção e, por consequência, o preço final para o consumidor.
O estudo Aquecimento Global e Cenários Futuros da Agricultura Brasileira, fruto da colaboração entre Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), com apoio da Embaixada do Reino Unido, prevê que a mudança no clima global poderá provocar alterações significativas no mapa da agricultura brasileira, gerando a redução de áreas produtoras e prejuízos econômicos de cerca R$ 14 bilhões em 2070.
Caso nada seja feito, o solo degradado deve obrigar a realocação dos plantios de alguns alimentos tradicionais em determinadas regiões. A falta de chuvas fez com que 2023 registrasse os índices de precipitação mais baixos dos últimos 40 anos. Cerca de 30% dos municípios brasileiros apresentaram pelo menos um mês de condição de seca severa, extrema ou excepcional neste ano.
Em outubro de 2023, 59 dos 62 municípios da Amazônia estavam em situação de emergência. “A impossibilidade de navegação em muitos rios impediu o abastecimento das populações. Desde alimentos até o fornecimento de energia, além de, obviamente, aumentar o risco de incêndio”, como declarou Osvaldo Moraes, diretor do Departamento para o Clima e Sustentabilidade do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, ao site do MCTI.
Para ver a aula inaugural da Ensp/Fiocruz, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=rEHjzUY1OqY&t=220s
Impactos no sistema produtivo
- Pecuária: embora o modelo de agronegócio gere grandes impactos ambientais, a criação de animais também sofre as consequências da combinação de temperaturas mais altas, variação da precipitação, concentração de CO2 atmosférico e disponibilidade de água. Alguns impactos são a diminuição da oferta e o aumento do preço de carnes, problemas na reprodução, na saúde animal e na qualidade das pastagens, além do aumento de doenças.
- Agricultura familiar: eventos como estiagens e inundações impedem a produção de alimentos que, muitas vezes, são a única fonte de renda e a base da alimentação familiar.
- Polinização: afetada, principalmente, pelo aumento de patógenos mais virulentos, como o fungo Nosema cerana, que se prolifera em temperaturas mais altas.
- Aquicultura: inundações trazem perda na produção, mais risco de doenças, algas tóxicas e parasitas, aumentam o risco de eutrofização (ausência de oxigênio na água, que leva à morte de plantas e animais) e podem provocar a escassez das sementes silvestres.
Para entender as mudanças no clima e a produção de alimentos
- Quando há estiagem, a safra de milho é prejudicada (tanto para a colheita do grão quanto para o corte da planta).
- A ração e a silagem (milho picado e fermentado), usados para a alimentação do gado, têm custo maior e com menos qualidade devido à falta ou ao excesso de chuvas. O frango também é afetado por essas mudanças climáticas, pois a ração, que é a base da alimentação, é feita de milho, cujo custo fica maior.
- Os preços do leite, dos ovos, da carne de gado e do frango aumentam em razão da estiagem ou do excesso de chuvas. Nos mercados, nem todo mundo consegue comprar itens básicos da alimentação por conta da alta dos preços.
Fonte: UFSM
Desastres no Brasil – 1991 a maio de 2024:
- 68 mil ocorrrências
- 5.142 mortes
- 10 milhões de desabrigados e desalojados
- 233 milhões de afetados
- 132 bilhões em danos totais
- 570 milhões em prejuízos
Fonte: Atlas Digital MDR
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