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Este texto foi produzido em uma oficina com comunicadores populares selecionados pelo edital “Como se proteger do coronavírus — Programa de Reportagem”, uma parceria entre o Observatório de Favelas e a Fiocruz. Saiba mais aqui.

No Brasil, a expressão “casa de família” desenha uma linha do tempo marcada por mais abusos do que afeto, e a relação com as trabalhadoras de serviços domésticos é muitas vezes a maior fonte de manutenção dessa toxicidade. A notícia sobre a covid-19 chegou em meados de fevereiro de 2020, instaurando desespero em grande parte da população que, por sua vez, ia perdendo familiares, pessoas amigas, colegas de trabalho e suas próprias vidas.

Enquanto as informações chegavam ainda sem dados concretos e emaranhadas de falsas notícias, era a população trabalhadora, sobretudo a que morava distante dos grandes centros e consequentemente de seus locais de trabalho, que tentava encontrar um caminho seguro para não perder seus empregos. Era essa parcela da população que enxergava, a olho nu, de forma fria e paralisadora, as desigualdades que agora se mostravam ainda mais latentes, expostas e assustadoramente dolorosas.

Se de um lado trabalhadoras se movimentavam para obter informações sobre seus direitos, outras sequer conseguiam assimilar a possibilidade de um cenário em que houvesse a opção de ficar em casa se resguardando. Afinal, trabalhavam nas conhecidas “casas de família” — como se as suas próprias casas não fossem sequer dignas de tal nomenclatura. Cumpriam assim a difícil tarefa de se manter em pé, na corda bamba para driblar a fome, enquanto faziam de tudo para olhar minimamente para a área que mais precisava de atenção: a saúde.

Para trabalhadoras do serviço doméstico, principalmente as que exercem a função de maneira informal, a opção de estar “segura” em casa frente a uma pandemia se apresentava como uma proposta fora da realidade. Diante dessas incertezas e medos, inúmeras histórias foram atravessadas pelo desemprego sem aviso prévio ou por abusos reforçados frente às tentativas de sobrevivência, que disputavam espaço com diversas ausências de direito — não só trabalhistas, mas também de garantia à vida.

A história de Lenice

— Foto: acervo pessoal.

O Brasil contabiliza, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 7 milhões de trabalhadoras domésticas com histórias que se cruzam em algum ponto, tornando essas jornadas muitas vezes mais parecidas do que podemos quantificar.

Conversamos com algumas mulheres que vivenciaram de perto essas angústias que o coronavírus e seus efeitos colaterais causaram. Uma delas é Lenice Valdevino, de 49 anos. Nordestina de Campina Grande (PB), ela é moradora da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, desde os anos 90, quando se casou e veio morar no bairro Pantanal, em Duque de Caxias, onde vive com sua família.

Trabalhadora doméstica desde quando chegou no Rio, Lenice relata que foi durante o início da pandemia que teve a maior dificuldade em conseguir um emprego, algo que até o final de 2022 ainda não tinha mudado de cenário.

No começo da pandemia, em 2020, você estava trabalhando em alguma casa?

Sim, eu estava trabalhando fixa em algumas casas, uma vez na semana, e de 15 em 15 dias, mas essas diárias foram suspensas bem no início, quando a covid-19 foi comunicada. Somente no início de 2021 que os trabalhos começaram a voltar, mas logo foram suspensos novamente com o aumento dos casos.

Você se sentiu acolhida de alguma forma pela pessoa da casa que lhe contratou?

Durante a pandemia, das cinco casas onde eu trabalhava, apenas uma das casas me apoiou, inclusive com cesta básica, mas as demais nem sequer perguntaram como eu estava, portanto eu tratei logo de cortar relações. Foram as pessoas da Baixada que mais me apoiaram, que perguntaram e me ajudaram. Das casas com mais condições financeiras, nem ao menos perguntaram se eu estava viva ou o que eu estava passando. Até hoje ninguém me procurou.

Você sente que teve todas as informações de que precisava para se proteger do vírus?

Quando chegou a informação do lockdown, todo mundo ficou enlouquecido, com todas as coisas fechando. Teve um dia que fui pegar o trem e estávamos aterrorizadas, morrendo de medo. Foi aí que eu recebi a notícia de que as faxinas estavam suspensas. Nesse período, nós quase não recebemos informações concretas sobre como nos proteger nas ruas, a não ser pela televisão ou meios de comunicação mais abertos. Mas nos bairros próximos sinto que essa comunicação não chegou ao público.

— Foto: acervo pessoal.

Em algum momento você sentiu que seus direitos de trabalhadora estavam resguardados?

Não senti que tivesse apoio nenhum deles [governantes]. Me senti mais desvalorizada ainda na pandemia. Para falar a verdade, eu não sei o que é direito trabalhista há muito tempo e, na pandemia, então foi que me senti mais abandonada. Tudo ainda está sendo muito difícil, já que aqui em casa só quem trabalha é meu marido, e como ele já vinha desempregado há bastante tempo, o que estava ruim ficou bem pior, principalmente para manter a comida em casa. Ainda está tudo muito difícil, estamos aos poucos entrando no eixo.

Quais foram as maiores dificuldades que você enfrentou para continuar mantendo o emprego?

Nenhuma das minhas diárias eram de carteira assinada. Então, depois da pandemia, eu não fui amparada em nada. O próprio nome já diz: diária.

Você acredita que há reflexos da covid-19 ainda hoje no seu trabalho?

Nós ainda estamos em pandemia, né? E as sequelas que ela deixou foram várias, principalmente mental e financeiramente. Eu conheço pessoas da minha família que estão com sequelas da covid-19 até hoje, não sei nem como elas estão de pé ainda, pois está muito difícil.

Você conseguiu realizar algum teste de covid-19 com facilidade no seu território?

No início da pandemia, senti alguns sintomas, mas não tivemos fácil acesso aos testes. Fomos para a UPA, mas recebemos medicação e a informação de ficar em casa. Agora o acesso está bem melhor. Se você for no posto, vai ter acesso a esses testes.

Em algum momento precisou decidir entre ir se vacinar ou trabalhar?

Como eu não trabalhei durante a pandemia, acompanhar o calendário vacinal era prioridade aqui em casa. Nós queríamos sobreviver, mesmo que a gente não tivesse ainda nem dignidade de trabalho, mas sobreviver era prioridade. A gente quer viver!

A história de Alexandra

Não muito distante dali conversamos com Alexandra Santos, de 43 anos, moradora de Vila Santo Antônio, em Duque de Caxias, trabalhadora doméstica e mãe solo de três, cada um deles já em maioridade. Mas é com Gustavo, o mais novo, de 18 anos, que o seu tempo está integralmente dedicado, enquanto segue fazendo os trampos necessários para dar conta das diversas demandas do dia a dia, como manter a vida em equilíbrio para além da sobrevivência da comida na mesa.

Costureira por profissão, precisou encontrar outras formas de renda que se adequassem aos cuidados com Gustavo, que adquiriu encefalite viral aos 2 anos de idade. Foi por meio dos trabalhos informais como diarista que a jornada para completar a renda e pagar todas as contas da casa se fez possível, mesmo que completamente fora da linha da dignidade trabalhista.

Bem no início da pandemia, Alexandra relata que estava trabalhando como diarista na casa de uma senhora idosa e tinha iniciado recentemente em mais uma casa. Porém, ambas a dispensaram na semana após o início da pandemia de covid-19. Sobre a garantia de direitos, a moradora da Baixada Fluminense compartilha apontamentos sobre a luta pela garantia do que deveria ser óbvio no que diz respeito à saúde e à sobrevivência: “A gente vai reclamar pra quem? Brigar com quem? Quem vai ouvir a gente?”, ressalta.

Ao falar de acolhimento, as memórias da última casa onde trabalhou não são as melhores. Alexandra destaca que, desde que foi dispensada, no primeiro semestre de 2020, ainda aguarda a promessa de retorno ao trabalho, o que nunca aconteceu. As ajudas vieram mesmo foi da ONG onde Gustavo faz tratamento. Contudo, essa ajuda também sofreu uma queda após o primeiro ano da covid-19, já que os alimentos sofreram grande aumento, fazendo com que as doações diminuíssem.

No Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua Trimestral, referente ao quarto trimestre de 2019, do IBGE, 92,4% das 6,3 milhões de trabalhadores domésticos são mulheres, e 62% são mulheres pretas ou pardas. De acordo com o Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas (Dieese) e o IBGE, o perfil da maioria das trabalhadoras domésticas está acima dos 40 anos, com uma média salarial abaixo de um salário mínimo, criando um efeito colateral ainda maior durante a pandemia, que derrubou essa média salarial de R$ 1.016, em 2019, para R$ 930 em 2021.

Conversamos também com Maria Noeli, gaúcha, 65 anos e trabalhadora doméstica aposentada, integrante do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos desde 1993. Ela foi diretora do Sindicato das Trabalhadoras do RJ e hoje é representante internacional pela Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad). Segundo ela, mesmo que muitas trabalhadoras domésticas saibam os seus direitos, há uma grande parcela que passou a buscar o sindicato, principalmente durante a pandemia, para compreender o que de fato está garantido por lei que as possam resguardar.

Ainda de acordo com Maria Noeli, trabalhadoras diaristas, que atuam na informalidade sem ao menos pagarem a previdência, ficam em situação de vulnerabilidade, principalmente diante de calamidades públicas, como a pandemia de covid-19.

* Priscila Barbosa é moradora de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Graduanda em Pedagogia, atua como comunicadora e articuladora popular, com foco em gênero, raça e território.
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