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Este texto foi produzido em uma oficina com comunicadores populares selecionados pelo edital “Como se proteger do coronavírus — Programa de Reportagem”, uma parceria entre o Observatório de Favelas e a Fiocruz. Saiba mais aqui.

A pandemia de covid-19, causada pelo vírus SARS-CoV-2, ocasionou mais de 6 milhões de mortes ao redor do mundo e mais 700 mil mortes no Brasil até o atual momento. Além das mortes, provocou danos irreparáveis à economia global, dificultou o acesso à saúde e serviu para escancarar as desigualdades presentes na sociedade.

Desde o início da pandemia, os movimentos sociais, organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP) e coletivos populares apontam que, para as classes menos favorecidas e para as minorias sociais, o impacto da covid-19 seria ainda maior. Essas instituições reafirmaram a necessidade da transparência na divulgação da informação, incluindo os recortes de raça e gênero nos dados divulgados sobre a pandemia. Essa mobilização teve como principal objetivo prevenir as mortes do público mais afetado pela doença: a população negra e periférica.

Dados levantados e divulgados pelo Instituto Pólis apontam que, em 2021, a população negra morreu cerca de 1,5 vezes mais do que a população branca. Para ser mais específico, a projeção é de que 55% das pessoas negras internadas em estado grave por covid-19 nos hospitais vieram a óbito, enquanto apenas 34% das pessoas brancas foram impactadas pela doença nessas mesmas condições.

Entretanto, até hoje o Ministério da Saúde e as secretarias estaduais não divulgaram os dados relacionados a raça e gênero na contagem de óbitos, o que dificulta a criação de políticas para tentar diminuir a taxa de letalidade da doença para esse grupo. Vale lembrar que, desde 2017, já existe a portaria n° 344, que obriga o Ministério da Saúde a incluir dados relacionados a raça/cor em todos os documentos produzidos pelo órgão. 

A ausência dessas informações faz com que a população negra ainda continue vulnerável à doença, sobretudo no Rio de Janeiro, onde a maior parte da população negra está situada nas regiões com o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade, como nas favelas e periferias. Nessas regiões, os serviços de saúde e as condições de moradia são precários de maneira geral, o que faz com que esse público esteja mais exposto à pandemia.

Dados levantados pelo Observatório de Favelas, presentes na 12° edição do Mapa Social do Corona, apontam que os bairros com a maior concentração de pessoas negras são os lugares com o menor índice de vacinação contra a covid-19.

Homens negros: mais vulneráveis

O bairro de Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, foi considerado um dos epicentros da doença em 2020. É um dos territórios com maior concentração de pessoas negras da cidade, algo que varia entre 64% e 83%, e a taxa de vacinação na primeira dose não passou dos 78%. Já nos bairros da Zona Sul da cidade, onde a população negra representa 38%, a taxa de vacinação da primeira dose chegou a 97%. 

Isso demonstra que, no Brasil, sobretudo no estado do Rio de Janeiro, a pandemia de covid-19 não é apenas um problema de saúde, que tem como população de risco idosos e pessoas com comorbidades, mas sim um problema de grandeza sociorracial, que impacta diretamente às populações negras, indígenas e das periferias e favelas.

Quando aplicamos o recorte de gênero e raça nos dados da vacinação, percebemos que o homem negro foi o mais afetado diretamente pela pandemia. Dados apresentados pelo Observatório de Favelas mostram que, no Rio de Janeiro, o perfil mais afetado nos óbitos foram os homens negros situados nas regiões periféricas da cidade. 

Ao observarmos a campanha de imunização, ainda podemos perceber que esse público continua sendo o mais vulnerável, já que de maneira geral os homens são os que menos se imunizam no Brasil. Isso é explicado por diversos fatores que vão desde o machismo estrutural até a adesão maior desse público a temas relacionados a notícias falsas e ao negacionismo científico nos últimos anos. 

Acesso limitado

Conversei com alguns profissionais de saúde que atuam na atenção primária, ou seja, mais próximos à comunidade de maneira geral. Para esses profissionais, que inclusive são homens pretos, a figura do homem negro é o perfil que menos acessa os serviços básicos de saúde, logo se previnem e se vacinam menos. 

Para Moredson Cordeiro, agente administrativo na Coordenadoria de Atenção Primária 5.3 , localizada na Policlínica Lincoln de Freitas Filho, em Santa Cruz, a dificuldade de acesso dos homens a serviços de saúde de maneira geral pode ser explicada por várias razões. “O acesso de saúde para eles é mais limitado. Existe uma pauta cultural de que o homem não adoece, o homem é sempre forte”, avalia.

Ele acrescenta ainda a razão do emprego. “O patrão não libera o funcionário para fazer consulta, que acaba tendo medo de perder o emprego. Às vezes não tem médico, a equipe não está completa. Isso vai criando resistência ao acesso e param de procurar os serviços de saúde”, comenta.

Além desses fatores, Moredson também identifica dois problemas ainda maiores para o processo de imunização entre o público masculino nas regiões periféricas: o negacionismo e a propagação de fake news. “O maior incentivo de vacinação dos homens daqui do bairro foram as empresas que obrigaram os funcionários a tomar as vacinas. Se não fosse isso, muitos não tomariam nem a primeira dose. Acho que inclusive o maior impacto foram as fake news”, conta.

Outro limitador para que a campanha de vacinação se torne efetiva para esses grupos é a ausência de políticas de saúde voltadas especificamente para esse público. Desde 2008, existe o Programa Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem, que garante que o homem possa fazer pelo menos uma consulta anual de prevenção à saúde com dispensa do trabalho.

Entretanto, as unidades de atenção primária não incluem esse programa como uma meta, como explica Ismael Costa, enfermeiro e professor de Saúde Coletiva na Universidade Estácio de Sá. “O nosso sistema de saúde tem uma tradição de priorizar o atendimento de mulheres e crianças. Depois, quando vem a questão dos programas de hipertensão e diabetes, começou a se priorizar a população idosa. Essas foram durante décadas as populações prioritárias dos serviços de saúde”, explica. 

Ele ressalta que, ao chegar numa unidade básica de saúde, percebe-se um percentual muito pequeno de homens na faixa etária adulta. “Na atenção básica, o gerente das unidades trabalha com metas e indicadores. Só que essas metas e indicadores nunca são voltadas para a questão do homem. Estão sempre focadas nas doenças crônicas, doenças infecciosas, no pré-natal. Então o gerente naturalmente vai direcionar suas metas nesse sentido. Acaba que a gente só lembra da saúde do homem no Novembro Azul, que muitas vezes pensa só no câncer de próstata”, complementa.

A ausência de metas e indicadores sobre a saúde do homem faz com que essa pessoa seja um completo invisível para a atenção primária. 

“Todos os setores precisam se juntar na luta contra o negacionismo.”

Moredson Cordeiro

Dificuldades maiores para homens negros

Quando aplicamos o indicador de raça, a preocupação fica ainda maior. Homens negros possuem ainda mais dificuldade de acesso a serviços de saúde. Mesmo sendo os principais afetados por várias doenças como diabetes, hipertensão, infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e a própria covid-19, o foco das campanhas de prevenção não é esse público.

Para Ismael, mesmo existindo políticas que pensem a saúde da população negra e do homem negro, ainda estamos muito atrasados na implementação de práticas efetivas para a inclusão desse grupo na saúde. “Desde 2011 existe a Política Nacional da Saúde da População Negra. Essa política traz também o recorte das desigualdades sociais e informações diferenciadas para dados como cor e etnia, para que a gente possa entender as desigualdades. Essa política quer dar visibilidade a isso, justamente para mostrar que é preciso também ter esses números para saber que as nossas ações estão de fato conseguindo combater essa desigualdade”, aponta. 

Ismael destaca que ainda é preciso criar mecanismos de indução e metas para orientar as políticas. “Mas até o momento atual, não avançamos nisso. Pelo contrário, o debate sobre o racismo na saúde ainda não é enxergado de maneira séria. Logo, as políticas públicas não são aplicadas”, critica.

Já para Kelson Moraes, agente comunitário de Saúde (ACS) na Clínica da Família Faim Pedro, em Realengo, a realidade de políticas públicas que incluam a saúde do homem negro é um pouco mais dura. “Acaba que há um número considerável de homens negros com várias doenças como hipertensão, diabetes, doenças do coração etc. Porém, fala-se muito pouco sobre a saúde do homem negro, ainda mais quando se pensa em saúde mental”, pontua.

Mobilização e compromisso público

Nesse sentido, é mais do que urgente mobilizar os órgãos públicos para a garantia de direitos e programas já existentes para essa população. Se antes da pandemia era difícil mobilizar esse público, com a desinformação o desafio se tornou ainda maior, sobretudo nas regiões mais periféricas da cidade, onde as fake news encontram um terreno fértil para se propagar. 

É o que mostra o relato do enfermeiro Ismael Costa. “Eu trabalho na AP 5.3, que abrange os bairros de Paciência, Santa Cruz e Sepetiba. Santa Cruz é uma das áreas que mais têm cobertura da atenção básica da cidade, com acesso a 26 unidades básicas de saúde, e historicamente nós tínhamos boas coberturas vacinais. Por isso me surpreendeu perceber que em Santa Cruz estamos tendo tão pouca adesão às vacinas”, lamenta.

O profissional atribui essa queda na cobertura ao que define como “processo de desinformação desses últimos anos”. “Eu não sei como isso conseguiu desconstruir uma cultura de vacinação tão forte, em tão pouco tempo e com tanta facilidade. É um desafio que eu não tenho resposta. Teremos muito trabalho pela frente”, afirma.

Entretanto, mesmo com tantas desigualdades e dificuldades no processo de imunização, podemos encontrar soluções para o avanço da vacinação nesses públicos, como apontam nossos entrevistados. 

Para Kelson, uma estratégia eficiente para a mobilização seria por meio de campanhas midiáticas que trouxessem a figura do homem negro no centro. “Eu enxergo que através da mobilização, principalmente da identificação, nós podemos alcançar mais esse público. Acho que campanhas com mais representatividade fazem com que as pessoas se identifiquem e busquem se informar de forma mais próxima”, avalia.

Já para Moredson, é necessário que haja uma mobilização coletiva entre os mais diversos setores da sociedade. “Acredito que uma boa estratégia de mobilização para a vacinação seria como aconteceu no primeiro momento, se aliando com associações de moradores, igrejas, centro espíritas, para junto com as unidades de saúde conscientizar as pessoas. É nesses espaços que de fato está circulando a população. Todos os setores precisam se juntar na luta contra o negacionismo”, defende.

É necessário que o Ministério de Saúde e as secretarias estaduais e municipais assumam um compromisso público na garantia de direitos que já foram conquistados. Além disso, pensem soluções para combater as desigualdades presentes no acesso à saúde para os grupos mais vulneráveis socialmente. 

Enquanto os dados de raça e gênero não forem divulgados e não forem planejadas ações efetivas para a imunização desses grupos, a população negra continua sendo a mais vulnerável não só para a covid-19, mas para todas as violências e negligências que o Estado já direciona para nós, homens negros periféricos.

* Rudson Amorim é estudante de Comunicação Social — Rádio e TV pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É fotógrafo, comunicador popular, agente cultural e realizador audiovisual.
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