Este texto foi produzido em uma oficina com comunicadores populares selecionados pelo edital “Como se proteger do coronavírus — Programa de Reportagem”, uma parceria entre o Observatório de Favelas e a Fiocruz. Saiba mais aqui.
Cerca de 5 mil pessoas deixaram de ser vacinadas contra a covid-19 ou tiveram seu esquema vacinal comprometido, durante um período de 7 dias, devido a operações policiais na Maré, conjunto de favelas localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, segundo dados do boletim Direito à Segurança Pública na Maré.
O Centro Municipal de Saúde (CMS) Vila do João, que atende mais de 25 mil pessoas entre as favelas da Vila do João e do Conjunto Esperança, foi uma das unidades que interromperam as atividades parcial ou integralmente por pelo menos 22 dias em 2021, fato que atrasou a aplicação de centenas de doses da vacina. Na Maré, são vacinadas em média 650 pessoas diariamente para covid-19. Porém, os impactos são ainda maiores se forem levados em conta outros atendimentos.
Segundo Thiago Wendel, coordenador da área programática que compreende a região da Maré, aproximadamente 6 mil pessoas são afetadas diariamente com outros atendimentos que são interrompidos durante operações na Maré. A dimensão dos impactos da violência armada na saúde vai além do que os dados conseguem apontar, já que os danos ocorrem também na saúde mental de moradores e profissionais da saúde. As operações policiais ocasionam sobrecarga nos serviços, já que a demanda no dia seguinte fica maior, gerando ansiedade na população.
Thiago fala sobre o sofrimento que as operações policiais provocam tanto nos profissionais de saúde como na população. “Logo depois de uma operação, as clínicas ficam lotadas e o número de casos de pacientes com crise de ansiedade aumenta. Se hoje a unidade fecha, amanhã quando abrir estará lotada e a maioria dos casos são ansiedade, síndrome do pânico, aflição”, conta.
Sofrimento partilhado
Diante dessa situação, os mareenses [como são chamados os moradores do Complexo da Maré] e os agentes de saúde são afetados de forma comum, pois os profissionais têm o papel de cuidar e continuar prestando um serviço, mesmo nessas condições. Thiago categoriza o sentimento de sofrimento em três partes.
“Primeiro, porque nós somos seres humanos, além de profissionais. Somos pessoas como a própria população que está aqui. A gente tem que cuidar das pessoas, mas ao mesmo tempo não se sente seguro”, define. Outras inseguranças também afetam os profissionais, entre elas se será possível voltar para suas casas.
“O segundo sofrimento é lidar com as pessoas e com a dor delas. Por mais que o profissional, ao fechar a clínica, possa ir embora, há a preocupação com o paciente que continuará diante de uma situação de violência”, pontua. Já o terceiro sofrimento é com os 6 mil atendimentos que são afetados, em alguns casos prejudicando o plano de cuidado de pacientes com curativos, por exemplo, e impactando no tempo de seu tratamento.
As unidades de saúde da região possuem um protocolo e uma estratégia para operarem em período de confrontos violentos: o Grupo de Acesso Mais Seguro. Esse grupo é formado por profissionais que sabem lidar com conflitos, inclusive de guerra, treinados pela Cruz Vermelha, que orientam como devem atuar diante de situações de violência.
O Acesso Mais Seguro é formado por uma equipe multidisciplinar. É esse coletivo que faz a classificação diária da situação da violência armada na Maré e é quem decide o fechamento das unidades de saúde. O grupo recebe informações de outros atores do território como organizações não governamentais (ONG).
A epidemia da letalidade policial
Em 2020, o mundo presenciou a maior crise humanitária em 100 anos: a pandemia de covid-19. Ainda assim, a segurança pública foi uma preocupação prioritária para ser possível enfrentar o coronavírus. Salvar vidas é algo que há anos os movimentos sociais buscam preservar em suas mobilizações; e, ao se deparar com a pandemia, sabiam que esse seria um dos principais desafios.
Por isso, mais do que nunca, necessitava-se da suspensão das operações policiais. Moradores de favelas, coletivos, organizações e movimentos sociais perceberam a urgência dessa pauta. Até que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, determinou a suspensão da realização de operações em favelas do Rio de Janeiro durante o período de pandemia, salvo em casos de excepcionalidade, devidamente informadas e acompanhadas pelo Ministério Público.
Segundo Camila Barros, coordenadora do projeto De Olho na Maré, da organização Redes da Maré, esta decisão foi tomada liminarmente no âmbito da Arguição de Preceitos Fundamentais (ADPF) 635, conhecida como ADPF das Favelas. “De acordo com essa decisão, nos casos excepcionais de operações realizadas durante a pandemia, devem ser adotadas medidas para não se colocar a população em risco ainda maior, em termos da prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária realizadas por moradores e organizações que atuam nesses territórios”, explica.
Dados da publicação Direito à Segurança Pública na Maré, em 2020 e no primeiro semestre de 2021, mostram que aconteceram 24 operações policiais — em decorrência delas, 12 pessoas foram mortas e 84 foram vítimas de violações de direitos fundamentais. As unidades de saúde tiveram por 15 dias seu funcionamento interrompido.
Enquanto a comunidade científica se empenhava para desenvolver uma vacina para imunizar a população o mais rápido possível para a contenção do vírus e salvar vidas, mesmo com as conquistas da ADPF, ainda ocorriam operações policiais.
Uma analogia muito utilizada e difundida durante esse período era de que “estávamos todos no mesmo barco”, que logo foi criticada ao trazer à tona a desigualdade social, pois todos estavam suscetíveis ao coronavírus, mas não nas mesmas condições. Refletir sobre o que significam operações policiais nesse cenário é literalmente imaginar um barco todo furado de bala, tentando tapar os buracos para não afundar e sobreviver. [Leia matéria sobre a desigualdade social na pandemia de covid-19]
“O início da pandemia não restringiu a manutenção das operações policiais na Maré. Entre março e abril de 2020, período em que o município do Rio de Janeiro chegou próximo ao primeiro pico de contaminação pelo coronavírus, foram realizadas cinco operações policiais nas favelas da Maré, frequência superior ao mesmo período em 2018 e 2019”, afirma Camila.
Da favela para a favela
Enquanto a sociedade processava a dimensão da pandemia, gerar informação, dados e protocolos tornou-se outro desafio. Como comunicar métodos de prevenção em massa para os quatro cantos do mundo? Além disso, fake news surgiram e métodos sem comprovação científica também, tornando a tarefa ainda mais complexa. As pessoas ficaram confusas no que confiar e quais orientações seguir, principalmente as mais vulnerabilizadas. Por isso, tornou-se fundamental a produção de uma comunicação eficaz e de dados para tentar compreender a proporção desta realidade e traçar soluções possíveis.
Diante disso, organizações sociais e lideranças que atuam na Maré — o maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro, com cerca de 140 mil moradores — já sabiam que precisavam agir em algumas frentes como, por exemplo: alimentação, comunicação, produção de dados e na providência de itens de higiene pessoal. O histórico processo de ausência da garantia de direitos nas periferias tornou ainda mais complexa a atuação na redução de danos do coronavírus.
Todo esse processo de mobilizações sociais resultou no Vacina Maré, iniciativa da Fiocruz, em parceria com a Redes da Maré e a Prefeitura do Rio, que organizou uma campanha de vacinação em massa. A ação imunizou cerca de 37 mil moradores e uniu a sociedade civil, secretarias de saúde e educação, associações de moradores, instituições que já se articulavam apoiando o cuidado dos mareenses e a própria Fiocruz, que é vizinha de algumas das favelas da Maré.
Thiago Wendel coordenou a vacinação na Maré e ressalta que participar do projeto foi uma realização para ele, que é nascido e criado no Complexo da Penha, distante a 8 quilômetros da Maré. “A gente sabe que a covid foi muito difícil e muito dura para o município do Rio de Janeiro. Foi difícil para quem mora no Leblon e em Copacabana [Zona Sul carioca], mas estava muito mais difícil para quem mora na Maré, que é a classe trabalhadora e que mesmo em uma pandemia tinha que sair para trabalhar”, diz.
Ele relembra o que Daniel Soranz, então secretário municipal de Saúde, disse para ele quando o colocou no cargo, ressaltando que a resposta da comunidade viria da própria comunidade. “Isso tem me motivado muito até hoje. As unidades de saúde têm se esforçado para entregar um SUS melhor, um espaço de cidadania que vai além de só cuidar de pessoas doentes, mas que pode ser uma referência de qualidade, como foi no Vacina Maré”, ressalta.
A ADPF das favelas foi importante no processo de vacinação em massa na Maré, mas ainda assim vem perdendo força. “Apesar da redução dos impactos após a decisão do STF, é importante pontuar que a ADPF vem perdendo força ao longo do tempo. Os impactos da violência voltaram a subir nos anos seguintes e, em 2022, o número de mortes em operações policiais na Maré foi o maior dos últimos três anos. O dado nos alerta para o fato de que a política de segurança pública segue em constante disputa”, avalia Camila Barros.
Assim como a pandemia tornou-se um pesadelo coletivo, com perdas constantes, as operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro são como epidemias letais de um sistema falido, que mata gente e não soluciona a questão da segurança pública. Essa é uma ferida que, para moradores, nunca se fecha, assim como para profissionais da saúde que convivem constantemente com a violência sistêmica.
O desejo que permanece é de que o legado do Vacina Maré possa estar presente além da imunização da população, das blusas e sacolas ecológicas distribuídas que agora fazem parte da paisagem da Maré com os moradores nas unidades da saúde, nas feiras e nos mais variados ambientes. A política de preservar e salvar vidas deve vir em primeiro lugar e a saúde mental de moradores não pode ser considerada como mero efeito colateral.
Para que assim, de fato, o direito à vida e à saúde sejam garantidos como tantos outros direitos que não são assegurados e até mesmo sabotados pelo próprio Estado.
* Ana Paula Godoi é moradora da Maré, formada em Publicidade e Propaganda e analista de comunicação do Panóptico.
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