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Daniel Tiago era geógrafo da Secretaria Municipal de Limpeza Urbana (Semulsp), em Manaus, no Amazonas. Vivia com a mãe, Lucynier Omena, na capital que enfrentou a crise da falta de oxigênio nos hospitais, o aumento de casos de covid-19 pela chegada de uma nova variante e o colapso da rede de saúde devido à gestão desastrosa da política sanitária.

Desde o início da pandemia, Tiago foi deslocado para trabalhar num local de alto risco, o cemitério Nossa Senhora Aparecida. As imagens da tragédia exibidas em rede nacional mostravam o impacto sobre o cemitério: os enterros passaram a ocorrer em valas comuns e em período noturno para dar conta dos corpos que não paravam de chegar.

Tiago trabalhava em um local de grande circulação, mas não era profissional de saúde. Por isso, ficou fora do grupo de trabalhadores que estavam na linha de frente do combate à pandemia e que receberam a vacina com prioridade, em fevereiro de 2021. Os detalhes estão vivos na memória de Lucynier. Ela resgatou os últimos passos do filho ao falar à Radis, por videoconferência, numa conversa entrecortada por lágrimas.

Todos os sonhos começaram a ruir quando, na noite de 6 de março, Lucynier ouviu o filho tossir, como escreveu em um artigo para o projeto Histórias e(m) Movimento, da Rede Covid-19. “Pedi para ele fazer o teste, eu pensava que eu poderia pegar”, relembra. Ela tinha tido pneumonia e tuberculose anteriormente. Mas foi o filho que testou positivo para covid-19. Lucynier conta que ele logo procurou atendimento. Na Unidade Básica de Saúde, foi medicado e voltou para casa. “Eu moro no terceiro andar e não tem elevador. Ele subiu tudo”, observa Lucynier lembrando da condição física do filho no início da infecção.

Três dias depois, Tiago foi com a mãe para uma clínica. Foi internado em 9 de março. Mesmo sendo jovem e saudável, sem comorbidades, teve doenças oportunistas que fizeram com que fosse intubado dez dias depois. Lucynier lembra que o filho foi piorando. “Eu vi aqueles números caindo nos aparelhos. No dia primeiro de abril, liberaram minha entrada [no CTI] porque ele estava em estado grave”, contou. Foi a última vez que a mãe viu o filho. O geógrafo não retornaria mais para casa.

A faixa estendida na varanda marca o protesto de Lucynier contra a morte de seu filho Tiago. — Foto: acervo pessoal.
A faixa estendida na varanda marca o protesto de Lucynier contra a morte de seu filho Tiago. — Foto: acervo pessoal.

Aos 39 anos, Daniel Tiago Omena Melo faleceu em 2 de abril de 2021, na manhã de Sexta-feira Santa, deixando vazia a casa e a vida de sua mãe, como ela diz. “Eu não esperava. Meu filho nunca quebrou um braço. Ele tinha dor de cabeça. Estava muito estressado. Ele saiu e voltou para casa, subiu três lances de escada, desceu no dia 6 de março e no dia 2 de abril estava morto”, resumiu. Agora, ela “segue vivendo pela metade”. A outra parte é sua filha Raquel, que trabalhava no Recife, e voltou a morar com a mãe em Manaus.

— Foto: reprodução/Facebook.

O filho de Lucynier foi uma das 110 mil pessoas falecidas em abril de 2021, o mês que mais matou brasileiros por covid-19. A dor e a revolta atravessam a conversa de Lucynier com a Radis. “É devastador perder um filho. Foi uma violência muito grande. Meu filho era solteiro, morava comigo, nunca saiu de perto de mim. Entrei em desespero, numa dor que não desejo para ninguém”, diz. Logo se corrige afirmando que deseja a mesma dor para todos os políticos e autoridades responsáveis pela tragédia que ceifou a vida de seu filho e de tantos brasileiros.

Lucynier lembra que pediu a Tiago que ele se afastasse do trabalho pelo alto risco. “Ele respondia apenas ‘alguém tem que fazer o serviço, mãe’”. Para ela, Tiago deveria ter tido a mesma prioridade que trabalhadores de saúde e coveiros tiveram na fila da vacinação, mas nada foi feito para protegê-lo. “Eu sou um caldeirão de revolta. Meu filho poderia ser vacinado, poderia morrer ou não, mas teria tido uma chance de vida”, sentencia.

Dois anos depois, o quarto do filho continua do mesmo jeito, recebe limpeza quando preciso, as coisas permanecem como antes. O bloqueio impede que esta mãe assuma que o filho não voltará. “É um sofrimento horrível voltar para casa e saber que eu não vou encontrá-lo”, comenta. O cotidiano permanece ligado ao passado em pequenos atos que uniam os dois. Ela conta que Tiago trazia dinheiro para casa. Sem o filho, a mãe não consegue ir ao banco e fazer a biometria. “Eu sinto que, se fizer, vou reafirmar que eu não tenho mais meu filho comigo”, lamenta.

Também para Lucynier há um quarto vazio, um lugar à mesa que nunca mais será ocupado, como escreveu em um texto para o projeto Histórias e(m) Movimento. Enlutada e sem saber quando essa fase vai terminar, ela fez da varanda de sua casa um lugar de protesto e resistência. Quando Tiago morreu, o Brasil contabilizava quase 360 mil pessoas mortas. Ao final daquele mês (29/4), chegou a 400 mil vidas perdidas. Em protesto, a socióloga estendeu uma faixa na varanda com esse número e o rosto do filho. Repetiu o mesmo protesto quando o país chegou a 500, 600 e 700 mil mortos.

Em 2023, Lucinyer colocou outra faixa na varanda com os dizeres “Justiça pelo meu filho Tiago”, com a data do nascimento e de sua morte. Integrando a Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico-Brasil), ela luta por justiça. Seu desejo é que o governo contabilize mortos para aumentar a responsabilização. A mãe de Tiago também condena quem minimiza a doença e menospreza os mortos, como seu filho. “Eu uso máscara como forma de resistência, para as pessoas não esquecerem o que a gente viveu. Para o mundo parece que a pandemia não existiu. Está tudo funcionando normalmente, só eu que continuo com o meu quarto vazio sem o meu filho”.

A faixa marca o protesto de Lucynier contra a morte de seu filho Tiago. — Foto: acervo pessoal.
A faixa marca o protesto de Lucynier contra a morte de seu filho Tiago. — Foto: acervo pessoal.

* Leia o relato “Réquiem por meu filho Daniel Tiago Omena Melo”, escrito por Lucynier Omena para o projeto Histórias e(m) Movimento em: https://bit.ly/3MHCxlN, também disponível em áudio: https://on.soundcloud.com/EpbKk
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