Por ideologia e por força das circunstâncias, a personagem principal desta reportagem nunca anda só. Maria Elisangela Gomes Magalhães é uma mulher negra, casada, sem filhos, camponesa. E uma militante dos direitos humanos ameaçada de morte. Há quatro anos e meio, vive sob a proteção do Estado. Mantém portas e janelas de casa permanentemente fechadas. Quando sai, deixa orientações expressas, nem todos podem saber aonde vai. Não para em qualquer local para comer o churrasquinho de sempre. Nunca mais foi à igreja. Evita fazer qualquer trajeto desacompanhada.
Na luta pelo direito à terra e por um mundo menos desigual, Elisangela fez inimigos poderosos. Quase sem perceber, enquanto enfrentava fazendeiros, latifundiários e empresários da carcinicultura na sua região, viu o medo invadir a rotina. As intimidações chegavam de todos os lados, ela conta. “Não andem mais em tal lugar. Não avancem nem mais um palmo. Do contrário, a qualquer momento, vocês serão abatidos”, ouviu, certa vez, como recado. Também se sentia acuada por alguns veículos de imprensa da região. “Eles nos chamavam de ‘terroristas’ e isso era uma maneira de tentar nos criminalizar”.
Achou que estava na hora de pedir segurança ao Estado. Não queria engrossar ainda mais as estatísticas de um país que, entre 2019 e 2022, contabilizou 169 assassinatos de defensores de direitos humanos — 140 deles lutavam, como Elisangela, pelo direito à terra, ao território e a um ambiente ecologicamente equilibrado. Isso significa dizer que, em média, três pessoas perderam a vida por mês intercedendo por causas justas. Os dados são do relatório Na Linha de Frente, divulgado em junho de 2023. “A gente é defensor de direitos humanos não por achar bonito. É a necessidade que nos impulsiona a lutar”, disse à Radis, por telefone, diretamente de Jaguaruana, município cearense a 150 quilômetros de Fortaleza.
Segundo o levantamento das ONGs Terra de Direitos e Justiça Global, somados os casos de agressão física, ameaça, atentado, deslegitimação, importunação sexual, calúnia, injúria e difamação, ataques racistas e homofóbicos, violência institucional e judicial e suicídio — além dos assassinatos —, a brutalidade contra defensores de direitos nos últimos quatro anos alcançou uma marca ainda mais aterradora: 1.171 violações no total. Elisangela fica assustada, às vezes cansa. O corpo dói inteiro, ela contou. “Mas nunca me passou pela cabeça desistir. Eu não tenho nenhuma dúvida de que o meu papel como ser humano é batalhar para que mais pessoas tenham acesso a direitos que lhes são negados”. Era o começo de 2019, quando ela e o marido também militante ingressaram, enfim, no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH).
Vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, o programa existe desde 2004, quando foi criado no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, para oferecer proteção a quem vivencia situação de risco, vulnerabilidade ou sofre ameaças em decorrência de sua atuação. Desde então, é concretizado por meio de convênios com os estados que desejem fazer seus próprios programas — atualmente, nove unidades da federação contam com um programa estadual. A página do Ministério na Internet informa que, nos demais estados, os casos são acompanhados por uma equipe técnica federal.
No Ceará, onde Elisangela vive, o programa estadual foi implantado em 2012 e está abrigado sob um guarda-chuva mais amplo que compreende ainda o Provita — voltado especificamente para o atendimento de vítimas e testemunhas ameaçadas — e o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM). A estes, juntou-se mais recentemente o Programa de Proteção Provisória (PPPRO), em funcionamento desde janeiro de 2021, cujo objetivo é atender a qualquer situação de ameaça de morte. Segundo Rachel Saraiva, coordenadora do Núcleo de Assessoria dos Programas de Proteção (Napp) no estado, a iniciativa mais recente nasceu da necessidade de uma resposta mais rápida aos ameaçados, enquanto são cumpridos os protocolos para o ingresso em definitivo nos demais programas.
“Pelo Programa de Proteção Provisória, no momento que a equipe recebe uma solicitação, ela tem até 12 horas para agendar entrevista, e 24 horas para atender a demanda”, detalhou Rachel. Isso se o pedido for voltado para Fortaleza e região metropolitana — para o restante do estado, o prazo dobra. Para quem tem a vida ameaçada a cada segundo, um programa que oferece proteção em caráter emergencial e transitório é um alento. Para se ter uma ideia, no caso do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, o primeiro atendimento pode ocorrer em até 30 dias (a depender da situação de risco, esse prazo deve ser consideravelmente reduzido). A ideia vem servindo de inspiração para outros estados ou ainda como um piloto para um programa nacional, adiantou a assistente social.
Quem defende os defensores?
Viver os dias sob a proteção do Estado não é simples. Se por um lado é garantia de acolhimento e, em muitos casos, a única solução frente às ameaças, por outro faz exigências práticas a quem se vê obrigado a pedir ajuda. Apesar de o ingresso ser relativamente descomplicado — em tese, qualquer pessoa ou instituição que se sinta ameaçada pode requisitar —, a vida é uma antes e outra, depois. “A gente não tem uma rotina como a de qualquer pessoa”, relatou Elisangela, que agora, por exemplo, só assiste à missa pela televisão e precisa escolher as confraternizações de família que vai frequentar. “Quase não temos vida social”.
Se sai à rua para as atividades da militância, ela precisa montar todo um circuito de proteção. “Quando a gente vai para uma comunidade, leva sempre alguém de outra comunidade junto. E a comunidade que vai nos receber, já fica esperando no portão”. Ao entrar para o programa, os defensores contam com apoio psicológico, assistência social e acompanhamento jurídico. Elisangela não economiza palavras para demonstrar a importância do PPDDH. “É muito bom poder contar com uma equipe que consegue articular diversos órgãos para nos proteger”. Ainda assim, faz o possível para nunca voltar para casa depois que anoitece, e está sempre à procura de um local mais seguro onde parar.
“Mas sabe onde a gente se sente mais seguro mesmo?”, indagou, respondendo em seguida. “Junto do povo”. É por isso que, apesar dos elogios dispensados, ela também dispara uma queixa, que associa mais aos entraves burocráticos do que aos empenhos das equipes responsáveis pela execução do PPDDH. “Quando a gente está muito ameaçado, a orientação do programa é que os defensores deixem o território. Mas, para nós, quem deveria sair do território é quem está ameaçando, não quem está sendo ameaçado”.
Rachel Saraiva concorda que esse talvez seja o calcanhar de Aquiles do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos e considera que é preciso avançar na questão que tira o sono das equipes: Como proteger melhor os defensores no seu lugar de atuação? Segundo ela, dos quatro programas sob a tutela do Sistema Estadual de Proteção à Pessoa, instituído por lei no Ceará em 2019, o PPDDH é, de longe, o mais desafiador, exatamente pela necessidade de manutenção dos defensores em seus locais de origem.
Mas ela faz a ressalva de que a retirada do território é uma medida “excepcionalíssima”. Desde que começou a atuar como assistente social dos defensores, em 2012, não houve um caso em que isso tenha sido necessário. No entanto, a coordenadora do Napp relatou que vem percebendo um agravamento nos cenários de conflito — fato que ela credita à inserção do crime organizado nesses territórios. “Com esses coletivos criminais, não há negociação. Eles resolvem a questão da maneira deles, com outra linguagem, fazendo uso da violência extrema”.
Para Rachel, o PPDDH precisa definir melhor a sua identidade, reconhecendo as limitações. “Se ele de fato é um programa de proteção ou se é um programa de articulação”, disse. Considerando o agravamento dos cenários de conflito, ela acredita ser difícil para o Estado conseguir um controle das condições de segurança, com a permanência dessas pessoas no território. O que vem sendo feito como estratégia, ponderou, é garantir a visibilidade, trabalhar a pauta como pano de fundo, mobilizar os órgãos públicos da região e dar um peso institucional à tramitação de determinados processos. Não é pouco.
“A gente tem conseguido constituir uma rede de proteção no entorno desses defensores. Mas a atuação de fato continua se dando numa condição de risco”, reconheceu. E não é razoável que uma pessoa seja obrigada a fazer uma defesa dos direitos humanos “cercada de medo, de incertezas, de pavor”, ponderou a assistente social.
Elisangela conhece essa insegurança. Antes de entrar para o programa, quando lutou ao lado dos professores e quilombolas do Cumbe, na região de Aracati, em 2016, era vigiada noite e dia. Viu companheiros serem presos. Sofreu perseguição de carros desconhecidos. Acordava em um local, dormia em outro. Nessa ocasião, foi obrigada a deixar sua moradia. De outra vez, recebeu ameaças diretas e propostas indecentes. “Enquanto lutávamos para garantir um assentamento em Itaiçaba [município do litoral cearense], quiseram nos comprar com recursos. Mas a gente não se vende”.
Mais recentemente, há cerca de 3 meses, já fazendo parte do PPDDH, diante do recrudescimento das ameaças contra ela e o companheiro, foi-lhes sugerido o afastamento da sua comunidade. A defensora fincou pé e optou por permanecer junto à militância. O programa não concordou, mas respeitou sua decisão. No caso de precisar mudar de endereço, ela conta com uma ajuda de custo prevista pelo programa. “Mas se a gente sai, eles vencem”, afirmou Elisangela.
O programa pode ser acionado pelo próprio defensor, ou, no caso de pessoa jurídica, por qualquer um de seus integrantes ou beneficiários de suas ações; por delegado de polícia, Ministério Público ou qualquer outro órgão público que tenha conhecimento da violação dos direitos ou do estado de vulnerabilidade em que se encontra o defensor; e ainda por representantes de entidades públicas ou privadas que atuem na defesa dos direitos humanos.
Em linhas gerais, no Ceará, funciona assim: quando um caso chega ao PPDDH, ele é submetido à análise de uma equipe técnica, que irá reunir elementos para comprovar ou não a ameaça, levando em conta o contexto de atuação do defensor. A partir daí, um parecer será submetido a um conselho deliberativo — colegiado de composição paritária com representantes das secretarias de Direitos Humanos, de Segurança Pública e de Desenvolvimento Agrário; defensorias do Estado e da União; e entidades da sociedade civil. A esse conselho, cabe deliberar as medidas de proteção e auxiliar a equipe do programa nos encaminhamentos.
Nem todos da família de Elisangela sabem que ela está incluída no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. À reportagem de Radis, ela fez questão de dizer o nome e como começou na militância.
Perfil da violência
- A faixa etária predominante das pessoas que lutam por direitos humanos e sofrem violência no Brasil é de 34 a 46 anos.
- Mulheres negras e mulheres transexuais e travestis que ocupam espaços de poder — como no caso de parlamentares — tendem a ser vítimas frequentes de ameaças e de deslegitimação.
- Indígenas e pessoas negras estão mais vulneráveis a serem vítimas de violência desse tipo.
- A maior parte das pessoas ameaçadas entre 2019 e 2022 atua na defesa de direitos ligados à terra, território e meio ambiente.
Fonte: Na Linha de Frente / Terra de Direitos e Justiça Global
Quem são os defensores
Elisangela é uma mulher de fala mansa e firme, conhecida em todo o Vale do Jaguaribe, onde fica a sua cidade natal. Filha de pai agricultor, neta de agricultor, ela diz que “já nasceu agricultora”. A militância junto aos direitos humanos, essa veio um pouquinho mais tarde. Foi no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) que aprendeu lições como esta que repete durante a entrevista: “O artigo 184 da nossa Constituição prevê que toda terra improdutiva, seja ela pública ou privada, que não cumpra sua função social ou que tenha trabalho escravo, seja destinada aos trabalhadores do campo ou da cidade”.
O MST ainda hoje é companheiro inseparável, mas a ativista fez outros movimentos. Aos 45 anos, Elisangela é uma educadora popular, professora de formação pela Universidade Estadual do Ceará (Uece) e aguerrida integrante da Organização Popular OPA – Construindo o Poder Popular, desde sua origem em 2010, uma associação que reúne quilombolas, indígenas, pescadores, sem terra, sem teto, motoristas, professores. “Nós somos um movimento que luta por direitos”, resumiu. É da OPA o boné que ela usa sempre debaixo do sol. “Existem tantas pessoas sem terra, sem teto, sem acesso à educação pública gratuita e de qualidade; pescadores sem direito à pesca; agricultores que não podem produzir o próprio alimento por falta de políticas públicas. É em nome disso que a gente luta”.
Desde 2018, o PPDDH ganhou um adendo ao seu nome, passando a se chamar Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas, ainda que a sigla tenha se mantido. O último relatório anual da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), com dados sobre 2022, evidenciou que o Brasil permaneceu como um país hostil aos jornalistas. Foram registrados 376 casos de agressões aos profissionais e ataques à categoria e a veículos de comunicação.
O ano anterior, 2021, foi ainda mais grave com 430 ocorrências, o mais violento para jornalistas brasileiros desde que a série histórica começou a ser produzida no país nos anos 1990. O relatório não hesitou em apontar os responsáveis pela explosão nos números. “Seguramente, podemos afirmar que, durante o ciclo de Bolsonaro na presidência, houve uma institucionalização da violência contra jornalistas, por meio de uma prática governamental sistemática de descredibilizar a imprensa e atacar seus profissionais”.
Já o levantamento Na Linha de Frente, importante diagnóstico da violência praticada contra quem defende direitos, afirmou que os últimos quatro anos revelaram “um período de extrema deterioração e sucateamento das estruturas governamentais de garantias de direitos” e acentuaram um ambiente desfavorável, “de violência e ódio voltados especialmente contra grupos historicamente marginalizados”. O relatório registrou ainda um número recorde de ameaças contra defensores de uma maneira geral — 579, entre 2019 e 2022.
Foi nesse período que chegou ao PPDDH cearense uma demanda inusitada — para dizer o mínimo. Wellington Macedo de Souza solicitava o ingresso no programa. Para quem não está ligando o nome à pessoa, esse é um blogueiro cearense, conhecido por disseminar fake news e que depois viria a ser procurado pela tentativa de instalar uma bomba próximo ao aeroporto de Brasília, em dezembro de 2022: um personagem que coleciona acusações por dano moral. “Esse era um perfil que o próprio Ministério de Direitos Humanos de então entendia como o de um defensor de direitos humanos”.
O caso nem chegou a ser avaliado, uma vez que o blogueiro foi preso como suspeito de articular e financiar atos contra a democracia no 7 de setembro de 2022, antes mesmo da deliberação por parte do conselho. Mas Rachel Saraiva lembra que, pelo nexo de causalidade, o demandante precisa estar ameaçado em decorrência da defesa de direitos humanos, o que não se enquadrava nesse pedido. Em tempo: Wellington cumpria prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica, mas violou a condicional e hoje se encontra foragido da Justiça.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), defensores de direitos humanos são definidos como “pessoas físicas que atuem isoladamente, pessoa jurídica, grupo, organização ou movimento social que atue ou tenha como finalidade a promoção ou defesa dos direitos humanos”. Esse, aliás, é o mesmo entendimento adotado pelo governo federal no âmbito do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. No caso de Wellington Macedo, a solicitação foi arquivada.
Quem são os defensores dos direitos humanos
Segundo a ONU:
- São todos os indivíduos, grupos e órgãos da sociedade que promovem e protegem os direitos humanos e as liberdades fundamentais universalmente reconhecidos.
- Pessoas físicas que atuem isoladamente, pessoa jurídica, grupo, organização ou movimento social que atue ou tenha como finalidade a promoção ou defesa dos direitos humanos.
O PPDDH considera ainda:
- Todo indivíduo, grupo ou órgão da sociedade que promova e defenda os direitos humanos e as liberdades fundamentais universalmente reconhecidos e, em função de suas atuações e atividades nessas circunstâncias, encontre-se em situação de risco, ameaça ou vulnerabilidade.
- Comunicador com atuação regular em atividades de comunicação social, seja no desempenho de atividade profissional ou em atividade de caráter pessoal, ainda que não remunerada, para disseminar informações que objetivem promover e defender os direitos humanos e que, em decorrência da atuação nesse objetivo, estejam vivenciando situações de risco, ameaça, vulnerabilidade ou violência que vise a constranger ou inibir sua atuação nesse fim.
- Ambientalista que atue na defesa do meio ambiente e dos recursos naturais, bem como na garantia do acesso e do usufruto desses recursos por parte da população, e que, em decorrência dessa atuação, esteja vivenciando situações de risco, de ameaça, vulnerabilidade ou violência que vise a constranger ou inibir sua atuação nesse fim.
Bernadete, Bruno, Dom…
Esta reportagem ainda estava em sua reta final, quando o Brasil assistiu ao assassinato em 17 de agosto de Bernadete Pacífico, ou Mãe Bernadete, como era mais conhecida a líder quilombola e ialorixá baiana ferrenha defensora dos direitos quilombolas. Ela foi morta a tiros dentro de sua própria casa, no quilombo Pitanga dos Palmares, em Salvador, seis anos depois de um de seus filhos ter sido assassinado.
Os casos de violência contra defensores de direitos humanos vão se empilhando. A morte brutal do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, no Vale do Javari, no Amazonas, enquanto denunciavam violações de direitos e combatiam à pesca ilegal na região: junho/2022. O autoexílio de Débora Diniz, a antropóloga que se viu obrigada a deixar o país devido a ameaças por conta de seu trabalho na luta pelos direitos reprodutivos e sexuais: junho/2019. A renúncia do deputado federal Jean Wyllys e posterior autoexílio depois das constantes ameaças de morte e das campanhas de difamação por ter uma plataforma política ligada à população LGBTQIAPN+: janeiro/2019. Os ataques à vereadora de Niterói, Benny Briolly, mulher trans e negra, por motivos similares: maio/2021 [ver entrevista a Radis 220]. As agressões à Alessandra Korap Munduruku, liderança indígena, que teve a casa invadida e redes sociais hackeadas em mais de um momento: novembro/2021 [ver Radis 227]. As muitas mortes de Marielle Franco.
No Ceará, um episódio em particular marcou a militância de Elisangela e de muitos defensores de direitos humanos. Ela conhecia Zé Maria do Tomé, assassinado há 13 anos com 20 tiros, à queima-roupa, em Limoeiro do Norte, depois de anos na luta contra os agrotóxicos. De tão emblemático, o caso do agricultor pode ser considerado o grande motivador para a criação do PPDDH no estado, tornando-se uma referência que unifica as lutas gerais dos movimentos sociais para além das fronteiras locais. Hoje, Zé Maria do Tomé dá nome a uma lei cearense que proíbe a pulverização aérea dos agrotóxicos.
O estado fechou o mês de junho com 45 casos e 99 pessoas sob proteção. Entre esses defensores, está a professora e feminista Lola Abramovich, que há pelo menos uma década vem enfrentando grupos de ódio na Internet que tentam lhe coagir com ameaças de estupro e morte, entre outras intimidações. Há também casos coletivos, como o das Mães do Curió — grupo de mulheres que perderam seus filhos em uma chacina ocorrida entre a noite do dia 11 e madrugada de 12 de novembro de 2015, deixando 11 mortes, com ataques no intervalo de menos de 6 horas em bairros da periferia de Fortaleza.
Para Elisangela, cada vez que morre um defensor de direitos humanos, as mãos do Estado ficam um pouco sujas. “Porque o Estado pode atuar de maneira mais firme para resolver conflitos. Se ele fizer a sua parte, pode impedir ou dificultar que acontecimentos brutais venham à tona”. Há pouco tempo, ela ajudou a mobilizar cerca de 1.500 famílias para uma estratégia conhecida como “trancaços”, que implica em fechar estradas e rodovias como uma maneira de chamar a atenção para a causa. Estavam em defesa de uma ocupação em uma terra improdutiva que, segundo Elisangela, vinha sendo usada antes para criação de camarões em cativeiro.
Ela contou que, quando ocuparam a fazenda, ouviram relatos de que “iriam pagar capangas” para expulsar os militantes “debaixo de bala”. Elisangela acredita que há uma morosidade no Estado brasileiro e que isso contribui para o acirramento dos conflitos. “Tenho ciência de que, a qualquer momento, alguém pode me matar devido à nossa luta, meu companheiro pode morrer, outros companheiros da OPA podem morrer”, disse. “Mas a gente não vai parar essa luta”.
Números
Entre 2019 e 2022, foram mapeados 1.171 casos de violência contra defensoras e defensores de direitos humanos
- 52 agressões físicas
- 579 ameaças
- 169 assassinatos — uma média de 3 por mês
- 197 atentados
- 107 casos de criminalização
- 63 ocorrências de deslegitimação (calúnia, difamação, ataque à honra etc)
- 2 registros de importunação sexual
- 2 suicídios
Fonte: Na Linha de Frente / Terra de Direitos e Justiça Global
Em 2022, houve 376 casos de agressões a jornalistas e ataques à categoria e a veículos de comunicação.
Fonte: Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil / Fenaj
A dor e a luta
No mapeamento da Terra de Direitos, o estado que apareceu com maior número de violações registradas contra pessoas defensoras de direitos humanos foi o Pará, onde 143 violações ocorreram, seguido pelo Maranhão. O Ceará ocupa o quinto lugar nessa nada honrosa lista, juntamente com o Piauí, com oito violações cada. Ainda que em números totais apresente menos casos, a região onde as ameaças são mais frequentes é o Sudeste.
Para o pesquisador da Fiocruz, Gabriel Simões, talvez seja possível dizer que há pessoas com as vidas tão implicadas pelas causas que defendem, a ponto de não soltar a mão do outro, do seu território, da sua história. Esse é o caso de quem perde familiares para a violência policial nas favelas, por exemplo. Gabriel é o coordenador de um projeto que cartografou os territórios populares do Rio de Janeiro da perspectiva do cuidado, da saúde e da defesa de direitos. Conduzido pela Cooperação Social da Presidência da Fiocruz, o projeto resultou em um documento elaborado com a participação de 20 defensoras e defensores de Direitos Humanos, atuantes em diferentes territórios e coletivos do estado, e apresenta um mapa de violações nessas regiões [Leia mais aqui].
Em sua tese de doutorado em políticas públicas e formação humana — “Isso não pode ser normal: a vida em favela sob o olhar de um corpo em desalinho” —, Gabriel discute, em certa medida, como o medo pode ser a um só tempo um instrumento inibidor ou encorajador da luta, a despeito de todas as ameaças. “Eu vejo muita paixão no dia a dia e nos depoimentos dessas pessoas”, acrescentou Gabriel. “Eles reconhecem que é arriscado e perigoso, mas aquilo é a causa da vida deles. E a vida deles não faz sentido sem estar mergulhada na militância e dando o sangue em nome de uma melhoria da qualidade de vida e da garantia dos direitos”.
Ninguém explica o paradoxo: pessoas que dedicam a vida em defesa dos Direitos Humanos têm o seu direito à vida ameaçado. Para Rachel, quem milita em defesa dos direitos humanos rema contra a corrente. Dos defensores, a assistente social escuta com uma certa frequência — assim como Radis ouviu de Elisangela — que “é preferível morrer a sair da luta”. Essa é a razão de existir dessas pessoas, disse. “Ao mesmo tempo em que isso enche o coração de esperança, é tenso, porque a gente sabe que em muitas situações, infelizmente, esse é o elo mais fraco na disputa com o poder político e econômico que está na outra ponta”.
Elisangela entende que a situação é reveladora de dois projetos de mundo em curso: “O projeto que a gente defende versus o projeto do capitalismo”, resumiu, apontando o tamanho do segundo — “Eles são poucos, mas têm muito dinheiro, muito poder”. Ela argumenta: “Ao contrário do projeto de morte do capitalismo, a nossa luta é em defesa da casa comum. Para que ela continue de pé. E seja sustentável”.
Não é uma luta vã, assegurou Elisangela. Apesar dos perigos e graças em parte ao programa de proteção, ela segue um cotidiano planejado, dia após dia. Dedica-se às plantas. Divide com as irmãs o cuidado com a mãe. Soma às tarefas domésticas as atividades da militância nas comunidades organizadas pela OPA na região. E ainda encontra tempo para se atualizar “dos fatos novos do país e do mundo”, para mergulhar nas leituras de Rosa Luxemburgo, Alexandra Kollontai e Clara Zetkin, suas referências, e para dar uma entrevista em que cita Patativa do Assaré, quando a repórter lhe pede que se apresente: “Eu sou de uma terra / que o povo padece / mas não esmorece / procura vencer”, pronunciou, antes mesmo de dizer o seu nome.
“É uma rotina bonita, porque lida com a terra, com os animais e dá a sua contribuição para construir uma sociedade de iguais”, sintetizou. “Mas ao mesmo tempo, cheia de medos de que a força do poder estabelecido tire a nossa vida e interrompa nosso percurso de construção de um novo mundo”. Outra vez, um paradoxo.
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