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“A Terra é Minha Pátria, o céu é o meu teto e a liberdade é a minha religião.”

(Provérbio Cigano)

Pela primeira vez na história, o estado de Mato Grosso, por meio do Comitê Estadual dos Povos e Comunidades Tradicionais (CEPCT-MT), órgão vinculado à Secretaria de Trabalho, Ação Social e Cidadania (SETASC-MT), proporcionou a participação de representantes de Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) mato-grossenses na 28ª Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), a COP 28.

Como representante dos povos ciganos — da etnia Calon, de Cuiabá — no órgão, fui convidado a compor a comitiva, que contou também com duas outras lideranças de povos tradicionais: Lidiane Taverny, da comunidade Mata Verdinho, território de retireiras e retireiros do Araguaia, da cidade de Luciara (distante a mais de mil km de Cuiabá); e Laura Ferreira, da comunidade Ribeirão da Mutuca, território quilombola de Mata Cavalo, no município de Nossa Senhora do Livramento (40 km de Cuiabá).

Contraditoriamente, o evento ocorreu, entre 30 de novembro e 12 de dezembro de 2023, em Dubai, nos Emirados Árabes, um dos maiores produtores mundiais de petróleo — os combustíveis fósseis são um dos maiores poluidores do clima e contribuem fortemente para não atingir a meta da própria COP21 em limitar o aumento da temperatura do planeta em 1,5°C até o final do século 21.

Ao longo dos 10 dias que estive na COP 28, me aproximei das duas companheiras que foram representando o CEPCT-MT. O fato de serem marinheiras de primeira viagem na conferência assim como eu, e a ligação na representação do CEPCT-MT, foram fatores que nos uniram nos e colocaram em sintonia. 

As impressões e toda a carga política, econômica, social, cultural e ambiental, que trago em primeira pessoa, também nasceram de conversas e diálogos tecidos com Laura e Lidiane. Foram os valores, as tradições e as cosmovisões de nossas comunidades, que são diversas, mas que convergem em um ponto central, pois não separam a natureza e a cultura, que passaram a ecoar nas programações que estivemos na COP 28.

Mais do que nossas próprias vozes, procuramos expressar lutas, demandas e sentidos ambientais e climáticos compreendidos por nossas comunidades, especialmente aquelas vinculadas aos cuidados com a terra, as águas e o meio ambiente. É com base  nessas cosmovisões que buscarei aprofundar a análise nesta cobertura especial para Radis.

Um peixe fora d’água

A primeira sensação que emergiu muito fortemente nos primeiros dias da COP 28 foi a de me sentir “um peixe fora d’água”. Navegamos por águas turvas, quando todo o contexto de desigualdade social e exclusão vivenciado por nós é, na realidade, reflexo de um racismo ambiental flagrante, configurado por uma lógica hegemônica da sociedade capitalista e colonialista, que concebe a natureza como recurso e os povos tradicionais como inferiores, não-humanos e improdutivos. 

Uma lógica perversa, evidentemente, mas que quer fazer crer que somos peixes fora d’água, atrasados demais para a modernidade ou para o debate e a gestão ambiental. Essa percepção também foi sentida por Lidiane, Laura e outros ativistas dos povos e comunidades tradicionais brasileiros, como representantes da Confederação Nacional dos Quilombolas (Conaq) ou da Federação de Povos Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), duas entidades com quem mantive intensos contatos durante o encontro.

No meu caso em específico, um agravante: diferente de quilombolas e indígenas, os povos ciganos não possuem territórios demarcados. Portanto, não poderíamos entrar no rol de negociações de sequestro de carbono, em programas arquitetados por países desenvolvidos como Reino Unido, Dinamarca, Noruega e Alemanha e impostos aos países em desenvolvimento, em que pagam bônus para aqueles que mantêm a floresta em pé, a exemplo do próprio programa REM, que financiou parte das nossas despesas. Um fato: indígenas e quilombolas são mestres na produção biossocial integrada à natureza.

Ao final do evento, a sensação de peixe fora d’água mudou para uma compreensão de que se estados e empresas não reverem urgentemente os impactos ambientais, literalmente toda a humanidade será um peixe fora d’água. A verdade, ainda que os negacionistas refutem ao bel-prazer econômico, é que atualmente a humanidade como um todo está correndo o risco de ficar sem água potável, sem ar puro e fresco e sem alimentos. 

O que um cigano faz na COP 28 se não possui território?

Calon Aluízio de Azevedo, quilombola Laura Ferreira e a ministra Marina Silva: encontros na COP. — Foto: Acervo Particular.
Calon Aluízio de Azevedo, quilombola Laura Ferreira e a ministra Marina Silva: encontros na COP. — Foto: Acervo Particular.

Durante os 10 dias que estive em Dubai para a COP 28, várias questões foram surgindo, tanto de cunho social e político, quanto de cunho cultural e econômico, que rasgaram qualquer expectativa ou esperança de que dali pudesse de fato emergir um acordo unívoco em prol do planeta. Mas uma questão martelou o juízo desde o primeiro dia em que participei do evento, em 3 de dezembro, um domingo: o que um cigano faz na COP 28, em que territórios tradicionais e a floresta Amazônica eram duas vedetes principais?

Afinal qual era — ou qual é — o sentido de um cigano, sem nação própria e sem território físico demarcado, participar deste evento que discute o colapso do clima e as injustiças climáticas e ambientais, causadas sobretudo pela exploração e devastação sem fim da natureza por grandes empresários e empresas, especialmente do ramo dos combustíveis fósseis, industriários e produtores rurais, maiores poluidores do clima?

O que poderia fazer ou contribuir diante de um foco centrado totalmente nas negociações entre representantes de governos e empresas e onde os movimentos sociais — excetuando-se os povos indígenas, que conquistaram um certo estrelato no evento, por suas ações históricas em defesa da natureza e o volume de terras que possuem com imensas riquezas naturais — pouco são ouvidos ou têm suas vozes levadas em consideração?

Também durante os dias em que estive em Dubai, o provérbio cigano que abre esse texto não me saiu da cabeça, no intuito de tentar responder o que um cigano fazia na COP28. Outra questão também surgiu: quais impactos ambientais são provocados pelos povos ciganos?

Foi neste cenário de mais dúvidas do que certezas que um aspecto emergiu fortemente: para o Brasil avançar no debate das injustiças climáticas, é necessário urgentemente conhecer e reconhecer a contribuição dos povos e comunidades tradicionais para a conservação do planeta, inclusive dos povos ciganos e seus três troncos étnicos Romani (os Calon, os Rom e os Sinti), tanto para o desenvolvimento econômico, histórico, cultural e social do país, quanto para a conservação da natureza.

O provérbio Romani que nos ensina a pensar que o céu é o meu teto, a terra é a minha pátria e a liberdade minha religião, nos leva para uma compreensão integralista entre seres humanos e o ambiente, ou entre a natureza e a cultura, uma visão que se aproxima muito de outras comunidades tradicionais. Ao mesmo tempo, o provérbio deságua na reeexistência dos povos e culturas ciganas e na sua contribuição para os países e sociedades onde vivem.

A Terra é minha pátria

Sem um território próprio ou uma religião própria, continuamos resistindo como povos e culturas, sem sermos assimilados pelos estados nacionais e a sociedade majoritária onde vivemos, mesmo sofrendo processos de exclusão, perseguição e invisibilidade.  Juntos, os Calon, os Rom e os Sinti configuram uma das maiores nações multiculturais e sem pátria do planeta. Estamos em praticamente todos os países. Só no Brasil somos mais de 500 mil pessoas vivendo em todas as unidades da federação. 

Na cultura, filosofia e mitologia Calon, os elementos ambientais são sagrados. Nossa cosmovisão respeita e reconhece bichos, plantas, solos, ares, rios e mares como integrantes de nossas vidas, conhecimentos e práticas. Nossos modos de ver e viver diferem totalmente dos valores da sociedade moderna ocidental, que separou a cultura da natureza, para assim poder dominá-la, explorá-la, em prol de riquezas e luxos para uma pequena parcela e a enorme exclusão da maioria. Só para dar um exemplo, a medicina Calon é toda baseada nas plantas do Cerrado. Se o Cerrado se extingue, extingue junto nossa medicina tradicional. [Veja aqui Vídeo síntese sobre a relação entre a cultura Calon e a natureza que o Instituto Centro de Vida (ICV) publicou sobre a participação de um cigano na COP28.]

Falamos de uma visão integralista, que pensa o planeta uno, em que os ecossistemas estão todos interligados, por meio das correntes de ar, do clima e da temperatura, dos mares e porções de terras, além do interior da terra, incluindo os combustíveis fósseis e as águas subterrâneas, como o Aquífero Guarani, que está abaixo do Cerrado brasileiro e que pouco foi falado na COP 28. Um assunto ausente, mas urgente, pois o Cerrado protege a Floresta Amazônica e as águas subterrâneas e mesmo assim a legislação permite em 60% o seu desmatamento.

Nós, ciganos, não devastamos as florestas, não destruímos os rios, os lagos e os mares. Não envenenamos o ar, a terra e o ar para fazer grandes plantações. Nunca iniciamos uma guerra. Sabemos o quanto a mãe Terra é importante para todos nós vivermos, tanto porque nos dá o alimento, quanto nos dá a cura para doenças. Somos parte da natureza e se não pararmos urgentemente de degradá-la, o resultado será terrível e irreversível para toda a humanidade.

No Pavilhão do Brasil, evento discute a participação de mulheres negras e indígenas nos debates do clima. — Foto: Acervo Particular.
No Pavilhão do Brasil, evento discute a participação de mulheres negras e indígenas nos debates do clima. — Foto: Acervo Particular.

Desigualdades em Dubai 

Para um ativista ambiental, alguém cuja base é a comunidade tradicional cigana, um dos primeiros impactos, ao chegar em Dubai, foi observar a arquitetura e o planejamento da cidade, que ostentam luxo, glamour e riqueza — contrariando todas as expectativas ambientais e naturais, ela foi erigida sobre um deserto.

À primeira vista, parece que a exclusão e as desigualdades sociais não existem em Dubai. Mas a contradição está na própria cidade, uma maravilha da tecnologia e da arquitetura, refletida na mania de grandeza e ostentação, que chama atenção dos olhos dos investidores capitalistas e onde tudo é o maior do mundo: do shopping ao edifício. Tudo construído por mão de obra vinda de países como Índia e Paquistão. A cidade tem apenas 11% da população árabe, e quase 90% é composta por estrangeiros, que ocupam os trabalhos mais baixos, sustentando os grandes empresários, em sua maioria árabes.

O “ouro negro” farto no país é comandado pelas mãos de ferro de um sheik árabe e de sua família. O sistema de governo é hereditário e concentrado, passando longe de uma democracia.

Outro impacto foi a multiculturalidade presente e marcante com várias línguas, sotaques e culturas, que eram unidas pelo inglês, falado pela maioria dos moradores de Dubai. As mais de 190 delegações nacionais que participaram das discussões ambientais representavam a nata de suas sociedades e países nas questões ambientais e naturais, sob a supervisão da ONU, reunidas para discutir o futuro do planeta, mas parece que o tema dos direitos humanos ficou um tanto ausente dos debates.

Toda essa modernidade e progresso contrasta com a sentença de prisão para pessoas LGBTQIAPN+. O país ainda mantém leis que ferem frontalmente os direitos humanos, como a repressão severa à comunidade LGBTQIAPN+, que segue marginalizada e excluída, ou o patriarcalismo e machismo, ainda bastante presente, que impede mulheres de acessarem vários direitos. Aliás, o tema das sexualidades divergentes e direitos humanos relacionados às comunidades LGBTQIAPN+ e às mulheres passaram ao largo dos debates da COP 28. 

A ONU e as delegações de mais de 190 países fecharam os olhos para as violações aos direitos humanos nos Emirados Árabes e abriram os olhos para a beleza da estrutura da Expo 2020, gigantesca, que nos obrigava a caminhar quilômetros por dias para nos deslocar de um pavilhão a outro e conseguir acompanhar as inúmeras programações — excetuando, claro, aquelas mesas de negociações e decisões, em que os movimentos sociais eram mantidos à distância e só os governos e as empresas poderiam participar. 

Colaboração especial para Radis.
Aluízio de Azevedo é jornalista, pós-doutorando do Laboratório de Comunicação e Saúde (Laces) do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz) e cigano Calon
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