Em 9 de maio de 2021, Carlos Gilberto foi almoçar com a mãe, Maria Zuleide. Kiko, como era conhecido, avaliou que já era possível visitar a mãe, que estava reclusa em casa, com o marido, desde o início da pandemia. Junto com a filha, quis comemorar presencialmente o Dia das Mães. Seu irmão mais novo, Leonardo Accioly, optou pela prevenção. “Meus filhos tinham voltado à escola e eu poderia estar assintomático”, lembra o filho mais novo de Maria Zuleide, que deixou o presente da mãe na área de serviço de seu apartamento no Recife, tal como fizera em 2020, quando a pandemia começou.
Kiko aceitou correr o risco e, junto com sua filha, passou o dia com a mãe. Maria Zuleide tinha um linfoma não Hodgkin [uma doença na medula] tratável e diabetes controlada. Para Leonardo, a mãe era uma pessoa saudável e alegre e, não fosse a covid-19, teria alguns anos de vida pela frente.
Os sintomas de Kiko vieram primeiro. “No dia seguinte [ao almoço], ele ligou relatando que estava se sentindo esquisito, cansado e indisposto. Fez o teste de covid e deu positivo”, lembra Leonardo. A doença avançou rapidamente sobre Kiko. Ele foi internado e necessitou de respiração mecânica. Como não conseguiu aguentar o respirador, pediu para ser intubado.
Zuleide testou positivo dez dias após a internação de Kiko. Ficou sob cuidados em casa e seguiu o mesmo percurso que o filho. Responsável pelo cuidado do pai, que estava doente, e tendo que coordenar a situação da mãe e do irmão, Leonardo lembra que não poderia adoecer. “Essa é minha primeira grande dor. Os médicos disseram que eu não poderia entrar no hospital porque, se eu adoecesse, não teria ninguém para cuidar dos outros”. Não houve tempo para despedida, como ele queria. “Eu não tive a oportunidade de encontrar fisicamente com a minha mãe e me despedir. Eu falei com ela por telefone, mas não estive com ela”, lamenta.
Enquanto mãe e filho estavam internados, diariamente o advogado recebia informações sobre o quadro de cada um. Além da equipe da UTI, a mãe foi acompanhada por geriatra e pneumologista e o irmão por pneumologista. Eram eles que passavam as informações sobre o estado de saúde dos familiares. “Eram sete ligações, sete sobressaltos diários. Era uma tortura”, lembra. Segundo ele, enquanto o quadro da mãe teve uma piora lenta e gradual, o do irmão teve inúmeras intercorrências, que levaram a muitos dias piores com algumas melhoras.
Foram dias em que temor e esperança chegavam a cada telefonema. “Ela foi tratada por dois excelentes médicos mas de estilos diferentes. O geriatra sempre abrandava um pouco a informação. A pneumologista era mais direta em seus relatos. Eu preferia a ligação dele muito embora tivesse consciência de que a dela correspondia mais à realidade.”
O advogado assumiu o lugar da mãe, na organização da casa e no cotidiano do pai, e do irmão, responsável por administrar a empresa de aluguel de temporada em um sítio da família na Praia dos Carneiros. “Segurar a barra emocional de uma doença dessas, com a perspectiva péssima que se tinha… Era o auge da pandemia e eu tive que cuidar de toda a situação, além de dar conta dos meus compromissos. Não foi e não tem sido fácil”, recorda.
Um após o outro
Era madrugada no Recife quando o celular de Leonardo tocou. Chamado ao hospital, soube que Carlos Gilberto tinha falecido após 45 dias de internação. O advogado reconheceu o corpo do irmão, resolveu trâmites burocráticos e voltou para casa, quando o celular tocou novamente. Chamado ao hospital em que sua mãe estava internada, foi comunicado que ela também não tinha resistido.
Quatro horas separaram a morte de mãe e filho. Naquele 1o de julho de 2021, os nomes de Maria Zuleide Rocha Accioly, de 80 anos, e Carlos Gilberto Accioly da Silva Filho, de 46, entraram na marca de 535 mil pessoas que até então tinham perdido a vida no país desde o início da pandemia.
Leonardo diz que Carlos Gilberto estava irreconhecível devido a procedimentos invasivos, o corpo inchado, com uma expressão deformada. “Minha mãe estava com uma expressão mais serena, como quem minguasse, muito magra”, relembrou, em meio à emoção. Leo enxerga nessa dupla partida uma ironia do destino. A mãe faria aniversário em 4 de julho e o filho, que foi adotado quando bebê, chegou à família um dia depois. “Os dois não só morreram como é possível que tenham nascido no mesmo dia”, diz.
Mãe e filho foram velados na mesma tarde, um caixão ao lado do outro, em um encontro aberto, pois a Ciência já tinha descoberto que não haveria risco de transmissão da doença após tanto tempo de internação. “Eles não tinham mais o vírus, mas estavam brigando pelas complicações da covid e do quadro inflamatório”, diz Leonardo. As cinzas de mãe e filho repousam em um espaço reservado na Igreja de São Benedito, o cartão postal da Praia dos Carneiros, no litoral de Pernambuco.
Impossível não mudar depois de perdas familiares tão repentinas. Leonardo costuma dizer que vivenciou sofrimento imenso diluído em 45 dias. “A forma de encarar a vida muda depois de uma perda dessas. A alma é modificada com uma perda dessa natureza. É uma tristeza perene, uma revolta pelos anos de convivência que foram tiradas de mim, da minha família, do meu pai e da filha de meu irmão. Meu irmão não tinha nenhuma doença associada, estava bem profissionalmente, vibrando com as atividades empresariais. Metade da vida dele foi suprimida. E eu não tenho a menor dúvida que tem a ver com a conduta do Estado brasileiro”, declarou.
Vacina negada
Segundo Leonardo, a dor é ainda maior por saber que a tragédia poderia ter sido evitada. “Soma-se a dor com a revolta, com a sensação de impotência, de que essa injustiça jamais vai poder ser reparada”, analisa. Em sua visão, a vacina teria mudado o percurso não apenas de seu irmão. “Foi negada a chance de ter se vacinado por conta do atraso causado pela negligência e irresponsabilidade do Estado e do governante brasileiro que estava como presidente. É surreal como as pessoas negam a realidade e isso pra mim é difícil, é duro. É difícil seguir diante de tamanho delírio coletivo”.
Ao falar à Radis, o advogado ressaltou a importância de resgatar a história dessas vidas perdidas para que a tragédia não se repita. “Espero que uma crise sanitária seja tratada de outra forma. E que o eco da ignorância seja combatido com a ciência e com a reversão dessa consciência coletiva de que a gente pode tratar questões tão sérias de uma maneira irresponsável e com desinformação”, observou. Por enquanto, ele segue com dor e saudade. “É algo que não dá para extirpar. Meus familiares não vão ser substituídos. O sentimento de perda é perene. A dor é tatuagem que fica gravada para sempre. Fica tatuada na alma. É esse o tamanho da perda. É como se um pedaço da sua vida que não pode ser reposto fosse retirado. Uma perda dessa e da forma como aconteceu… Não vai ser substituída jamais”, completa.
* Leia o artigo “Mãe, irmão, Covid”, de Leonardo Accioly, publicado no Diario de Pernambuco, em 14/07/2021: https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/opiniao/2021/07/mae-irmao-covid.html
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