Italira Susana Falceta da Silva era uma mulher saudável e ativa. Criou sete filhos e teve poucas doenças na vida, entre elas, a Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC). Vivia em Porto Alegre com o marido, Brauzulino Lacerda da Silva, de 84 anos. Incluído no grupo de risco, o casal passou o primeiro ano da pandemia sem receber visitas. A família falava ao telefone e as compras eram feitas pelo celular. Em janeiro de 2021, dona Italira machucou o dedo em casa e buscou atendimento médico. Foi internada por 21 dias e voltou para casa. Pouco tempo depois, descobriu que tinha sido infectada pela covid-19 no ambiente hospitalar.
Naquele ano, a doença ainda era desconhecida e a disseminação descontrolada levou à superlotação dos hospitais. E foi ali que Paola Falceta soube que a idade cronológica de sua mãe estava à frente de sua vida na avaliação dos médicos, o que configura etarismo [preconceito e inferiorização por idade]. “Desde o primeiro dia disseram que não teria respirador e equipamento para intubar a minha mãe. Disseram que a prioridade para vaga em UTI seria dada para pessoas mais jovens porque minha mãe era mais velha e tinha comorbidade”, relembra.
Segundo Paola, os médicos foram muito francos quanto à gravidade do estado de sua mãe. Não havia o que fazer e o quadro evoluiu rapidamente. As conversas que aconteciam por vídeo até uma semana antes de sua morte deixaram de ser feitas quando dona Idalina estava “fora da casinha” por conta da septicemia, como Paola diz. Depois, quando não havia mais recursos e vida possíveis, ela foi transferida para o quarto.
Foi ali que Paola viu a mãe pela última vez. “A mãe estava com ataduras nos dois pulsos, completamente roxos, cheia de hematomas pelo corpo inteiro. A perna estava inchada do joelho para cima, em decorrência da sepse. A barriga estava enorme, o peito inchado. Ela tinha uma dificuldade absurda para respirar. Não era mais ‘a minha mãe’”, pontuou.
Paola é assistente social e viu o apagar de dona Italira. Junto com uma técnica de enfermagem, deu o último banho e percebeu que a covid não tinha arrasado apenas com sua família. “A guria sabia que a minha mãe estava morrendo, eu também sabia. Percebi que aquela profissional estava no auge do estresse, havia muita emoção envolvida. E a gente começou a lavar a mãe…”, relembrou à Radis numa conversa pontuada por lágrimas.
Paola lembra que havia mais quatro mulheres no mesmo quarto, todas catatônicas, no respiradouro, quem sabe esperando para morrer. Seu desejo naquele momento era que sua mãe também morresse para deixar de sofrer. Dezenove dias após ser internada, a gaúcha Italira Susana Falceta da Silva, de 81 anos, faleceu em 2 de março de 2021, em Porto Alegre. Ao amanhecer, o nome da mãe de Paola entrou na lista dos 350 mil brasileiros que morreram de covid-19 até o final daquele mês.
Era um pouco mais de seis horas da manhã quando Paola chamou a equipe de enfermagem para confirmar o óbito de sua mãe. Naquele momento, Paola conta que ficou bem. “Eu queria ficar livre daquela dor. A minha mãe morreu com dignidade, morreu com a filha ao lado”. O velório foi restrito aos filhos e foi um momento bom, como ela diz. “Não posso reclamar. Sei que muita gente não teve esse momento. Ela estava num caixão aberto, pagamos para ela não ficar horrorosa daquele jeito. Eles fizeram as unhas, botaram batom, arrumaram cabelo, como ela gostava”, contou. Paola tem certeza de que a vacina teria dado uma possibilidade de vida à sua mãe. “Talvez ela não tivesse aguentado. Mas se tivesse sido vacinada, teria alguma chance”, pontua.
* Leia o relato “A dona Italira que habita em mim” escrito por Paola Falceta para o projeto Histórias e(m) Movimento em: https://bit.ly/3HN9pqk, também disponível em áudio: https://bit.ly/42u09iU.
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