A

Menu

A

Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou oficialmente a pandemia de covid-19, que viria a se tornar uma catástrofe global. Exatos quatro anos depois, o Ministério da Saúde anunciou a criação do Memorial da Pandemia de Covid-19, para homenagear as vítimas da maior crise sanitária que o Brasil enfrentou, resgatar o percurso da pandemia no país e ser um guia para que os mesmos erros não sejam cometidos em caso de possíveis e novas epidemias e pandemias.

O memorial será localizado no Centro Cultural do Ministério da Saúde (CCMS), um prédio centenário localizado na Praça XV, no Rio de Janeiro, e resulta de ação conjunta dos ministérios da Saúde e da Cultura. As ministras Nísia Trindade, da Saúde, e Margareth Menezes, da Cultura, firmaram um acordo que prevê políticas intersetoriais por intermédio de programas, projetos e ações conjuntas, utilizando a capilaridade do SUS e de pontos de cultura para chegar aos diversos territórios do país. 

“Estamos aqui para lembrar, mas também para projetar um Memorial que fale desse passado recente, que aponte caminhos para o nosso futuro, na saúde e na democracia”, disse a ministra da Saúde, Nísia Trindade, na abertura do Seminário Direito à memória: Lembrar para aprender, realizado em Brasília para concepção e criação do memorial. O memorial deve ter unidades em outras regiões e contar com acervo digital.

A ministra salientou que, ao falar de um memorial e de uma política de memória, não circunscreve a pandemia de covid-19 ao passado, já que os efeitos da crise sanitária ainda são sentidos. “Como todas as reflexões sobre memória, sabemos do componente presente, político, das ações de memória. E lembramos que, a despeito de termos superado a emergência sanitária, nós não superamos a covid-19 como problema de saúde pública”, afirmou.

Ministra da Saúde, Nísia Trindade, durante anúncio do Memorial da Pandemia de Covid-19: pela construção de políticas intersetoriais. — Foto: Julia Prado/Ministério da Saúde.
Ministra da Saúde, Nísia Trindade, durante anúncio do Memorial da Pandemia de Covid-19: pela construção de políticas intersetoriais. — Foto: Julia Prado/Ministério da Saúde.

Nísia salientou ainda que novas emergências sanitárias devem ser enfrentadas de outra forma. E foi além. Segundo ela, é preciso que a sociedade reflita de maneira muito mais aprofundada sobre o atual modelo de desenvolvimento, que impulsiona e prepara novas pandemias. “Nós construímos diariamente esse risco”, observou a ministra no encerramento do evento, em 12 de março. 

Margareth Menezes afirmou que o Memorial permitirá a troca de ideias e experiências de sobreviventes e familiares das vítimas, contribuindo para a construção coletiva e a memória. “Saúde é a cultura do cuidado. Podemos dizer que cuidar da saúde é a arte do bem viver. Construir culturas públicas de saúde é contribuir para o desenvolvimento sustentável”, afirmou. 

A titular da pasta da cultura lembrou também sobre as pessoas que estão por trás das estatísticas de 711.429 mil mortes e disse que, se cada uma delas deixou pelo menos quatro familiares, são quase 3 milhões de pessoas que perderam seus amados, sem poder dizer adeus. “A morte de uma pessoa deixa ferida aberta, a dor, deixa saudade”, observou.

Margareth Menezes, ministra da Cultura: "Construir culturas públicas de saúde é contribuir para o desenvolvimento sustentável”. — Foto: Julia Prado/Ministério da Saúde.
Margareth Menezes, ministra da Cultura: “Construir culturas públicas de saúde é contribuir para o desenvolvimento sustentável”. — Foto: Julia Prado/Ministério da Saúde.

Lugar de memória

O memorial deve abrigar uma exposição permanente para apresentar os episódios marcantes da pandemia, entre eles a desinformação, os estudos científicos para o conhecimento do vírus, a descoordenação de entes federativos, o caos pela falta de equipamentos e insumos, as milhares de mortes evitáveis provocadas pelo negacionismo e o desprezo à Ciência.

Ali também estarão a descoberta das primeiras vacinas, o mapeamento genético do vírus, as ações de solidariedade para disseminação das melhores práticas sanitárias e do combate à fome e ao desemprego e o avanço das soluções digitais para iniciativas médicas, sociais e culturais. Será, também, um espaço de acolhimento a todos que ainda sofrem com os impactos da pandemia. 

Instalado no palacete que abrigou o Pavilhão da Estatística nas comemorações do centenário da Independência, em 1922, o CCMS integra o Corredor Cultural do Rio de Janeiro. O prédio foi sede da Vigilância Sanitária portuária e um posto de vacinação por longo período. A expectativa é que a história da pandemia que estará exposta no Centro seja contada pela sociedade por meio da participação de diversos atores.

Essa é a primeira iniciativa oficial de resgate da memória da pandemia, mas já há no país outros espaços criados para lembrar e homenagear as vítimas. São memoriais, bosques, parques, instalações que fazem o reconhecimento necessário das perdas e do trauma provocados pela catástrofe sanitária. Eles se inserem como instrumentos para uma cultura de paz e respeito. 

Justiça e reparação

Pesquisadores, especialistas, profissionais de saúde, políticos, gestores, personalidades, ativistas, lideranças da sociedade civil e associações de familiares de vítimas relembraram trajetórias que marcaram a pandemia. Em seis mesas temáticas foram pontuados momentos importantes do período e, sem exceção, houve o pedido de justiça e reparação para que os crimes cometidos na pandemia sejam julgados e seus autores responsabilizados. Em vários momentos, foram destacados o trabalho e o empenho de profissionais do SUS que estiveram na linha de frente do combate à pandemia.

O evento foi um pleito das associações que defendem o direito das vítimas da covid por meio da Rede Nacional das Entidades de Familiares e Vítimas da Covid, integrada por Vida e Justiça, Avico Brasil e a Coalizão Nacional Orfandade e Direitos. Além do memorial, foi lançada a Nota Técnica 57/2023, que atualizou o protocolo e o manejo das condições pós-covid, a nova terminologia para definir a “constelação de sintomas e sequelas” que surgem três meses após a infecção.

Representante da Rede, Rosângela Dornelles disse que a pandemia foi agravada pela ausência de responsabilidade do Estado na coordenação das medidas, pelo desmonte de serviços públicos e pela naturalização de mortes caracterizadas como “aceitáveis”. “Foi um processo dramático vivido pela maioria das famílias”. Ela disse que a iniciativa do memorial fortalece os pedidos por responsabilização dos agentes públicos. “Para não esquecer jamais que a dor continua precisando, sim, reparar”, afirmou.

“Isso nos impõe promover a defesa da dignidade humana e da vida, responsabilizar os gestores públicos e privados negligentes ou omissos e recompor as políticas de direitos e proteção social de forma articulada, com ousadia e expectativas ampliadas de atenção integral”, completou.

“Para não esquecer jamais que a dor continua precisando ser reparada", disse Rosângela Dornelles, da Rede Nacional das Entidades de Familiares e Vítimas da Covid. — Foto: Matheus Brasil/Ministério da Saúde.
“Para não esquecer jamais que a dor continua precisando ser reparada”, disse Rosângela Dornelles, da Rede Nacional das Entidades de Familiares e Vítimas da Covid. — Foto: Matheus Brasil/Ministério da Saúde.

Trauma social

Márcia Rollemberg, secretária de Cidadania e Diversidade Cultural (SCDC) do MinC, afirmou que a iniciativa materializa a história recente e traduz a dimensão simbólica das profundas perdas e sequelas que sofremos e ainda vivemos. “As gerações futuras vão poder entender e aprender com essa experiência, que se constitui como espaço de reflexões para as lições aprendidas, as falhas no enfrentamento da crise e como podemos nos preparar para outras crises, a importância do SUS e a participação de toda a sociedade”.  

Fernanda Castro, presidenta do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), afirmou que instituições culturais são espaços de formação, de educação, de divulgação científica e de participação social. Para ela, o memorial será um espaço não de lamento, mas de lembrança, luta, resistência e de pensar no futuro. “Trazer memórias, mesmo que traumáticas, é muito importante para que a gente trabalhe na educação da população, uma educação científica, cidadã, e que visa construir a democracia. Ter esse memorial vai ser muito importante para a gente seguir adiante”, explicou.

Antônio Barra Torres, presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), afirmou que esse período da história não deve ser menosprezado. O memorial, segundo ele, servirá para que as gerações futuras conheçam o que aconteceu. “Para nós, não há dúvida do quão marcante foi, mas o tempo, às vezes, traz esquecimento para muitas coisas que não devem ser esquecidas”, alertou. Barra Torres já estava à frente da Agência na pandemia, sofreu pressões internas e externas e se viu alvo do ativismo político violento que lançou dúvidas sobre a efetividade e eficácia da vacina.

Hissam Hamia, presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), afirmou que é preciso aprender em todas as situações e momentos. “Passa um filme de quem viveu isso no dia a dia durante toda essa pandemia”, salientou. Ele lembrou que, na pandemia, a população passou a reconhecer o SUS como um “pilar”, um “porto seguro”. “Se não fosse o SUS, não sei o que seria de nós. Apesar de todo o movimento contra a vida, a ciência, o SUS, por outros interesses, nós sobrevivemos”.

“Contar a história da pandemia será um exercício importante de memória diante do trauma, da violência de Estado, o que tem sido negado para as outras tragédias brasileiras. Por isso, pode inspirar museus sobre o genocídio indígena, sobre a escravidão, sobre as condições brutais de trabalho, sobre o massacre nas periferias etc”, disse Pedro Arantes, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em artigo para o site do grupo de pesquisa Sou Ciência.

O professor participou de uma das mesas que debateu a informação como aliada da Ciência durante e depois da pandemia, que contou com a presença dos médicos Margareth Dalcolmo e Drauzio Varella e do comunicador digital Felipe Neto.

Os médicos Margareth Dalcolmo e Drauzio Varella e o comunicador digital Felipe Neto debateram sobre a importância da informação como aliada da Ciência. — Foto: Sergio Alberto/Ministério da Saúde.
Os médicos Margareth Dalcolmo e Drauzio Varella e o comunicador digital Felipe Neto debateram sobre a importância da informação como aliada da Ciência. — Foto: Sergio Alberto/Ministério da Saúde.

Crimes de Estado

Randolfe Rodrigues (Sem partido-AP), um dos senadores que participou da CPI da Covid-19, que investigou os crimes praticados na pandemia, lembrou que a humanidade constrói sua trajetória por símbolos, sobretudo para que os traumas humanos não sejam esquecidos. “O que ocorreu entre 2020 e 2021 foi o maior trauma da história brasileira. Nós vamos ter que conviver com novos vírus e pandemias. É uma advertência, para que não se esqueça, o que é fundamental para que não aconteça novamente”, observou. 

Randolfe e o senador Humberto Costa (PT-PE) solicitaram, em março, a Paulo Gonet, procurador geral da República, a reabertura dos inquéritos propostos no relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19. Encerrada em 20 outubro de 2021, a CPI levantou as ações e omissões do Governo do ex-presidente, tipificou crimes cometidos pelo Estado e pediu o indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outras 65 pessoas. Os pedidos anteriores de indiciamento foram engavetados por Augusto Aras, então titular da PGR. 

Com 1.180 páginas, o relatório da CPI acusa o ex-presidente dos crimes de prevaricação; charlatanismo; epidemia com resultado de morte; infração a medidas sanitárias preventivas; emprego irregular de verba pública; incitação ao crime; falsificação de documentos particulares; crime de responsabilidade e crimes contra a humanidade. Ao todo, foram identificados 29 tipos penais e sugerido o indiciamento de 66 pessoas, entre deputados, empresários e dois ex-ministro da Saúde. Foram apontados ainda crimes cometidos pelas empresas Precisa Medicamentos e a VTCLog. 

“A nossa luta tem que continuar porque os criminosos continuam agindo, difundindo mentiras. É preciso combater essas pessoas em todos os campos possíveis”, disse Humberto Costa. Vamos continuar lutando para que os responsáveis pela maior tragédia brasileira sejam punidos pelos crimes atrozes que cometeram”, observou. 

Veja o vídeo do seminário em:
Dia 1https://www.youtube.com/watch?v=sSsC068afEc
Dia 2https://www.youtube.com/watch?v=CCBPj_I8WNo

Veja a cobertura de Radis sobre a pandemia de covid-19
Sem comentários
Comentários para: Para não esquecer as vítimas da covid-19

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Anexar imagens - Apenas PNG, JPG, JPEG e GIF são suportados.

Leia também

Próximo

Radis Digital

Leia, curta, favorite e compartilhe as matérias de Radis de onde você estiver
Cadastre-se

Revista Impressa

Área de novos cadastros e acesso aos assinantes da Revista Radis Impressa
Assine grátis