O financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) segue como um dos maiores impasses da política pública brasileira. Escassez de recursos, má distribuição orçamentária e crescente privatização da saúde compõem um quadro que ameaça o caráter universal e equânime do sistema. Em meio à celebração dos 35 anos do SUS, especialistas destacam que os desafios permanecem e, em muitos aspectos, se agravam.
A economista Mariana Alves Melo, que integra a Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES), identifica dois “macroproblemas” no financiamento: a insuficiência crônica de recursos e a dificuldade de destinação adequada aos territórios sanitários. “A gama e a diversidade das necessidades de saúde são muito maiores do que aquilo que o sistema consegue financiar. E, quando o recurso existe, muitas vezes o gestor esbarra em dificuldades para destiná-lo ao que é prioritário”, aponta. O resultado, diz ela, é um impasse permanente: “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.”
Mariana participou da Mesa “Financiamento e Gestão do SUS”, em evento organizado pelo portal Outra Saúde em conjunto com o Instituto Walter Leser, a Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro) e o Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Santa Casa de São Paulo. Radis esteve em São Paulo (18 e 19/9) e acompanhou toda a programação alusiva aos 35 anos do SUS.
Para Mariana, a questão é estrutural. “Conquistamos um sistema universal de saúde no exato momento em que os recursos públicos começaram a ser disputados pelo setor privado. O Estado não deixou de gastar, ele simplesmente passou a subsidiar o privado.” Ela lembra que o SUS nasceu nos anos 1980, em plena virada neoliberal, e que o financiamento sempre foi tensionado pela presença crescente do capital privado na saúde.
Mariana cita ainda a 9ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada em 1992, que teve como tema “Municipalização é o caminho”. Embora a regionalização não fosse o assunto principal, ela se tornou um conceito crucial e uma diretriz. Foi discutida e reforçada como parte integrante do processo de descentralização do SUS.
A desigualdade na repartição de responsabilidades entre os entes federativos agrava o problema. “Hoje, os municípios respondem por quase 34% do gasto total do SUS, mesmo sendo os que têm menor capacidade arrecadatória”, afirma.
Para ela, esse desequilíbrio compromete a ampliação e a diversificação da oferta de serviços. A economista também defende a regionalização como saída para uma alocação mais racional e justa dos recursos. “Regionalizar as redes de atenção é essencial para dirimir desigualdades, mas isso ainda não saiu do papel. Sem espaços de articulação interfederativa e participação social efetiva, a regionalização seguirá sendo promessa. Se não houver integração entre municípios, estados, União e sociedade civil, não vamos construir soluções reais para o financiamento do SUS”, alerta.

Desigualdades e fragilização
Para a sanitarista Marília Louvison, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), que também participou da Mesa sobre Financiamento e Gestão, o sistema atravessa uma encruzilhada. “O SUS está escapando pelos nossos dedos. E o único jeito de enfrentar isso é constituir redes que assegurem o nosso projeto democrático”, diz.
Ela aponta que, embora o SUS seja universal por definição, o desequilíbrio entre gastos públicos e privados corrói sua essência. “Quando você olha para o mundo, vê que o Brasil é o único país que se diz universal e tem mais gasto privado do que público. Onde foi que perdemos o rumo?”
Marília critica ainda a personalização de políticas públicas, como ocorre nas emendas parlamentares, que fragilizam o caráter público do sistema. “O tomógrafo conseguido por emenda não é do deputado, é do SUS. Mas quando a autoridade política o inaugura como conquista pessoal, reforça a lógica de que o sistema é dependente de favores, e não de um projeto coletivo.”
Ela cita que as emendas também desviam parte do dinheiro do SUS. “Devemos enfrentar. Sem controle e participação dos trabalhadores da saúde e usuários, não será possível reconstruir o pacto social”.
A representante do Conselho das Secretarias Municipais de Saúde de São Paulo (Cosems/SP), Aparecida Pimenta, corrobora sobre a necessidade de se ter uma maior integração entre as esferas públicas. “Cidades pequenas sequer têm equipe de gestão e encontram muitas dificuldades de apoio técnico do governo estadual. Uma tarefa enorme dos municípios, por exemplo, é transportar pacientes para o atendimento de média e alta complexidade. Isso tem custo elevadíssimo, mas não há apoio”.
Ela lembra que muitos dos desafios atuais são antigos, mas que ganham novas camadas no contexto contemporâneo. “O que o Brasil precisa hoje é o mesmo que precisava 35 anos atrás. Mas, agora, temos novos elementos, como a saúde digital, que é essencial para democratizar o sistema. Temos a necessidade de repensar os mecanismos de participação popular, que já não dão conta dos desafios do mundo de hoje.”
Para ela, o maior desafio talvez seja engajar os próprios trabalhadores do SUS na construção de um sistema público comprometido com a cidadania. “Se os trabalhadores do SUS não estiverem comprometidos com o projeto do sistema, não vamos conseguir avançar”, alerta. E destaca: “A gente precisa reconstruir tudo o que foi desmantelado, especialmente na saúde mental.”

Saúde e desenvolvimento
Na palestra de abertura do evento, o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão chamou a atenção para outro ponto negligenciado no debate: o papel da saúde como motor de desenvolvimento econômico, tecnológico e industrial. “O senso comum coloca a saúde como assistência, cuidado, atenção. Mas a saúde tem uma dinâmica econômica própria, e esse lado não vinha sendo tratado de maneira articulada”, afirma. Segundo ele, o setor reúne condições únicas para impulsionar inovação e soberania.
“Somos um país com 213 milhões de habitantes. A conta-saúde representa entre 9% e 10% do PIB, são 12 milhões de empregos diretos e indiretos. A saúde está na plataforma das tecnologias do futuro (biotecnologia, nanotecnologia, química fina, inteligência artificial, microeletrônica). Temos uma das melhores agências reguladoras do mundo, temos o SUS e o poder de compra do Estado. O Brasil pode e deve ser um player global ao lado de Índia e China.”
Temporão também destacou o papel da ministra Nísia Trindade Lima na retomada da política industrial e tecnológica da saúde após a paralisia entre 2016 e 2022. A reorganização das encomendas tecnológicas e o fomento à inovação recolocam o país, segundo ele, em um novo patamar de autonomia e capacidade produtiva. “Um passo fundamental no caminho da autossuficiência”.

SUS e o futuro
Na conferência de encerramento do evento 35 anos do SUS, Gonzalo Vecina, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), disse que o SUS enfrenta um enorme desafio em relação ao acesso. “Quanto tempo demora para se diagnosticar um câncer? Quanto tempo se leva para tratar um câncer ou fazer uma cirurgia ortopédica de grande porte? Geralmente demora muito e a gente não tem o menor controle sobre isso”, critica.
Vecina cita o sistema de transplantes como exemplo de política pública bem-sucedida. “95% dos transplantes no Brasil são realizados pelo SUS, mesmo com 25% da população coberta por planos privados. É um modelo baseado em duas premissas fundamentais: gravidade e ordem de inscrição. Um exemplo de justiça e organização.”
Ele lembra, no entanto, que o avanço do SUS ainda não alcançou todos os brasileiros. “Nesses 40 anos de SUS, ganhamos 20 anos de expectativa de vida, mas esses 20 anos não chegaram a todos. Eu moro no Alto da Lapa [em São Paulo], onde a expectativa de vida é de 85 anos; a 70 quilômetros dali, na Cidade Tiradentes, é de 65. Essa desigualdade é o desastre que precisamos combater.”
Para Vecina, o futuro da saúde pública está intimamente ligado à luta contra as desigualdades. “O SUS tem um papel essencial na construção de um mundo mais igual. Se o mundo não for mais igual, não é um bom mundo. E a saúde tem um lugar particular nesse futuro.”
Ana Estela Haddad, secretária de Informação e Saúde Digital do Ministério da Saúde, reflete sobre as novas tecnologias. “Precisamos pensar uma transformação digital que reafirme os princípios da reforma sanitária do SUS, dentro dos quais certamente está o conceito ampliado de saúde”, aponta.
Luiz Vianna Sobrinho, doutor em Bioética e Saúde Coletiva da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), vai além. Relembra a previsão do empresário Bill Gates de que a Inteligência Artificial (IA) irá substituir os médicos até 2030. “Iremos deixar isso realmente acontecer? Como se dará a relação entre pacientes e profissionais de saúde? Uma coisa é ser substituído manualmente por forças mecânicas, como vemos desde a industrialização, outra é ser substituído por tecnologias cognitivas”, reflete.
Jairnilson Paim, sanitarista e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que também participou do encerramento do evento, lançou uma reflexão. “O maior desafio do SUS é político. É poder enfrentar as desigualdades. É poder enfrentar a relação público-privada. É preciso ampliar suas bases sociais e políticas”, avalia.
Universalização exige investimentos
Estudo publicado em outubro de 2025 pela revista Health System sugere que regiões com populações mais dispersas no planeta, como o Centro-Oeste brasileiro, deveriam ter mais clínicas, centros de saúde e pequenos hospitais. O Brasil desponta como um caso emblemático das desigualdades territoriais no acesso à saúde. O tamanho continental do país e a dispersão populacional ampliam a necessidade de planejamento para equilibrar proximidade e eficiência. A pesquisa confirma que, embora o SUS seja um dos maiores e mais abrangentes sistemas do mundo, persistem lacunas históricas na distribuição de serviços entre regiões.
Para alcançar a universalização real, é preciso planejamento territorial, financiamento estável e integração entre níveis de atenção, concluem os autores João Flávio Almeida, Fabricio Oliveira, Samuel Conceição, Virginie Goepp e Francisco de Campos. Segundo matéria publicada no site do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em 26 de outubro, o estudo indica que o Brasil deveria contratar mais profissionais de saúde, adquirir mais equipamentos de radioterapia e investir US$ 7,95 bilhões em logística para reduzir o tempo de deslocamento dos pacientes, especialmente nos 1.222 municípios mais afetados pela baixa acessibilidade.

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