Paola banhou sua mãe no quarto do hospital e viu seu lento apagar. Lucynier lembra com detalhes o momento que seu filho foi levado para uma clínica e nunca mais voltou. Leonardo não conseguiu se despedir da mãe e do irmão. Laíza viu a avó dizer adeus antes de ser internada. Wilson perdeu a mãe e dois irmãos e ficou com um quarto vazio à frente. Millena perdeu o amor de sua vida para a covid-19.
Saudade, dor, revolta, aceitação e luto permanente são sentimentos que surgem a partir de entrevistas feitas com familiares de vítimas da covid-19. São mães, filhos, pais, irmãos, esposas e maridos que partiram e que estão entre os números e as vidas levadas pela pandemia.
Segundo dados do Ministério da Saúde, mais de 703 mil pessoas morreram por covid-19 até o dia 13 de junho de 2023. As mortes não foram uma fatalidade como muitos querem fazer crer. Ceifaram vidas e desestruturam famílias. De acordo com levantamento da Fiocruz, nos dois primeiros anos da pandemia, quase 42 mil crianças e adolescentes perderam suas mães por covid-19 no Brasil.
O tamanho da tragédia equivale ao desaparecimento de uma cidade como Osasco, que fica a 23 quilômetros da capital São Paulo e tem 699 mil habitantes. Equipara-se, também, à queda de 3,7 mil aviões, com capacidade de 189 passageiros cada um. É como se 2,1 mil deles caíssem em 2021, o ano em que mais morreram brasileiros por covid-19. Assim como não é possível ocupar um rombo deixado em um mapa, não há como substituir o lugar de cada uma dessas pessoas.
Com tantas vidas perdidas, a luta, no Brasil, não foi apenas contra o vírus. A pandemia foi mais que a doença causada pelo SARS-CoV-2, um vírus da família dos coronavírus. Ela foi agravada por um discurso oficial negacionista, pela avalanche de informações falsas e desencontradas, pela automedicação e divulgação de tratamentos ineficazes, pelo discurso antivacina e pela propagação de comportamentos contrários às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da ciência.
Os movimentos de familiares de vítimas clamam por justiça e reparação. “Sem anistia” é um lema que voltou a ser defendido por aqueles que lutam para que a memória da pandemia não seja apagada. A discussão lembra a necessidade de se resgatar a memória e definir os responsáveis pelos crimes cometidos durante a ditadura militar.
Radis conversou com familiares de vítimas da covid-19, que se colocam também como vítimas e testemunhas da tragédia. Paola Falceta, de Porto Alegre; Lucynier Omena, de Manaus; Leonardo Accioly, do Recife; Laíza Diniz, Wilson Cotrim e Millena Buçard, do Rio de Janeiro, falaram à reportagem sobre a morte de seus familiares, o luto diário e as transformações trazidas pela covid-19 em suas vidas.
Suas memórias e vivências dizem não apenas sobre os que partiram, mas tecem a linha do tempo trazida pela reportagem com momentos marcantes da pandemia. São testemunhos que, no presente, atualizam o horror do passado. Para estes brasileiros que perderam pessoas amadas, resta a lembrança, o luto e a luta.
“Não pode ter sido em vão”
Leonardo Accioly perdeu parte da família em 2021. Por 42 dias, ele acompanhou a luta da mãe, Maria Zuleide, e do irmão, Carlos Gilberto. Após a infecção por covid-19, pouco tempo se passou até que seus familiares fossem internados, transferidos para a UTI e intubados em hospitais do Recife.
Na madrugada de primeiro de julho de 2021, ano em que a pandemia mais matou no Brasil, o celular de Leonardo tocou duas vezes para comunicar a morte de seus familiares. À uma da manhã, ele seguiu para o hospital onde Kiko, como Carlos Gilberto era conhecido, estava internado, e soube que seu irmão tinha morrido. Quatro horas depois, descobriu que a mãe também não tinha resistido.
Ao amanhecer, Carlos Gilberto Accioly da Silva Filho, de 46 anos, e Maria Zuleide Rocha Accioly, de 80 anos, estavam entre as 535 mil pessoas que até então tinham perdido a vida no país desde o início da pandemia. “Um relacionamento pessoal que se desfaz pode ser substituído por outro. Uma amizade também. Uma perda, não. Meus familiares não vão ser substituídos por outros”.
Para o advogado, as mortes de sua mãe e seu irmão não podem ficar impunes ou ter sido em vão. Segundo ele, o crime de extermínio coletivo da população tem nexo causal direto com a conduta omissiva [abstenção ou não fazer] e comissiva [fazer algo proibido] dos agentes da administração pública. “Esse crime tem nome, sobrenome, CPF, mas o nosso sistema jurídico tem aversão à responsabilização pessoal diante de crimes dessa natureza”, observa.
Leonardo acredita que é improvável que uma ação criminal pessoal tenha conclusão positiva na justiça. “A tradição jurídica brasileira e nos nossos tribunais superiores é a de despersonalizar do agente público a responsabilidade por atos de omissão quando esses são difusos. É diferente de um agente público quando comete um ato de improbidade ou um ato criminal diretamente relacionado a ele que pode ser criminalmente acusado”, explica.
Em busca dos culpados
No caso da pandemia de covid-19, não houve, segundo ele, uma ordem direta do ex-presidente Jair Bolsonaro de assassinar uma pessoa, mas atitudes concretas que causaram danos irreparáveis a uma enorme quantidade de pessoas, sem precedentes na história do país. “O Judiciário é reticente diante desse tipo de barreira, que não existe no mundo civilizado ocidental, mas existe no Brasil”, salienta.
Ele sugere a criação de um marco legal para essas situações. “A lei tem que dizer expressamente que o governante não pode negar os fatos científicos por mais que seja uma enfermidade nova, ir de encontro a vacinas ou incluir protocolo no Ministério da Saúde com medicamento ineficaz”, observa.
Segundo Leonardo, com um marco legal, os agentes públicos serão obrigados a considerar a ciência e ter responsabilidade com a saúde pública no Brasil. “Não importa que alguma organização ou médico diga que funciona quando a OMS diz que não funciona. Ele não vai poder fazer uso disso”, salienta.
Para muitos estudiosos, o contexto que perpassa a pandemia de covid-19 e a forma como os governantes lidam com ela justifica a aplicação do conceito de justiça de transição. Apoiada em quatro eixos, a justiça de transição envolve o direito à memória e à verdade; as reformas institucionais; as reparações simbólicas e financeiras; e a responsabilização por atos praticados.
Recentemente, o termo entrou mais em evidência com o filme Argentina, 1985, em que um julgamento histórico revelou os horrores da ditadura no país vizinho. No Brasil, foram 20 anos de ditadura civil-militar e a memória daquela época ainda permanece na obscuridade. Os ativistas defendem que o Brasil tem que se defrontar com os erros e os crimes cometidos na pandemia para que esse momento não se repita no futuro.
“Os atos têm que ser responsabilizados”
A Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico Brasil) é uma das entidades que assina a Agenda Covid-19 por Reparação e Responsabilização. Fundada em abril de 2021, em Porto Alegre (RS), a Avico surgiu a partir da indignação do advogado Gustavo Bernardes e da assistente social Paola Falceta com a ineficiência e negligência do Estado diante das consequências da pandemia na vida dos brasileiros. Ambos tiveram suas vidas modificadas pela covid-19.
Gustavo foi internado, intubado e desenganado no fim de 2020. Conseguiu se salvar e ficou com sequelas da doença. Paola foi infectada enquanto cuidava da mãe, que morreu no hospital após um ano de isolamento em casa. Inconformada, ela se juntou a Gustavo na luta por justiça em relação a erros e omissões do ex-presidente, de autoridades e gestores na condução da pandemia.
Paola é a atual presidente da Avico. Ela trabalha na Universidade Federal da Ciência da Saúde (UFCSPA) e é pesquisadora de um projeto sobre covid de longa data na Fiocruz. A conversa da assistente social com Radis foi pontuada por lágrimas e lembranças dolorosas, numa entrevista concedida por videochamada.
Era início de 2021 e o Brasil enfrentava a disseminação exponencial do vírus e a superlotação de hospitais. Dona Italira, a mãe de Paola, manifestou os sintomas da covid e foi internada. No hospital, sua idade foi usada como barreira para acesso a recursos como respiradores, kit de intubação e vagas de UTI, caso ela precisasse. “Esses seriam destinados aos jovens”, Paola conta. Como tantos idosos brasileiros, Dona Italira foi vítima de etarismo, o preconceito decorrente da idade, que cresceu durante a pandemia no cenário de escassez e disputa por recursos que poderiam salvar vidas.
Dezenove dias após ser internada, a gaúcha Italira Susana Falceta da Silva, de 81 anos, morreu na madrugada de 2 de março de 2021, no Hospital Conceição, em Porto Alegre. Depois de sua morte, Paola passou a buscar a responsabilização das autoridades e do Estado por meio da Avico. De 18 pessoas presentes à primeira reunião, a Avico tem hoje mais de 1,8 mil pessoas cadastradas e 500 famílias associadas em 24 núcleos estaduais.
A associação entrou com representação criminal na Procuradoria-Geral da República (PGR), em junho de 2021, e queixa-crime no Supremo Tribunal Federal (STF), em abril de 2022, contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, por sabotar o combate à covid-19. O ex-presidente é acusado de cometer nove crimes: prevaricação; charlatanismo; infração de medida sanitária preventiva; incitação ao crime; perigo para vida ou saúde de outrem; subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento; epidemia com resultado morte; emprego irregular de verbas públicas; e falsificação de documento particular.
Desejo de reparação
Em outra frente, a ação civil pública (ACP) ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF), em dezembro de 2021, com assessoria testemunhal e jurídica da Avico, busca que a União seja condenada a reparar as perdas das famílias e vítimas da covid-19. O MPF entende que houve inação do Estado e da União. O órgão pede indenização por danos morais e materiais e a criação de um fundo nacional que faça o mapeamento de demandas e formule política pública de cuidado, apoio e assistência à covid longa, e para reparação individual das famílias.
“A União tem condições de bancar. Isso é uma prioridade”, garantiu Paola à Radis. Ela lembrou que a reparação por covid será equivalente a outras pensões especiais, como a das vítimas da talidomida [que nasceram com deformidades ou anomalias] e hanseníase [isoladas de forma compulsória em hospitais-colônia até 1986]. Em março de 2023, o STF rejeitou a queixa-crime. Paola afirmou que a Avico vai continuar lutando pelo andamento da ACP no Judiciário. “Essa ação vai rolar por muitos anos. Como todas as ações civis no Brasil, é uma lenda para a gente responsabilizar o Estado”, diz Paola.
De acordo com a assistente social, a ação civil pública e a representação criminal são históricas. “Nenhuma associação conseguiu fazer isso antes. O gestor público deve entender que se ele agir com intenção política, ele vai ser responsabilizado criminalmente. Na pandemia, não ocorreu negligência ou ineficiência. O grupo que estava na gestão entendia que essas pessoas que morreram eram descartáveis”, observou.
Paola lembrou a ausência, a omissão e o incentivo do Estado na política de prevenção e cuidado. Segundo ela, as atitudes do ex-presidente podem ser enquadradas em pelo menos três artigos do Código Penal. Juntas, as sentenças estabelecem penas mínimas de dois anos e quatro meses e máximas de sete anos, mais multas.
Para ela, a vacina teria dado uma possibilidade de vida à sua mãe. Paola lembra que o ex-presidente não comprou as vacinas da Pfizer e não aceitou vacinas do Instituto Butantã que poderiam ser distribuídas em novembro de 2020. “Se tivesse sido vacinada, teria alguma chance”, pontua. Segundo ela, a imunização não aconteceu por causa do negacionismo e da aposta em tratamentos ineficazes. “O gestor público tem de saber que não pode fazer o que quiser e que seus atos vão ter uma implicação no dinheiro da União, ou dos governos estadual ou municipal”, observa Paola.
Direito à memória
O direito à memória, justiça e reparação das famílias atingidas diretamente pela covid-19 é a bandeira levantada por associações que querem responsabilizar o Estado pelos crimes praticados na pandemia de covid-19. Entre elas, estão a Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico Brasil); a Associação Nacional em Apoio e Defesa dos Direitos das Vítimas da Covid-19 Vida e Justiça; e a Coalizão Nacional pelos Direitos das Crianças, Adolescentes e Jovens sob Orfandade Causada Pela Covid-19 no Brasil.
Junto com a Frente pela Vida, as três associações estiveram à frente da Conferência Livre Nacional de vítimas e familiares de vítimas da Covid-19, que ocorreu de forma online na noite de 22 de maio de 2023. Diante de um evento politraumático, como a pandemia, a Conferência referendou “que não podemos esquecer (memória), que devemos responsabilizar quem deve ser responsabilizado (justiça) e que precisamos seguir cuidando (reparação) de todos”. Além disso, ressaltam que as políticas destinadas ao cuidado com as vítimas da pandemia devem ser transversais e intersetoriais. As diretrizes e propostas de ações aprovadas no evento serão levadas à 17ª Conferência Nacional de Saúde, em julho, em Brasília.
Em uma fala inicial, a sanitarista Lucia Souto considerou que esta foi a conferência livre mais importante dentre as 106 que aconteceram no país. “O impacto da covid é equivalente a desastres ambientais. Pessoas foram criminosamente assassinadas nesse período, nesse projeto de necropolítica”, afirmou. Segundo ela, é preciso entender que a vida da população não tem preço. “Precisamos ter políticas de cuidado para que essa violência não aconteça”, disse.
“Não tem um dia que eu não pense neles”
Quando as pessoas queridas se vão, “fica o vazio”, como disse o designer Wilson Cotrim de Carvalho que em 20 dias perdeu a mãe, Maria Eugênia, e dois irmãos, Wilton e Claudio. Dois anos depois, o carioca, morador de Magé, município da Baixada Fluminense, ainda vive de forma intensa o sofrimento da perda familiar tripla. “A ficha cai quando você entra nesse universo dos números. A minha família está ali, faz parte deles. Ninguém imagina passar por isso”, disse.
Wilson e Wilton eram gêmeos e mantiveram uma conexão profunda durante a vida. Partilhavam a mesma profissão, eram parceiros e construíram suas casas em um mesmo terreno. Entre o passado e o presente, Wilson revela uma história comum a outros brasileiros que perderam familiares. A presença diária desses ausentes mostra um trajeto de dor, saudade e culpa que surge na entrevista à Radis.
Dona Maria Eugênia Cotrim de Carvalho, 75 anos, morreu em 4 de abril; Wilton Cotrim de Carvalho, 51 anos, no dia 8; e, Claudio Cotrim de Carvalho, 53 anos, faleceu em 25 de abril de 2021. “Não tem um dia que eu não pense neles”, afirma Wilson. “Quando você perde três de uma vez só, não sabe para onde olhar”. A esposa e as filhas são um suporte, mas o buraco está sempre lá, ele garante. “É como se fosse a porta de um quarto escuro que ‘você’ não quer mais entrar. É muito difícil, mas eu tenho de seguir em frente”.
“Ainda sinto a falta dele”
Thiago Vinícius da Silva, o amor de Millena Buçard, estava entre os mortos no início da pandemia. Em março de 2020, ele teve falta de ar e febre e logo Millena relacionou com sua insuficiência cardíaca provocada por um sopro no coração de Thiago. Não era. Três dias depois, ele foi ao médico e uma tomografia mostrou que 55% de seu pulmão estava tomado. Em 26 de março de 2020, Thiago foi internado e encaminhado para o CTI. Ali, Millena disse que sentiu que já era a despedida.
Logo depois, Millena também teve covid e o casal ficou internado no mesmo hospital, ao mesmo tempo. Ela permaneceu 7 dias e ele 21. Ela voltou para casa, ele não. Thiago Vinícius, nascido no Rio de Janeiro, de 33 anos, faleceu em 16 de abril, uma semana antes do aniversário da esposa. Em dois meses, Millena não saiu de casa e viveu o luto intensamente. Em uma conversa emotiva com Radis, ela contou que foi difícil retomar a vida. “Eu queria morrer. Era uma dor surreal. Eu não acreditei que estava passando por aquilo”, relembra.
Hoje, Millena usa sua dor para ajudar outras pessoas que enfrentam o mesmo processo. “Eu acho que o tempo traz a cura”, diz. Sobre o marido, afirma: “Thiago era incrível, querido por todos. Fico triste porque eu sinto muito a falta dele principalmente para dividir as conquistas”, assume.
“Três anos”
Os números ilustram a irresponsabilidade do governo Jair Bolsonaro na condução da pandemia de covid-19, que teve seu primeiro caso confirmado no país em 26 de fevereiro de 2020. Três meses depois, em 15 de maio, o general Eduardo Pazuello assumiu o Ministério da Saúde e quase 25 mil pessoas tinham morrido por covid-19. Quando deixou a pasta, em 15 março de 2021, eram 260 mil pessoas mortas, um aumento de 940% em 14 meses de gestão.
O Brasil continuou a somar mortos de forma exponencial e elas passaram a dimensionar a tragédia sanitária. Entre as vítimas, estava Daniel Tiago Omena Melo, um geógrafo que trabalhava na Secretaria Municipal de Limpeza Urbana (Semulsp) de Manaus. Na pandemia, ele foi deslocado para atuar no cemitério Nossa Senhora Aparecida.
Tiago, como era chamado em casa, não era profissional de saúde e por isso não entrou na fila prioritária da vacina, que começou a ser aplicada no país em janeiro de 2021. Em 6 de março, ele começou a tossir; no dia 9, foi internado; e, dez dias depois, intubado. Após 42 dias em cuidados intensivos, o manauara de 39 anos morreu em 2 de abril de 2021.
Dois anos depois, sua mãe Lucynier Omena tenta refazer a vida. Em protesto, ela estendeu uma faixa na varanda da casa em que morava com o filho. Em 29 de abril de 2021, a faixa estampava o número 400 mil junto ao rosto de Tiago e assim ela fez a cada 100 mil pessoas mortas a mais na contagem dos óbitos. Em 2023, no aniversário de morte do filho, Lucinyer colocou outra faixa na varanda com os dizeres “Três anos”.
A dor e a revolta atravessam a todo momento a conversa por videoconferência de Lucynier com Radis. “É devastador perder um filho. Foi uma violência muito grande”, diz. Seu desejo é que o governo contabilize mortos para melhor dimensionar a responsabilização. Ela luta pela memória dos que se foram, condena quem minimiza a doença e continua usando máscara para que a pandemia não seja esquecida. “Eu olho na rua e parece que é outro mundo. Está tudo funcionando normalmente, só eu que continuo com o meu quarto vazio, sem o meu filho”.
Escalada de mortes
Em 10 de maio de 2023, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que cria o Dia Nacional em Memória das Vítimas da Covid-19, que será celebrado anualmente em 12 de março. A data marca a morte de Rosana Aparecida Urbano, de 57 anos, a primeira vítima da doença no país. Rosana tinha 57 anos e faleceu no Hospital Municipal Dr. Carmino Cariccio, em São Paulo, segundo informações divulgadas pelo Ministério da Saúde. Em menos de 50 dias, a família também viria a perder a mãe, o pai, a irmã e o irmão de Rosana.
Depois da morte de Rosana, o Brasil foi vendo a escalada de vítimas. O cenário tinha sido previsto por cientistas embasados em dados internacionais, mas recebeu o desdém de muitas autoridades e brasileiros que achavam que a onda seria pequena. Gradativamente, o “tsunami” de infecções pegou o Brasil de Norte a Sul aumentando gradativamente as mortes. Uma pesquisa do Observatório de Saúde na Infância (Observa Infância), publicada em dezembro de 2022, revelou que a covid-19 foi responsável por um quinto de todas as mortes registradas no Brasil (19%) entre 2020 e 2021.
Quando o Brasil atingiu o patamar de 500 mil mortes, Pedro Hallal, epidemiologista e então pesquisador da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), apresentou os dados do Epicovid, o maior estudo epidemiológico sobre a doença no Brasil, na CPI da covid-19, a Comissão Parlamentar de Inquérito que foi criada para apurar as omissões e irregularidades do governo federal na pandemia. O levantamento apontou que a quantidade de pessoas infectadas era três vezes maior do que os dados oficiais.
Em 24 de abril de 2021, o pesquisador afirmou, no Senado, que quatro em cada cinco mortes pela doença no país eram evitáveis. Dois anos depois, Pedro Hallal, agora professor da Universidade de Illinois Urbana-Champaign, nos Estados Unidos, afirmou à Radis que a mortalidade por covid-19 no Brasil é quatro vezes maior do que a média mundial. “Se o Brasil tivesse uma mortalidade igual à média mundial, teríamos evitado 525 mil mortes. As razões para isso são múltiplas, mas quase todas se relacionam com o negacionismo científico implementado como política de saúde pelo governo anterior”.
* “Tragédia e luto no Brasil” é uma série criada pela Radis que traz histórias e depoimentos sobre o período da pandemia.
Fim da emergência
Em 5 de maio de 2023, Tedros Adhanom, presidente da OMS, anunciou o fim da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII), declarada pela organização em 30 de janeiro de 2020, a sexta em sua história (Radis 210). Na época o mundo desconhecia o padrão de transmissão do novo coronavírus. Três anos depois, o presidente da organização apontou que, com a queda nas hospitalizações e óbitos e avanço da vacinação, os países poderiam colocar a covid no mesmo patamar de outras doenças infecciosas.
O anúncio foi comemorado como “fim da pandemia”. Não era, como confirmou a ministra da Saúde Nísia Trindade, dois dias depois em pronunciamento nacional (7/5), no qual chamou atenção para a continuidade da pandemia já que a doença ainda existe, mesmo em níveis mais controlados. “Depois de termos passado por um período tão doloroso, nosso país recebe essa notícia com esperança. Ainda vamos ter de conviver com a covid-19, que continua evoluindo e sofrendo mutações. É hora de intensificar a vacinação contra covid-19”, afirmou.
Nísia lembrou um dado fundamental para a compreensão da tragédia brasileira: no país vivem cerca de 2,7% da população mundial e houve 11% do total de mortes. Ao todo, foram cerca de 7 milhões de mortes e 765 milhões de casos em todo o mundo. Para a ministra, as perdas de tantas vidas, boa parte delas evitáveis, foi o pior impacto que a pandemia deixou. “Precisamos preservar essa memória para podermos construir um futuro digno”, afirmou.
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