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Sentado no único lugar vago que encontrei no ônibus lotado, olho a tela, leio a manchete no celular, aperto a tecla like, imediatamente apago e procuro outra opção para o quase automático emoji que hoje virou o coringa do teclado. Em algum momento naturalizamos o uso da figurinha que mostra o sinal de “legal” como sinônimo de recebimento da mensagem. Ainda não leu? Ainda não tem o que dizer sobre o assunto? Aperta o like e vai na fé, como dizem os cariocas. 

Não havia como dar um like desavisado à notícia que recebi, via WhatsApp, que registra algo que vejo ao meu redor, neste suado novembro de 2023 (Leia matéria clicando aqui). A cidade, o país, o mundo, tudo ferve. O calor se tornou notícia cada vez mais frequente no noticiário, foi hashtag bombada boa parte do ano nas redes sociais, dificultou a vida cotidiana, modificou rotinas profissionais, adoeceu muita gente e, numa tendência crescente e preocupante, ceifou vidas. O negócio é sério.

Procuro ser rápido para encontrar outro emoji e decido digitar três vezes o que mostra uma pequena chama. Eu mesmo me sinto pegando fogo, naquele ônibus que cruza a Avenida Brasil em direção ao Centro do Rio de Janeiro. Inserido até a alma no desconforto de mais um coletivo sem ar-condicionado circulando pela cidade, penso que 2023 vai ser lembrado como o ano em que se sofreu muito com o calor.

Não é de hoje que os cientistas avisam sobre os efeitos da crise climática, pondero, acompanhando a gota de suor que escorre pelas minhas costas. No termômetro que acaba de passar pela minha visão, vejo registrados os já corriqueiros 40 graus. À sombra.

O calor tem cor e classe

Tarde quente na cidade grande. Protegendo-se do sol na sombra projetada pelo viaduto, em São Cristóvão, uma família espera condução, mãe à frente, filhos e bolsas sob a sua tutela. Ela enxuga o rosto, com a mesma toalhinha de mão com a qual protege o rosto da criança menor, recostada ao seu colo. Amor e maternidade desafiando e se impondo diante da realidade crua de trânsito, fuligem e poluição insalubre. 

O calor chegou com força à vida desta jovem mãe, de seus filhos, à minha, à sua. Vejo a cena e me vem à cabeça o post do professor Thiago Amparo, no Instagram (14/11): “O calor tem cor e tem classe”. O alerta, escrito em caixa alta, reforça o cuidado que devemos ter em não naturalizar a temporada de altas temperaturas. Não somos todos afetados do mesmo modo, fato. Assim como os vírus e as pandemias, o calor também não é nada democrático. E afeta com maior intensidade aqueles que já enfrentam outros problemas, como racismo e pobreza.

De todo modo, percebo que a sensação da iminência do perigo fez muita gente ligar o sinal vermelho, em 2023. Parte por autoconsciência, parte por autoproteção, outra por pura pressão, está mais difícil não enxergar a realidade de que já vivemos a crise climática. Há muito está nas recomendações de povos originários, nos trabalhos acadêmicos, mas o que antes era alerta de algo distante agora começa a se sentir no cotidiano [Leia entrevista com o pesquisador Carlos Machado, “Ultrapassamos o limite”, Radis 253]

Do Arroio ao Chuí, da Antártida ao Saara, da Ilha de Páscoa ao arquipélago de Tuvalu — que está na iminência de ser uma das primeiras nações a desaparecer debaixo d’água como resultado da mudança climática, tudo está em ebulição. “Nada do que foi será”, disse lá nos anos 1980 Lulu Santos. Mas não é somente “como uma onda”: 2023 vai ficar marcado como aquele momento em que muita gente finalmente se convenceu de que a ameaça futura já é — como explicaria um jovem da Zona Sul carioca. Desbloqueio o celular, anoto este insight no bloco de notas, entro no Instagram, passo o olho em meia dúzia de selfies sem vê-las e me deparo com um dos reels que produzimos na Radis durante a Emergência Yanomami, em março. Paro para revê-lo.

A situação por lá era abrasadora

Os ataques à nossa valente democracia, em janeiro, prenunciavam que as mudanças esperadas para 2023 enfrentariam resistência inflamada e imporiam novos desafios para quem assumia postos de gestão no país. Dias depois de debelar a tentativa de golpe, o governo recém-empossado teve que lidar com imagens que mostravam fraturas expostas de muitos anos de descaso com a saúde e com a vida (Radis 244).

Fotos e vídeos de crianças indígenas em situação de penúria, fome e sede expuseram o que há anos lideranças yanomami, ativistas e pesquisadores denunciavam. Invasões sistemáticas de território, devastação ambiental, mineração ilegal, desassistência à saúde e omissão estatal. O povo que sustenta o céu estava prestes a ser exterminado. As imagens de horror veiculadas nas grandes mídias catapultaram a crise humanitária para o centro das discussões — e das decisões, felizmente. 

Recordei o momento em que vi a ministra Nísia declarar Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin). Na hora, pensei: Radis precisa estar lá. Antes que eu pudesse imaginar como faríamos isso, a Fiocruz se comprometeu em participar do Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE), estabelecido em Boa Vista, em Roraima. Em poucos meses, Radis acompanharia in loco a resposta emergencial (Radis 247). A coisa estava realmente quente por lá. [Leia o que Radis produziu sobre a Emergência Yanomami]

Com o coração apertado, lembro a fumaça que encobria parte do percurso entre a capital de Roraima e a Terra Indígena Yanomami (TIY), de onde se trazia uma jovem ferida e ameaçada pelos males causados por nós, o povo da mercadoria. Ao seu lado, em um frágil avião monomotor, eu via as imagens do alto — águas turvas contaminadas, pontos desmatados — e recordava o que havia me dito anos antes o artista Jaider Esbell (1979-2021), quando o entrevistei: “Cada grama de ouro tem sangue indígena”.  

Felizmente, no centro da resposta emergencial, também testemunhei ações de muito calor humano, a energia de quem se propôs entrar em ação. Profissionais abnegados, voluntários dispostos, pesquisadores comprometidos, ativistas em ebulição, alvoroço na classe artística. 

A união de esforços estatais dependia do retorno do diálogo do governo e da sociedade com lideranças, e a ida do presidente Lula e de uma comitiva de ministros ao Lago Caracaranã, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, onde se reuniram etnias de Roraima, deu sinais claros sobre o interesse de ambos os lados na reaproximação.

“Estragaram onde nascem os nossos rios, onde bebemos água e tomamos banho”, disse à comitiva Davi Kopenawa. “Queremos mostrar que esse mundo pode produzir sem precisar derrubar mais nenhuma árvore da Amazônia”, prometeu o presidente. Radis registrou estes momentos, sob o sol que brilhava com sua força equatorial sobre a Raposa Serra do Sol (Radis 247). 

A intolerância, a omissão e a desassistência, no entanto, deixaram rastros de sofrimento que ainda permanecem, até o fim de 2023. Imagens de terra indígena invadida se repetem lá — e não somente lá — e sinalizam o quanto é explosiva a disputa por terra e recursos.

Nossas guerras

Conflitos motivados por território, também foram pauta no exterior. Se lá fora os choques parecem requentar disputas da Guerra Fria, aqui ficou claro que não é mais possível ignorar ou esconder nossas próprias guerras. Sobrevoo de helicópteros, conflitos armados, perseguição de lideranças e população civil acuada são realidade na Ucrânia, na Amazônia e em muitas outras cidades do país. [Leia a reportagem Vida Interditadas, Radis 252]

O Complexo da Maré, vizinho ao prédio onde está a redação de Radis, na Zona Norte carioca, é reflexo disso. Se neste ano vimos ao vivo cenas na Amazônia que poderiam ser incluídas em filmes como Apocalipse Now, o roteiro de insegurança e violência que se desenrola em favelas, quilombos, comunidades e cidades lembram muito o enredo de séries policiais. Sem o glamour da Netflix, em alguns lugares ficou difícil respirar. [Leia a reportagem Tiros que adoecem, Radis 254].

O ônibus já se aproxima da Central do Brasil, coração do Rio de Janeiro, quando a mente decola para Manaus, uma das maiores cidades da Amazônia. Fumaça no Centro-Oeste e Norte, seca no Nordeste, enchentes no Sul. Ondas de calor por todo o mundo. Desabrigados, desaparecidos, desesperados e deslocados no Ocidente e no Oriente. O calor parece incidir sobre “privilégios climáticos”.

Mas há quem lucre com isso. Água, Terra e Ar à venda. Não há como respirar em Manaus; não há como escapar da força das águas no Vale do Itajaí, em Santa Catarina. No Nordeste, os estados batem recorde de seca dos últimos 40 anos. Água de beber não há para quem tem a casa arrastada pela torrente, nem para quem vive nas ruas das grandes cidades (como vem denunciando o Padre Julio Lancelotti, em São Paulo). 

Não há refresco nem para a classe média que se compromete com muitas parcelas para consumir pequenos grandes prazeres, como assistir a um show internacional. Morre-se se de calor; morre-se sem respirar; morre-se de fome e de sede, ainda em 2023. 

Paro de anotar e penso: “Que ano foi esse, que ainda nem acabou?” Parece até que Hefesto, deus mitológico do fogo, veio à superfície da Terra e dominou o cenário, causando desequilíbrio na relação com os outros três elementos que regem o mundo. Tudo ferve ao redor. Aqui, na Ucrânia, em Gaza. Dos fronts noticiosos de guerra recebemos relatos que mostram ao mesmo tempo que é insustentável (para todos) e rentável (para poucos) o modelo de civilização que privatiza direitos humanos básicos como terra, água, fogo e ar. 

Mortes a peso de ouro na Terra Yanomami, vidas findas por milícias e tráfico nas comunidades periféricas, pessoas em fuga desafiando grilhões e fronteiras, genocídios (in)justificados na disputa por territórios sagrados. Observo que Hefesto, que também rege os vulcões, é senhor da metalurgia. E não é que a indústria de armas também lucrou muito em 2023? Dividendos nunca foram tão altos, registraram os noticiários.

Debaixo da marquise

Chego ofegante ao terminal de ônibus, pronto para cumprir a segunda parte do trajeto até Laranjeiras, na Zona Sul do Rio. A proteção da marquise oferece sombra e tento me refrescar, embora a cobertura com telha metálica não ajude muito. O terminal é pouco mais do que um conjunto coberto de calçadas, onde param ônibus para pontos diversos da cidade. Fiscais de linha, camelôs, policiais, motoristas. O pouco espaço disponível para o que não é veículo é disputado com pessoas em situação de rua que vivem ali, fora da visão de transeuntes apressados a caminho da maior estação de trem do Rio. Não são poucas.

A famosa Central do Brasil fica a metros de distância do terminal, também na avenida Presidente Vargas. Naquele pedaço foi proclamada a República, no século 19, e gravado o filme de maior sucesso de Walter Salles Jr., nos anos 1990. Epicentro dos transportes no Rio de Janeiro e lugar considerado violento por quem vive exclusivamente nas zonas turísticas da cidade, é também um ponto de concentração de calor, com tanta energia em movimento.

Olho a notificação que chega via WhatsApp e abro a imagem, um mapa mental do site Brasil Escola. “Calor é energia térmica em trânsito”, está lá escrito. Ao redor, a comprovação científica. Mesmo à sombra, a quentura permanece, distribuída regularmente por lufadas de vento e canos de escape. Não há como escapar do desconforto.

A alta temperatura não impede, no entanto, que uma animada conversa se desenrole na fila de espera do ônibus no qual estou prestes a embarcar. O grupo de jovens se diverte, embora eu não faça ideia sobre o que falam. Eles se comunicam na Língua Brasileira de Sinais (Libras). Olho o diagrama de novo e procuro algo que não está lá. 

Calor humano

Empatia, pertencimento, inclusão, interlocução, movimentos que geram calor, mas se transformam em conforto, acolhimento, comunicação. O quentinho reconfortante de uma boa amizade, o cobertor de orelha que aquece noites sozinhas. É olhar a cena e fazer o link com pessoas que conheci em 2023. Busco o celular no bolso e confiro sobre o que falam, naquele momento, os integrantes do grupo de WhatsApp que reuniu delegados e participantes LGBTQIAPN+ durante a 17ª Conferência Nacional de Saúde (Radis 251).

O evento aconteceu no começo de julho. Fui incluído nas conversas quando fazia uma matéria sobre diversidade na CNS, e desde então acompanho as vozes que denunciam, se articulam e se protegem no fórum digital (Leia reportagem clicando aqui). No momento em que deslizo os dedos sobre as mensagens, reverberam postagens sobre o 20 de novembro, Dia Internacional da Memória Trans. Cuidado com o mundo. Cuidado com os seus. 2023 também foi “sobre isso”, para usar uma expressão que escutei bastante nos últimos 12 meses. Um ano de luta e de reencontros. Um ano de reencontro dos que lutam, em que a frase “Nada sobre nós sem nós” também foi dita muitas vezes [Leia reportagem Conosco e não por nós, Radis 246].

A 17ª CNS acolheu isso muito bem, percebo, revendo a cobertura no site de Radis. Ali ficou registrado que o Brasil da participação está de volta, exige respeito à diversidade, quer mais equidade e não admite mais esperar. A mudança é para já. Interessante perceber como o mote “O amanhã é hoje” se relaciona com a discussão sobre a crise climática. Não é à toa. Isso exemplifica aquilo que na academia chamamos de determinante social da saúde. Contextos que geram saúde ou adoecem as pessoas (Leia reportagem clicando aqui).

Para além dos embates sobre defesa da Democracia, reconstrução do SUS e destinação dos recursos, a conferência ficou marcada pelo desejo do reencontro, pela interlocução que precede a ação. No calor das emoções, muitos abraços e muitas propostas que falavam de inclusão, humanização, acolhimento, cuidado. Mas o que se demandava de verdade era uma mudança de estado físico — para voltar à metáfora do mapa mental — da compressão que caracteriza a resistência à ebulição que antecipa a transformação da realidade. 

Lembro de ver muitos abraços. Como os que vejo, no momento, entre os estudantes que embarcam animados no ônibus. Observo a conversa animada que empolga a garotada, vejo um casal de mãos dadas recostado nos últimos bancos do coletivo, uma senhora degustar salgadinhos crocantes em um pacote azul. Respiro aliviado com o vento um pouco mais ameno que entra pela fresta da janela e constato que há dois anos essas cenas seriam improváveis, diante da ameaça da covid-19.

Em 2023, muita gente fez de tudo para não lembrar os dias de isolamento e dor da pandemia, embora tenha havido um grande esforço por parte de quem perdeu pessoas queridas para que não sejam esquecidos rostos, nomes, vidas que se foram. As cicatrizes ainda recentes dos últimos quatro anos ainda estão abertas e exigem de gestores, profissionais, pesquisadores e da sociedade em geral respostas. Lições para o futuro; reparação para famílias; punição para criminosos. Radis também registrou essa luta em 2023 [Leia reportagem Crime e reparação, Radis 249].

Isso talvez não passe pela cabeça do grupo de estudantes que desce e caminha apressadamente, fugindo dos primeiros pingos de chuva, enquanto o vento carrega folhas, papéis e muita poeira pela rua das Laranjeiras. O tempo virou e torço para que a chuva não me pegue até eu chegar à minha casa. “A chuva começa e o calor não passa!”, reclama a senhora dos salgadinhos, em pé, ao meu lado. 

Confirmo a sensação dirigindo-lhe um breve olhar, cabeça pensando nos dias quentes que vivemos há pouco no Recife, acompanhando mais uma edição do Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas da Saúde (CSHS) da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Emancipação, saúde, decolonialidade, reparação, (re)construção crítica. Os temas sinalizavam uma ousada tentativa da academia em quebrar a hierarquia de saberes e propor novos caminhos [Leia reportagem clicando aqui].

“As mudanças na sociedade não acontecem desacompanhadas das narrativas”, advertiu a ministra, quando apresentou os desafios que se impõem para a reconstrução que a sociedade exige — e o que se espera das ciências humanas e sociais. Rememoro suas palavras lembrando da diversidade de vozes que ali estiveram, discutindo novos caminhos, propondo novas narrativas — mesmo em rotas já traçadas, nem sempre muito bem-vindas. 

Já estou fora do ônibus, mais uma vez embaixo de uma marquise, me protegendo para que a chuva não molhe as edições de Radis que trago na mochila. Chove, mas ainda está calor, penso eu, lembrando da senhora com seus salgadinhos. Prefiro acreditar que a instabilidade do tempo é sinal de mudança, talvez inspirado numa frase que li no livro que estou relendo, do Sidarta Ribeiro. 

Em O oráculo da noite, o fundador do Instituto do Cérebro, no Rio Grande do Norte, apresenta a hipótese de que o fogo deve ter sido tema dos sonhos da humanidade há milhares de anos: “Por ser empregado no cozimento dos alimentos e no aquecimento dos corpos, o fogo tornou-se o centro da reunião grupal, dando origem ao que pode ter sido a primeira roda de conversa”, diz ele.

Já sob a proteção da minha casa, troco as roupas molhadas e aqueço a água para fazer um café. Olhos atentos à chama do fogão, lembro de outra frase que ouvi e que complementa a anterior: “Se vocês circularem por aqui e avistarem fogo, o fogo é um sinal de muita alegria. Onde há fogueira, há vida”, nos disse a antropóloga Inara do Nascimento, indígena Sateré-Mawé, quando a encontramos na Casa de Saúde Indígena (Casai), em Boa Vista. (Leia reportagem clicando aqui).

Observo a água quente molhar o filtro e abraçar o pó de café, concluindo que o calor foi a essência de 2023. Tendo a acreditar que isso também pode ser bom. Se de um lado há os riscos relacionados ao futuro do planeta e às consequências da crise climática para nossas vidas, de outro ainda podemos contar com a possibilidade dos encontros e reencontros, motores energéticos que aquecem e dão sentido à vida.

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